Conferência 3: O papel da mídia no circuito da arte/Íntegra
Conferencistas: Antoni Abad, Lucia Santaella Moderador: Celso Favaretto. Auditório 1. Lucia Santaella
O
ponto de partida deste trabalho é benjaminiano. Segundo Walter
Benjamin, os modos de produção artística de que uma sociedade dispõe
não são apenas determinantes das relações socias entre os artistas e os
circuitos que levam essa produção para o público receptor, como também
interferem substancialmente na própria natureza da obra. Enfim, a
existência de toda obra é cultural e socialmente sobredeterminada.
Tendo isso em vista, para discutir algumas das razões capazes de
explicar por que o circuito da arte nas sociedades contemporâneas se
tornou hipercomplexo e por que os padrões para a sua produção e modos
de compreensão estão, de fato, em pedaços, toda a primeira parte deste
trabalho será dedicada a uma vagarosa explicação das condições
constitutivas da cultura contemporânea, de que a arte é parte e na qual
está inserida, para, então, em um segundo momento, focalizar
especificamente o tema proposto, caracterizando o circuito da arte e o
papel que a mídia desempenha nele. Antes disso, porém, sou irresistivelmente levada pela
necessidade de esclarecer o sentido em que emprego a palavra mídia,
pois essa palavra, seu plural “mídias” e o adjetivo “midiático” têm
sido utilizados à saciedade, sem a preocupação com a demarcação mais
precisa do seu significado e de seu campo de referências. Trata-se de
uma palavra que vem sofrendo pelo excesso de uso e pela
descaracterização do conceito. Com bastante imprecisão, muitos têm se
referido a todo o complexo contexto atual sob o nome de “cultura
midiática”. Essa generalização cobre o território com uma cortina de
fumaça. A meu ver, para começarmos a entender o tema proposto para esta
mesa, é necessário, antes de tudo, esclarecer o que se esconde por trás
da generalização da palavra "mídia". É claro que as mídias são hoje onipresentes, a começar pelo
aparelho fonador, que é a primeira dentre todas as mídias. Entretanto,
quais são as mídias, como se inserem na dinâmica social, em quais delas
o capital está investindo, como impõem sua lógica ao conjunto da
cultura? São todas questões irrespondíveis se não fizermos o esforço de
precisar nossos conceitos. A confusão dos modos como nos aparecem os
fatos que pretendemos compreender é proporcional à confusão conceitual. 1. Um exercício de conceituação Não muito tempo atrás, no final dos anos 80, início dos 90,
intelectuais acadêmicos ainda não utilizavam o termo “mídia” no Brasil.
A palavra era de uso ainda restrito aos publicitários e jornalistas,
para se referirem à divulgação que uma informação recebia nos meios de
comunicação. Se o termo “mídia” era ainda de uso restrito, qual então era o
termo empregado para se fazer referência aos meios de comunicação? Até
os anos 80, os termos da moda intelectual eram “meios de massa”,
“cultura de massa”, “indústria cultural” e, com menos freqüência,
“tecnologias da comunicação”. Essas expressões eram traduções das
expressões correspondentes em inglês: mass media e mass culture. Quanto
à “indústria cultural”, por questões políticas, este conceito foi muito
mais popularizado na América Latina do que nos Estados Unidos e Europa
Central. Se lançamos hoje um olhar retrospectivo dos anos 1980 para cá,
essa perspectiva temporal de mais de 20 anos nos permite perceber que
não foi casual a gradativa substituição de todas essas expressões
anteriores por um termo genérico e bastante vago como é o termo
“mídia”. A tese que venho defendendo desde o início dos anos 1990 é a
de que, a partir dos anos 1980, a cultura de massas começou cada vez
mais crescentemente a perder sua hegemonia no campo da cultura. Antes de explicitar como venho interpretando as mídias, desde
a primeira vez em que empreguei o termo no título do meu livro Cultura
das mídias, em 1992, vale a pena indicar os sentidos que essa palavra
tem abarcado. Pode-se dizer que há sentidos mais estritos e sentidos
mais amplos no seu campo de referência. Por volta do início dos anos
1990, com um sentido mais estrito, mídia se referia especificamente aos
meios de comunicação de massa, especialmente aos meios de transmissão
de notícias e informação, tais como jornais, rádio, revistas e
televisão. Seu sentido foi se ampliando para se referir a qualquer meio
de comunicação de massas, não apenas aos que transmitem notícias.
Assim, passou-se a falar em mídia para fazer referência a uma novela de
televisão ou a qualquer outro de seus programas, não apenas aos
informativos. Também passou-se a chamar de mídias todos os meios de que
a publicidade se serve, desde out-doors até as mensagens publicitárias
veiculadas por jornal, rádio, TV. Em todos esses sentidos, a palavra
"mídia" ainda está se referindo aos meios de comunicação de massa. O termo foi se fixando cada vez mais em função do crescimento
acelerado dos meios de comunicação que não podem mais ser considerados
necessariamente como meios de comunicação de massa, pelo menos tal como
o conceito de comunicação de massa esteve delineado até o início dos
anos 1980. Quando se deu o surgimento de equipamentos técnicos
propiciadores de novos processos de comunicação, tais como a
multiplicação dos canais de televisão a cabo, o videocassete, o
videodisco, os jogos eletrônicos etc., esses equipamentos começaram a
minar o exclusivismo dos meios de massa e conseqüentemente a expressão
“meios de massa” não era mais suficiente para dar conta desses novos
processos de comunicação. Entretanto, foi a emergência da cultura planetária, via redes
de teleinformática, que instalou definitivamente a crise na hegemonia
dos meios de massa e, com ela, o emprego da palavra “mídia” se
generalizou para se referir também a todos os processos de comunicação
mediados por computador. A partir de uma tal generalização, todos os
meios de comunicação, inclusive os de massa, inclusive o livro,
inclusive a fala, passaram a ser referidos pela rubrica de "mídia" até
o ponto de qualquer meio de comunicação receber hoje a denominação
genérica de "mídia" e o conjunto deles, de "mídias", compondo aquilo
que Albino Rubim chamou de Idade Mídia (2000) e outros têm chamado de
cultura midiática ou era midiática. O uso da palavra “mídias” nas expressões em que ela aparece em
inglês nos ajuda a compreender melhor uma tal expansão no seu emprego
em português. Para marcar a passagem dos meios de massa aos meios
digitais e as diferenças que essa passagem implica, Poster (1995) chama
a era informacional ou digital de “segunda idade das mídias”.
Entretanto, muito mais comum tem sido o emprego (também utilizado por
Poster) da expressão new media em oposição a mass media (ver também
Bolter e Grusin 1999). Portanto, em inglês, a expressão new media
surgiu para dar conta de uma expansão dos meios de comunicação para
além dos meios estritamente de massa. Lunenfeld (1999: xvi, xix) considera a expressão “new media”
ambígua e se pergunta: “O vídeo é ainda um “new medium”? Os sistemas
operacionais são mídias? O hipertexto é um meio diferente do livro
eletrônico? No fim, o autor acaba por considerar que essa expressão
funciona como um termo geral capaz de caracterizar as produções do
nosso tempo, com a ressalva, porém, de que são novas mídias as
produções que foram incorporadas ao universo digital, não importa quão
similares seus resultados finais possam estar do cinema e televisão
tradicionais. Lev Manovich, no seu livro The language of new media (2001:
19-20), é um pouco mais explícito quando busca responder à questão: "o
que é new media"? "Podemos começar a responder essa pergunta", diz ele, listando as categorias que são comumente discutidas sob esse tópico na imprensa popular: a internet, os web-sites, a multimídia computacional, os jogos eletrônicos, CD-Roms, DVD, realidade virtual. Mas isso é tudo que há nas novas mídias? E os programas de televisão que são rodados em vídeo digital e editados em estações de trabalho computadorizadas? São também novas mídias? E as composições de imagens e palavras e imagens – fotografias, ilustrações, layouts – que são criados nos computadores e então impressos em papel? Onde podemos parar com isso? Manovich conclui então que a compreensão popular identifica as
novas mídias com o uso do computador para distribuição e exibição em
vez de produção. Desse modo, os textos distribuídos em computador, web
sites e livros eletrônicos, são considerados novas mídias, enquanto
aqueles que são distribuídos em papel não são. Do mesmo modo,
fotografias em CD-Rom são tomadas como novas mídias, enquanto as
impressas não são. O autor termina por não aceitar esse tipo de
distinção propondo que, por trás do emprego da expressão "novas mídias"
está acontecendo uma revolução cultural profunda cujos efeitos estamos
apenas começando a registrar. Assim como a prensa manual no século XIV
e a fotografia no século XIX exerceram um impacto revolucionário no
desenvolvimento das sociedades e culturas modernas, hoje estamos no
meio de uma revolução nas mídias e uma virada nas formas de produção,
distribuição e comunicação mediadas por computador que deverá trazer
conseqüências culturais muito mais profundas do que as anteriores. Conclusão: o emprego dos termos “mídia” e “mídias” em português
alastrou-se em função da crise da hegemonia da cultura de massas, uma
crise que resultou do advento de novas lógicas culturais que não mais
de conformam com a lógica que é própria da cultura de massas.
Infelizmente, entretanto, em português o termo “mídia” é genérico, vago
e perde a distinção que ainda existe em inglês entre mass media e new
media. Ora, essa vagueza no emprego do termo em português nos leva a
perder a percepção das distinções que devem ser estabelecidas entre as
diferentes lógicas e distintos modos de funcionamento social que regem
os meios de massa e aqueles processos que não são mais regidos por essa
lógica. É em função disso que venho defendendo a necessidade de se
distinguir seis tipos de lógicas culturais: a cultura oral, a escrita,
a impressa, a cultura de massas, a cultura das mídias e a cibercultura.
Essas distinções me parecem imprescindíveis para compreendermos a
complexidade da cultura contemporânea e, dentro dela, compreendermos
não só a complexa dinâmica dos circuitos das artes, como também o papel
desempenhado pelas mídias nesses circuitos. Como se pode ver, utilizo
todas as palavras, "circuitos", "artes" e "mídias" no plural, por razõs
que ficarão claras mais adiante.
Para os objetivos desta apresentação, vou me deter apenas nos
três tipos mais recentes de formação cultural: a massiva, a das mídias
e a cultura ciber. Existe um tal consenso sobre o entendimento do
conceito de cultura de massas que me dispensa da necessidade de
qualquer explicação para esse conceito. O mesmo não se pode dizer de
cultura das mídias e cibercultura, pelo menos no sentido em que emprego
essas expressões que passei a compreender como se segue. Por volta do
início dos anos 1980, começaram a se intensificar cada vez mais os
casamentos e misturas entre linguagens e meios, misturas essas que
funcionam como um multiplicador de mídias. Estas produzem mensagens
híbridas como se pode encontrar, por exemplo, nos suplementos
literários ou culturais especializados de jornais e revistas, nas
revistas de cultura e de arte, no rádio-jornal, telejornal etc. Ao
mesmo tempo, novas sementes começaram a brotar no campo das mídias com
o surgimento de equipamentos e dispositivos que possibilitaram o
aparecimento de uma cultura do disponível e do transitório:
fotocopiadoras, videocassetes e aparelhos para gravação de vídeos,
equipamentos do tipo walkman e walktalk, acompanhados de uma remarcável
indústria de videoclips e videogames, juntamente com a expansiva
indústria de filmes em vídeo para serem alugados nas videolocadoras,
tudo isso culminando no surgimento da TV a cabo. Essas tecnologias,
equipamentos e as linguagens criadas para circularem neles têm como
principal característica propiciar a escolha e consumo
individualizados, em oposição ao consumo massivo. São esses processos
que considero como constitutivos de uma cultura das mídias. Foram eles
que nos arrancaram da inércia da recepção de mensagens impostas de fora
e nos treinaram para a busca da informação e do entretenimento que
desejamos encontrar. Por isso mesmo, foram esses meios e os processos
de recepção que eles engendram que prepararam a sensibilidade dos
usuários para a chegada dos meios digitais cuja marca principal está na
busca dispersa, alinear, fragmentada, mas certamente uma busca
individualizada da mensagem e da informação. Portanto, a cultura das
mídias constitui-se em um período de passagem, uma ponte entre a
cultura de massas e a mais recente cibercultura. A cibercultura está
fundamentalmente ligada à mundialização em curso e às mudanças
culturais, sociais e políticas induzidas pela mesma. Ela apóia-se sobre
esquemas mentais, modos de apropriação social, práticas estatísticas
muito diferentes das que conhecíamos até agora. A navegação abstrata em
paisagens de informações e de conhecimentos, a criação de grupos de
trabalho virtuais em escala mundial, as inúmeras formas de interação
possíveis entre os cibernautas e seus mundos virtuais criam uma enorme
quantidade de comportamentos inovadores cujas conseqüências sociais e
culturais ainda não puderam ser suficientemente estudadas (Quéau 2002:
478-79). Em suma, cada uma das formações culturais acima especificada
-- a cultura de massas, a cultura das mídias e a cultura digital --
apresenta caracteres que lhe são próprios e que precisam ser
distinguidos, sob pena de nos perdermos em um labirinto de confusões.
Uma diferença gritante entre a cultura das mídias e a cultura digital,
por exemplo, está no fato muito evidente de que, nesta última, está
ocorrendo a convergência das mídias, um fenômeno muito distinto da
convivência das mídias típica da cultura das mídias. Todas essas
distinções que vim estabelecendo até agora visaram preparar o terreno
para argumentar que as mídias não podem ser consideradas como um
monolito indistinto. Cada ciclo cultural funciona socialmente de
maneiras diversas. A cultura dos meios de massa, do jornal à televisão,
opera de modo muito diverso da cultura das mídias e, mais ainda, do
modo como opera a cibercultura. Quando levamos isso em consideração,
deixamos de cometer os equívocos correntes de impor sobre um ciclo
cultural critérios de julgamento que são empregados para um outro ciclo
cultural distinto. Esse equívoco vem sendo cometido com muita
freqüências atualmente, quando se impõem sobre a cibercultura
categorias de análise e de julgamento que são próprias da cultura de
massas. Aspecto relevante para o tema desta mesa diz respeito ao fato
que os distintos tipos de mídias e as eras culturais que conformam são
inseparáveis das formas de socialização que são capazes de criar, de
modo que o advento de cada nova mídia traz consigo um ciclo cultural
que lhe é próprio e que fica impregnado de todas as contradições que
caracterizam o modo de produção econômica e as conseqüentes injunções
políticas em que um tal ciclo cultural toma corpo. Considerando-se que
as mídias são conformadoras de novos ambientes sociais, pode-se estudar
sociedades cuja cultura se molda pela oralidade, então pela escrita,
mais tarde pela explosão das imagens na revolução industrial-eletrônica
etc. Esses ambientes são fundamentais para se compreender a dinâmica
que cada um deles impõe sobre a produção das artes e o circuito das
artes. Por isso mesmo, podemos dizer que a produção e o circuito das
artes na cultura de massas são distintos da produção e circuito que são
próprios da cultura das mídias e que são ainda distintos da produção e
do circuito das artes na cibercultura.
Entretanto o fator mais importante para
se compreender a complexidade da cultura e artes contemporâneas
encontra-se no caldeirão de misturas e hibridizações que as
caracteriza. Embora cada tipo de formação cultural tenha traços
específicos que diferencia uma formação cultural da outra, quando surge
uma formação cultural nova, ela não leva a anterior ao desaparecimento.
A cultura escrita não levou a oral ao desaparecimento, a cultura das
mídias não levou a cultura de massas ao desaparecimento, e assim por
diante. Ao contrário, todas as formas de cultura, desde a cultura oral
até a cibercultura hoje coexistem, convivem e sincronizam-se na
constituição de uma mescla cultural hipercomplexa e híbrida. É certo
que, em cada período histórico, a cultura fica sob o domínio da técnica
ou da tecnologia mais recente. Apesar da coexistência e das misturas
entre todas as formações culturais, as mídias mais recentes acabam por
se sobressair em relação às demais. É isso que vem acontecendo com as
mídias digitais que instauraram a cibercultura cuja expressão mais
visível encontra-se na internet e mais recentemente nos aparelhos
móveis. Contudo, esse domínio não é suficiente para asfixiar o
funcionamento das formações culturais preexistentes. Afinal, a cultura
comporta-se sempre como um organismo vivo e, sobretudo, inteligente,
com poderes de adaptação imprevisíveis e surpreendentes. É a atual
convergência das mídias no mundo ciber, na coexistência com a cultura
das mídias e com a cultura de massas, juntamente com as culturas
precedentes, todas ainda vivas e ativas, que tem sido responsável pelo
nível de exacerbação que a densa rede de produção e circulação de bens
simbólicos atingiu nos nossos dias e que é uma das marcas registradas
da cultura digital. Entretanto, a atual inflação e excesso de produção
cultural já começou a se fazer sentir nos anos 1960, no apogeu da
cultura pop, intensificando-se nos anos 1980, justamente quando se deu
o surgimento da cultura das mídias e a explosão dos debates sobre o
pós-moderno, pós-modernismo e pós-modernidade. Esses debates
sinalizaram o crescimento da complexidade cultural e do relevo cada vez
maior da cultura na vida social. A complexidade cultural foi crescendo
na medida mesma em que foram crescendo as mídias e a circulação social
dos signos que por elas transitam. À maior produção soma-se a abertura
para a cultura do outro, próximo ou distante, levando à mistura e
sincretismo das culturas. Além disso, como já foi sugerido, a cultura é
cumulativa. Novas mídias e as novas formações culturais que delas se
originam não provocam o desaparecimento das formações culturais
anteriores o que gera justamente a enorme concentração, densidade e
extensão inconsútil e abrangente de produção simbólica atual e
intensifica o fluxo veloz de signos, textos, imagens, sons que
configuram a trama hipercomplexa da cultura nas sociedades
contemporâneas. Ora, a produção da arte e o circuito que faz essa
produção chegar ao público receptor são inseparáveis da lógica cultural
em que essa produção e seu respectivo circuito se inserem. Ao mesmo
tempo que é sobredeterminada pela lógica de uma formação cultural, a
arte é parte constituinte dessa lógica. Conseqüentemente, o imenso
caldeirão de identidades, estilos, gêneros, técnicas, práticas,
tecnologias, mídias e misturas que caracteriza a cultura, também
caracteriza a arte contemporânea. Artes artesanais, pré-industriais,
coexistem com artes industriais-mecânicas, eletro-eletrônicas e
digitais. Não há quaisquer materiais, suportes, técnicas, tecnologias
ou metodologias que possam gozar do privilégio de serem
pré-determinados como artísticos em detrimento de quaisquer outros. A
arte de hoje continua utilizando a tinta, a pedra, os metais, o couro,
mas faz uso também de palavras, sons, luzes, tecidos, ar, pó, pessoas,
alimentos, animais e muitas outras coisas mais. Há artistas que fazem
vídeo, outros que exploram a potencialidade aberta pelas redes
planetárias, mas há também aqueles que se engajam em atividades
triviais e variadas como sair para caminhar, cultivar plantas, oferecer
picolés de gelo na frente de um imponente museu. O que Arthut Danto
(1996) chamou de fim da arte não foi senão o momento em que deixou de
existir um modo determinado para a arte ser arte. A profusão de
tendências e a diversidade de meios empregados pelas artes também levou
Rosalind Krauss a chamar a arte atual de pós-medium, o que quer dizer
que não existem mais mídias privilegiadas para a arte. Enfim, cada
artista é livre para criar, a seu modo, um pronunciamente artístico com
perfil de sensibilidade próprio capaz de imprimir sua marca sensível e
qualitativa no mundo. É por isso que, embora a arte contemporânea venha
se tornando cada vez mais universal, essa universalidade está longe de
significar uniformidade. Ao contrário, os caracteres glocais, mistura
entre o global e o local, surgem em todas as partes do mundo. Exemplos
disso, podiam ser vistos na Documenta de 2002, em que estratégias e
procedimentos artísticos similares foram escolhidos em partes distintas
do mundo, sem que os artistas que os criaram tivessem sofrido quaisquer
influências uns dos outros. Assistimos assim a uma descentralização das
identidades e a uma proliferação dos jogos de linguagem estéticos, que
se cruzam e se separam continuamente e de maneira imprevisível. Por
incrível que pareça, a riqueza e multiplicidade das práticas artísticas
contemporâneas também está longe de ser sintomática de uma situação de
caos. São muitos os fatores a impedir que a pluralidade transborde no
caos. Um desses fatores encontra-se no trabalho curatorial. De fato, a
explosão incontida da diversidade, o crescimento da semiodiversidade,
quer dizer, o crescimento da diversidade semiótica nas artes, podem nos
ajudar a compreender a ascenção da figura do curador e a relevância do
papel por ele desempenhado. O curador é, antes de tudo, aquele que
transita com familiaridade através das emaranhadas florestas das
produções artísticas. Convive com artistas, elabora conceitos,
projetos, realiza pesquisas, circula pelo mundo, organiza os espaços,
estabelece aproximações e diálogos entre as obras, "seja a partir de
suas significações, temas, gêneros, localização histórica ou
geográfica". Enfim, o curador vem se desprendendo de uma função
meramente institucional e burocrática para dar ao seu trabalho um
estatuto autoral, transformando em uma das formas possíveis de arte o
próprio recorte específico que estabelece na densa e intrincada malha
das artes (Cauê Alves 2005: 39). Desenhado mesmo que brevemente esse
perfil pluriforme das artes multifacetadas do nosso tempo, podemos
passar ao tópico dos circuitos das artes e do papel que as mídias neles
desempenham.
Um bom passo para
entendermos os circuitos atuais das artes é dado pela noção de "novos
intermediários culturais" em expansão, noção que foi delineada por
Bourdieu. O desenvolvimento acelerado de um mercado novo de bens
artísticos e intelectuais se fez acompanhar pelo aumento no número de
pessoas envolvidas na produção, circulação e transmissão desses bens. A
produção fica à cargo dos artistas e intelectuais, mas a circulação e
transmissão desses bens cabem aos novos intermediários culturais.
"Estes são pessoas que se dedicam à oferta de bens e serviços
simbólicos -- profissionais de marketing, publicitários, relações
públicas, produtores e apresentadores de programas de rádio e
televisão, jornalistas, comentaristas de moda e profissionais ligados a
atividades de caráter assistencial".
Nesse contexto, a elevação no número de
ocupações relacionadas com a arte, especialmente nos países avançados,
tem sido dramática dos anos 1970 para cá, ocupações que cresceram ainda
mais com o advento da internet. Essa elevação foi, em grande parte,
devida à subvenção estatal às artes e à mudança de atitude de muitos
líderes empresariais em relação à arte, do que resultou uma combinação
entre a subvenção das artes, decorrente das estratégias políticas
locais e nacionais e a adoção de novas estratégias de investimento de
capital, por parte de empresários e financistas. Aumentou, com isso, o
número de empregos na área das artes nas instituições culturais e
educacionais e originaram-se gerações de profissionais em lugar dos
antigos intuitivos e visionários (ibid.: 73). O processo de
globalização, especialmente depois da internet, vem contribuindo
grandemente para fortalecer o papel dos intermediários culturais, que
administram as cadeias de distribuição das novas mídias globais.
Aumenta, com isso, a capacidade de circulação de informações. Estilos e
obras de arte passam rapidamente dos produtores aos consumidores. Obras
de arte antigas e sagradas percorrem vários lugares e atingem platéias
de massa de diferentes culturas. Réplicas digitais de museus inteiros
podem ser encontrados na internet e sites de artistas e intelectuais
crescem nas redes como cogumelos em terra úmida. Tudo isso acaba por
enfraquecer a autoridade iluminista das hierarquias ocidentais
dominantes de alto gosto cultural (ibid.: 132). Outro aspecto
importante no circuito das artes diz respeito aos museus. Desde o
advento da arte da fotografia, seguida pela vídeo-arte, muitas vezes
conectadas a instalações e arte ambiental, os espaços museológicos
foram aumentando de tamanho para abrigar esses tipos de arte ao mesmo
tempo em que o crescimento quantitativo da produção artística e
centralidade crescente de seu papel na cultura levaram ao aumento da
construção de novos museus, eles mesmos obras de arte arquitetônicas.
Essa grandiosidade dos museus funciona como índice do tipo de
sensibilidade do nosso tempo em relação à arte. Mas é certo também que
o imenso investimento financeiro que eles implicam denuncia um outro
aspecto mais problemático no circuito da arte contemporânea: a
dependência que esse circuito tem da cultura oficial, de vultosos
subsídios e do alto comércio. Além disso, mudanças importantes vêm
ocorrendo nos museus, antes considerados espaços exclusivos da alta
cultura, do conhecedor instruído e do observador sério. Atualmente, os
museus procuram agradar a platéias mais amplas, transformando-se também
em "locais de espetáculos, sensações, ilusões e montagens – espaços que
proporcionam experiências, em vez de incutir o valor do saber canônico
e das hierarquias simbólicas dominantes" (Featherstone 1995: 103-104).
É nesses espaços que se dão os processos de articulação, transmissão e
disseminação da experiência para os vários públicos e platéias por meio
de intelectuais e intermediários culturais e é por meio dessas
pedagogias que novas sensibilidades vão sendo incorporadas nas práticas
cotidianas do público, na maior parte das vezes jovens ávidos por
conhecer, saber, sentir, como acontece em países como o Brasil. O mundo
da arte contemporânea tornou-se grande demais para caber em redutos
centralizadores, tais como Berlin, nos anos 1920 da República de
Weimar, Paris, até o começo da segunda guerra mundial e New York, dos
anos 1940 a 1970. De fato, a dominância desses
Na
medida em que as mídias foram se tornando mais e mais sofisticadas, as
informações sobre novas idéias começaram a viajar de um ponto a outro
do globo em uma velocidade cada vez mais acelerada. Livros e revistas
ilustradas passaram a circular em número cada vez maior e sua
influência veio a ser suplementada não apenas por um número crescente
de grandes mostras internacionais, mas também pelas reportagens
televisivas e, mais recentemente, pela avalanche de fluxos
informacionais da internet. Consideração importante sobre o papel que
as mídias desempenham nos circuitos das artes diz respeito aos velhos
preconceitos que buscam asceticamente separar as mídias das artes. Urge
que esses preconceitos sejam superados, visto que as tendências para as
alianças entre as mídias e as artes não é recente. Longe de terem
usurpado o lugar social das artes, as mídias foram crescentemente se
transformando em suas aliadas mais íntimas. Isso se explica pelo fato
de que, na produção cultural, as mídias ocupam posição central no
desempenho da função de meios de difusão. Ora, as mídias -- jornal,
revistas, rádio, TV e internet -- além de serem produtoras de cultura
por conta própria, são também as grandes divulgadoras das outras formas
e gêneros de produção cultural. Assim, o jornal como meio de registro,
comentário e avaliação dos fatos cotidianos é um produtor de cultura,
mas, ao mesmo tempo, é também um divulgador das formas e gêneros de
cultura que são produzidos fora dele, tais como teatro, dança, cinema,
televisão, arte, livros etc. Do mesmo modo, a televisão, queira-se ou
não, é também produtora cultural, uma cultura que mistura
entretenimento, farsa, informação e educação informal, funcionando ao
mesmo tempo como o mais almejado meio de difusão da cultura, dado o
alcance do público que ela pode atingir. Exemplo disso, alguns anos
atrás, foi a exposição de Monet no Museu Nacional de Belas Artes e no
Museu de Arte de São Paulo. Graças a inovações em estratégias
diferenciadas de divulgação através da mídia, especialmente a
televisiva -- de resto tão acentuadas que chegaram a receber críticas
de museólogos e historiadores da arte --, a exposição recebeu quase um
milhão de visitantes, colocando o Brasil na rota mundial das artes
plásticas. Ao mesmo tempo, esse evento, seguido depois por outros
similares, foi um exemplo perfeito de todas as espécies de hibridismos
culturais próprios do nosso tempo. Tendo como idealizadores do projeto
o adido cultural do Consulado da França, Romaric Sulger Büel e Lily de
Carvalho Marinho, representante da Fundação Roberto Marinho, que
garantiu o apoio institucional, o evento teve patrocínio da IBM,
Petrobrás, Telebrás e Sul América Seguros. O retorno em mídia
espontânea que os patrocinadores receberam -- aquela que é obtida
gratuitamente com as reportagens em TVs e páginas de cadernos culturais
de jornais e revistas -- operou milagres. Além dos quatro
patrocinadores principais, os nomes de Gradiente, DM9, Pão de Açucar,
Morumbi Shopping e Folha de S. Paulo foram associados à exposição em
São Paulo, além de televisões, rádios e Central de Outdoor. As misturas
que se fazem notar nesse apoio, acentuam-se no retorno do apoio através
da divulgação midiática. Outros tipos de misturas entre mídias e tipos
de linguagem também intensas apareceram na estruturação do evento em
si: introduzida por um audiovisual, a exposição de quadros,
caricaturas, objetos pessoais e fotografias do pintor, junto com telas
de seus contemporâneos e amigos, foi acompanhada por um site na
internet, visitado por dois milhões de internautas, por salas
multimídias e pela produção de um CD-ROM. Há ainda uma questão final
para colocar em pauta de discussão no que se refere aos circuitos das
artes: o fato que não há um único tipo de circuito para todos os tipos
de artes. Os circuitos são diferenciados. Quando surgem formas de arte
produzidas por novos meios tecnológicos, elas não são imediatamente
absorvidas nos circuitos existentes. Sempre leva um certo tempo até que
espaços de recepção adequados sejam encontrados. A arte tecnológica de
ponta, por exemplo, dada sua estreita relação com a ciência, é
inseparável de institutos de pesquisa e de órgãos de fomento,
financiadores de projetos. Isso posto, podemos passar ao nosso último
tópico: os padrões aos pedaços.
A instigante
proposição para nos foi dada para pensar o tema do Simpósio "Padrões
aos pedaços" terminou em uma afirmação e em uma pergunta: "Não há
padrões ou modelos novos... Ou há? A reflexão sobre a questão me leva a
responder que não há. Diante do que foi exposto, isto é, da densa
floresta prenhe de semiodiversidade da produção cultural, desmanchou-se
no ar a solidez de quaisquer padrões norteadores não só da produção
artística, mas também da teoria e da crítica das artes na
contemporaneidade. Vivemos inapelavelmente uma existência contingente,
quer dizer, desprovida de certezas, porque tudo no mundo está em
movimento, sem que saibamos o que é para a frente e o que é para trás e
sem que possamos dizer que movimento é progressivo e qual é regressivo.
E para os teóricos e críticos, são os padrões, códigos e regras a
que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos
estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar,
que estão cada vez mais em falta. Isso não quer dizer que sejamos
guiados tão só por nossa própria imaginação e resolução e sejamos
livres para construir nosso modo de vida a partir do zero e segundo
nossa vontade, ou que não sejamos mais dependentes da sociedade para
obtermos as plantas e materiais para nossas construções. Mas quer
dizer, isto sim, que estamos passando, como quer Bauman, de uma era de
grupos de referência predeterminados para uma outra de comparação
universal, em que os destinos dos trabalhos de autoconstrução
individual não estão dados de antemão e tendem a sofrer numerosas,
profundas e contínuas mudanças (Bauman 2001: 14). Hoje, os padrões e
configurações não são mais dados e menos ainda auto-evidentes, eles são
muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus comandos
conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa
parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir (ibid.:
15). Enfim, em vez de um exército regular e ordeiro, nossas batalhas
culturais são hoje travadas em unidades de guerrilha. Não a guerrilha
dura e velha, mas a guerrilha branda e meiga da interminável e sempre
inacabada reconstrução de uma existência que nos justifique e de uma
obra a qual damos, a cada dia, o melhor de nós mesmos. Referências
bibliográficas |
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