"Padrões aos Pedaços" ou como Orlan ataca a arte contemporânea e os padrões de beleza com a sua arte carnal.
“Padrões aos Pedaços”ou como Orlan ataca a arte contemporânea e os padrões de beleza com a sua arte carnal A partir de uma apresentação de dois ensaios vídeos de Orlan e da sua série Self-Hybridations no Cd-rom de Orlan, a minha intenção é de mostrar até que ponto o seu trabalho artístico é uma tentativa violenta de quebrar os padrões estéticos e artísticos do mundo ocidental. A partir da leitura e da análise de vários ensaios críticos sobre a arte carnal, quero orientar a minha discussão sobre este engajamento do corpo nas atividades artísticas que sempre contribui a tornar mais intensa a percepção do corpo pelos artistas. Matéria-prima da arte ao longo dos séculos, o corpo nunca deixou de ser (re)inventado pelas artes visuais, pois através dos seus gestos criativos, os artistas “levam com eles os seus corpos” como diz Merleau-Ponty e expressam desta forma o que a arte faz (e nem sempre o que a arte é).
Obras de Orlan a serem apresentadas:
· Ceci est mon corps, ceci est mon Cd-rom · Self-hybridations, série africaine · Self-hybridations, série précolombienne
Textos da apresentação:
“A arte é um combate.” Jean-François Millet
Quando se leva em conta que qualquer atividade artística tem como condição primeira os gestos do artista, os atos do seu corpo e as exteriorizações do seu ego, não é difícil entender porque a relação entre o corpo, as artes e as ciências humanas é infinita. Matéria prima da arte ao longo dos séculos, o corpo nunca deixou de ser (re)inventado pelas artes visuais. Para Sigmund Freud, o corpo é o primeiro ego…e os outros seriam todas as « extensões do corpo », como por exemplo as roupas e os acessórios que usamos e que são pessoais, chegando nesta lógica até as obras de artes que saem dos corpos criativos e levam com elas os corpos dos artistas, como dizia Merleau-Ponty. Longe de ser algo que já vem pronto, o corpo pode ser visto como uma obra de arte em potencial, pois o nosso « ego físico » é cada vez menos considerado como a base única de nossa relação com o mundo, tornando-se a problemática central de nossa relação com nosso próprio eu, e convidando cada um a mudar o seu corpo para modificar o seu «ego visível ».
A imagem do corpo como realidade carnal permite pensar que o visível é hoje o modo privilegiado de se relacionar consigo mesmo e, sobretudo, com o outro.
“Tenho uma pele de anjo, mas sou um lobo; tenho uma pele de mulher, mas sou um homem; tenho a pele negra, mas sou branco…Nunca tenho a pele do que eu sou, pois não há exceção à regra, nunca sou o que tenho.” Eugénie Lemoine-Luccioni
O corpo que se mostra e que se apresenta de maneira exageradamente visível aparece como uma obra de arte, mas uma obra de arte específica, pessoal, íntima, feita sob medida. A antropologia do corpo nos explica que o corpo é uma ficção cultural que opera transformações ao nível do ego das pessoas.
Para Orlan, musa francesa das artes corporais, o narcisismo é uma distanciação do corpo que torna possível a criação, pois para tratar o corpo como objeto de arte é preciso se separar dele, para depois poder reinvestí-lo de forma artística. Neste vai-e-vem epistemológico, todas as tentativas de se aproximar de uma verdadeira ego-arte se tornam auto-retratos que colocam em evidência os problemas da visibilidade, da alteridade e da identidade. Na realidade, a parte a mais visível e ao mesmo tempo mais profunda do ego-corporal de uma pessoa é a sua pele, e como diz Eugenie Lemoine: Nunca tenho a pele do que eu sou, pois nunca sou o que tenho.” Dentro dessa implacável realidade, a ego-arte toma posição contra as normas corporais e propõe uma forma de assumir o seu ego através da sua exteriorização em obra de arte. A Arte Carnal de Orlan luta contra o DNA, o inato e as normas de beleza, e a Ego-arte luta em favor do Egotismo, da auto-referência e da auto-transformação através das artes. Nessa transformação do vivo em visual, o corpo se torna um verdadeiro alter-ego artístico com o qual podemos dialogar, conscientes de que a arte se constrói nos interstícios da referência e da sua hibridação. No final, da arte carnal de Orlan `a arte corporal, passando pela Ego-arte, as estratégias artísticas se cruzam na busca de uma linguagem inédita, não codificada, que seja capaz de falar do nosso corpo, hoje e agora, espelhado de forma a tocar os outros corpos e prepará-los para o futuro do corpo: o pós-humano. “O homem não é um esqueleto acabado, mas um interminável complexo de gestos. O esqueleto é apenas o cabide do homem, um porta-gestos. O gesto é o homem.” Marcel Jousse.
Sem sair totalmente do domínio da historia da arte, é possível questionar antropologicamente os problemas estéticos contemporâneos a partir de uma análise das condições de criação e de produção das obras de arte. Podemos interpretar as obras de arte estudando os diferentes gestos dos artistas e colocar desta forma em evidência as suas condições de produção, de recepção e de comercialização. Considerando a especificidade da experiência estética nas suas dimensões práticas, pretendo aplicar as metodologias de pesquisa da antropologia das aparências ao trabalho de Orlan para entender as relações significativas entre os gestos de criação e os gestos de exposição e de venda. Entre o espaço privado (da casa, do atelier…) e o espaço público (da galeria de arte, do museu…), os diversos gestos artísticos para criar, mostrar e vender o seu trabalho definem as estratégias estéticas que constituem os espaços da arte. Considerando este conjunto de gestos como campo de pesquisa, minha intenção é de mostrar como essa cultura do comportamento e da prática artística pode dar conta da especificidade da arte contemporânea. Existe uma diferença fundamental entre o ofício do artista e os outros tipos de trabalho que se encontram justamente na natureza específica dos seus gestos: o artista deve inventar uma série de gestos que lhe permitirão produzir e divulgar as suas obras. Essa idéia de uma forma artística vivida e materializada através de gestos de criação (N. Bourriaud) demonstra que qualquer atividade artística começa por um conjunto de decisões (materiais, temas, ferramentas…) e pela escolha de uma atitude pela qual o artista habitará essa matéria-prima.
Para aprofundar esta pesquisa sobre os gestos na arte contemporânea, trabalhei sobretudo com duas referências: David Le Breton para a Antropologia do Corpo e Marcel Jousse para a Antropologia do Gesto. Seguindo assim os conselhos de Marcel Mauss, estudei as obras de Orlan utilizando o corpo como pista de pesquisa e analisando as técnicas corporais em jogo nessas atividades de criação. A partir da teoria de Marcel Jousse, podemos pensar a obra de arte como uma pérola-lição: pois como no caso das pérolas, o saber e a cultura se memorizam por uma lenta cristalização ao redor de suportes concretos (como numa obra de arte) e cada experiência artística traz com ela toda uma história social, uma história do corpo e da arte. Pelo simples fato de ser vista, imitada e incorporada novamente, a pérola vira lição e revela ao indivíduo que lhe fez sua, todo o seu saber acumulado. “O homem é um imitador insaciável, um colhedor de pérolas de múltiplos reflexos com os quais ele se fabrica complexos colares de belezas e de verdades.” (Jousse,1974)
Ao longo da apresentações dos trabalhos de Orlan serão abordados os elementos seguintes: · Auto-retrato radical/ hibridações/ auto-escultura · Lacan “ Eu sou um quadro”/ Orlan “eu sou uma obra de arte” · Marcas corporais/ marcas culturais · Normas de beleza/ arte carnal · Cirurgia real/ virtual · Orlan corpo/ not-ready-made · Multimeios/ técnicas corporais · História da arte/ história da beleza · Etnografia/ autografia/ antropofagia · Monstruoso/ pérola-lição
BIBLIOGRAFIA
Ardenne P., L’image corps, Figures de l’humain dans l’art du XX e siècle, Editions du regard, Paris, 2001
Busca Joelle, Extension, alteration, ou le corps détaché d´Orlan, in Signes du corps, Musée Dapper, Paris, 2004
Jeudy H-P, O corpo como objeto de arte
Le Breton David, Adeus ao corpo
Le Breton D., Anthropologie du corps et modernité, PUF, Paris, 1990.
Malysse S., (H)alteres-ego: olhares franceses nos bastidores da corpolatria carioca. In Nu e Vestido,Miriam Goldemberg (org), Record, RJ, 2002.
Malysse S., Ego-artes: o ego no espelho do corpo. Revista comemorativa de inauguração do Campus SENAC/SP, 2004
Mauss M., Les techniques du corps in Sociologie et Anthropologie, PUF, Paris, 1950.
Merleau-Ponty M., L’oeil et l’esprit, Gallimard, Paris, 196
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