América Central e Caribe: uma história em preto-e-branco
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Abigail Hadeed - Trinidad e Tobago Albert Chong - Jamaica Allora e Calzadilla - Porto Rico |
Ernest Breleur - Martinica Luis Paredes - EI Salvador Mario Benjamin - Haiti |
Carlos Garaicoa - Cuba Martín López - República Dominicana Moisés Barrios - Guatemala Priscilla Monge - Costa Rica |
Raul Quintanilla - Nicarágua Regina Aguilar - Honduras Sandra Eleta - Panamá
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curadoria Virgínia Pérez-Ratton
América Central e Caribe: uma história em preto-e-branco
Este subtítulo foi extraído de uma exposição, no final de 1995, do artista costa-riquenho Joaquín Rodríguez del Paso. Inspirado pela pintura de gênero dos artistas viajantes do século XVIII, Rodriguez retratou índios em ambientes exóticos, dando-lhes adequadamente como título a inscrição de um brasão:"America indómita "," Nativos Industriosos". O tema trataua do estereótipo associado ao "bon sauvage" [bom selvagem] ou a natureza e paisagem luxuriantes tropicais como um cenário ideal para turistas brancos avant l'heure, transportados por índios ou negros pelas florestas e rios.
Durante séculos,a região da América Central e do Caribe tem sido um ponto de convergência de povos europeus, africanos e asiáticos, que chegaram, cada um, em circunstâncias totalmente diferentes, condições que marcaram para sempre os processos históricos subseqüentes e determinaram o tecido e a hierarquia sociais. O século XX testemunhou uma das mais dramáticas diásporas desses povos, trazidos originalmente, que dividiu nossa gente em proporções praticamente iguais e criou vínculos estranhos com a nova metrópole: os Estados Unidos e sua influência homogeneizadora.
Nesse contexto, a noção de uma linguagem própria ou expressão artística tornam-se uma questão difícil [1] .
Tradicionalmente este segmento da Bienal de São Paulo segue a estrutura clássica do modelo de Veneza, ou seja, representações nacionais pelas quais cada país é responsável, limitadas a um artista para cada. O resultado dessa prática-que me faz pensar no concurso de Miss Universo, ou em um "quem é quem" transformado em "os que têm e os que não têm"– é um maior distanciamento entre os centros hegemônicos e o restante, entre aquilo que se considera Arte Real e o que a chamada periferia alega ser arte. A oportunidade de confrontar, analisar e apreciar a diversidade enriquecedora entre nossos vários mundos muitas vezes se perde na presença de seções inteiras de artistas selecionados por meio de procedimentos duvidosos, política local ou interesses comerciais no pior dos casos, ou simples falta de critério curatorial no melhor deles. Ainda que um projeto ou artista interessantes fossem escolhidos, seriam necessários o apoio oficial requisitado pela Bienal, praticamente inexistente em muitos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, e a captação de fundos da iniciativa privada, quase que impossível. Portanto, em muitos casos, os artistas que podem pagar por si próprios são os que acabam participando em todos esses eventos, às vezes ano após ano.
Este ano a Bienal modificou em parte o segmento das representações nacionais. Paulo Herkenhoff é o primeiro curador de um evento como o de São Paulo a introduzir uma nova perspectiva. Ele expressou profunda preocupação com a pobreza da representação de grande parte dessa região em Bienais passadas. Buscando uma mudança dessa percepção negativa do passado, mediante uma modificação da estrutura tradicional relativa ao segmento, em 1997 convidou-me para ser curadora regional e pediu-me que articulasse conceitualmente as representações nacionais da América Central e do Caribe para a presente edição, tratando principalmente com fotografia.
Ser curadora de uma exposição dentro do segmento "representações nacionais" de uma bienal como a de São Paulo deve levar em consideração aspectos presentes na seleção de qualquer participação individual por país, mas também deve abranger muitas outras variáveis. A quase total ausência de documentação, referências ou trabalho crítico sobre os artistas da região, as dificuldades logísticas e o alto custo de viagens são aspectos que não podem ser desprezados ao se fazer uma curadoria na região da bacia do Caribe. Esse projeto envolveu, sobretudo, o desafio de apresentar trabalhos que poderão dar certo no conjunto, mas que também possam transmitir uma visão mais próxima do que vem sendo feito na região. Não só a mostra deverá ser coerente no todo como também as participações individuais deverão ter vida própria, na expectativa de que se neutralizem os aspectos negativos de representações nacionais passadas. O trabalho tem sido complexo em todos os sentidos. O próprio período de pesquisa forneceu de maneira gradual as pistas para a articulação final da exposição, se mantendo dentro da estrutura principal da Bienal.
Como articular, então, uma mostra que basicamente agrupa países apenas porque pertencem a uma região; quais artistas deveriam ou devem participar dela? Como selecionar apenas um artista de cada país. – Quem, na visão local, "REPRESENTARÁ seu país" – sem cair na definição desse artista como "nacionalmente representativo"? Como as expectativas de uma bienal internacional corresponderão às locais? Obviamente há uma arnbigüidade na mera idéia de se conceber uma mostra coletiva estabelecida apenas pela obrigatoriedade de uma presença nacional.
A seleção de alguns nomes bastante conhecidos, sempre presentes no campo internacional nos últimos anos, e a apresentação de um "quem é quem" seguro da arte da América Central e do Caribe poderia ter sido uma opção. Isso poderia intensificar ainda mais o conceito errôneo de que existem apenas algumas figuras-chave no movimento contemporâneo da região e reforçar a idéia de paradigmas nacionais. Consciente de me empenhar em um trabalho envolvendo um risco maior, optei por incluir artistas cujo trabalho teria a capacidade de criar elos e, finalmente, encontrar ressonância com outros da região. Alguns artistas experientes foram incluídos – embora pouco conhecidos no exterior – com outros rostos novos que, ironicamente, haviam participado algumas vezes de exposições internacionais. Há artistas que lidam especificamente com fotografia, bem como pessoas que ou estão incorporando imagens fotográficas ou de vídeo a seu trabalho habitual ou partindo de imagens fotográficas apropriadas para uso em outras técnicas. Gradativamente durante o processo de curadoria, o fio condutor surgiu, quais trabalhos específicos poderiam ser entrelaçados de forma a criarem um tecido coerente, um corpo denso de trabalho, em alguns casos partindo da fotografia.
Porque a fotografia? A Bienal expressou um interesse especial em trabalhar com a fotografia. Poderia parecer absurdo em uma região onde a fotografia é a técnica menos desenvolvida – na verdade, recentemente começou a se desenvolver como uma disciplina artística, pois os fotógrafos haviam limitado seu escopo a um trabalho documental básico e, até agora, de fato se excluído do panorama artístico. Obviamente essa situação não se aplica a Cuba, por se tratar de um cenário totalmente diferente do restante da região. Todavia , se a decisão pela fotografia condicionaria a presença de alguns países, o resultado surpreendente da busca por propostas fotográficas foi o de que os contatos em cada país dirigiram sua visão a um setor que normalmente não é considerado para eventos como bienais. Daí surgiu um grande interesse, e pela apresentação de um projeto basicamente fotográfico ou relacionado à fotografia também se poderia encorajar seu desenvolvimento e apreciação como uma linguagem artística contemporânea.
Por outro lado, uma exposição relativamente monocromática criará uma reação às expectativas habituais do público em relação às pinturas coloridas caribenhas. Trabalhar com fotografia também condicionou a corda exposição, uma das questões curatoriais que eu gostaria de realçar: a história dessa região é em preto-e-branco, marcada, desde seu início e para sempre, pelo confronto de raças.O presente depara-se com uma dicotomia na região, uma contradição profunda entre imagem e realidade. O contraste entre a aura de lua-de-mel da região e o cotidiano de sua população, os hotéis luxuosos em cenários naturais extraordinariamente belos, isolados dos centros urbanos decadentes, onde populações desempregadas tentam sobreviver em muitos casos sem serviços básicos como água e energia; a iluminação dos pontos turísticos e a escuridão de muitas cidades locais. A pintura, a técnica mais favorecida, tradicionalmente tem sido a representação de uma imagem ideal para se vender internacionalmente a ilusão, o sonho estereotipado de urna identidade real, em estado de mudança, mutação, "crioulização" [2] que alguns setores se recusam a reconhecer. O verdadeiro caribenho esconde-se e veste-se com sua fantasia carnavalesca[3]•
A maior parte da arte contemporânea dessa região, com a exceção óbvia e eminente de Cuba, é praticamente desconhecida, convenientemente ignorada ou erroneamente percebida por meio daquilo que é apresentado nas galerias locais para satisfazer turistas. Mesmo em certas feiras de arte, um grande percentual de galerias transmite a idéia geral de arte principalmente comercial, colorida e vendável, um produto perfeitamente formatado que todos esperam desse paraíso descontraído, colorido, exótico, musical e dançante. Enquanto Brasil, Cuba, Venezuela, Argentina e alguns outros países latino-americanos obtiveram reconhecimento e respeito por sua arte, por sua maneira peculiar de confrontar o mundo contemporâneo e, portanto, podem contar com certo apoio local de setores oficiais ou privados, os estereótipos da América Central e do Caribe continuam a pairar sobre nossas cabeças. Os movimentos haitianos,jamaicanos e nicaraguenses de produção intuitiva, ingênua ou art brut são falsamente generalizados em toda a região-primitivismo globalizado! e as infinitas variações de um realismo mágico exagerado e um hiper-realismo vívido de salão são atribuídas a isso. Na maioria de nossos países, a situação real é a de que há o início de uma forte produção contemporânea que sobrevive apesar de quase nenhuma estrutura de apoio. Quase nunca é vista fora da região, e o tão necessário feedback crítico é praticamente ausente.
Antigamente, bem de acordo com a idéia modernista de tendências e correntes, os artistas regionais costumavam reverenciar Paris ou Nova York, e seguir os movimentos internacionais da época a fim de obter reconhecimento ou se tornarem artistas da moda. Muitos se exilaram voluntariamente especialmente em Paris - e construíram uma carreira vitalícia sobre sua "latino-americanidade" , criando uma imagem da qual ainda temos que nos desvencilhar. Poucos latino-americanos realizaram o que alguém como Wilfredo Lam conseguiu. Outros artistas simplesmente permaneceram em seus países, com uma visão absolutamente local, às vezes trabalhando em torno de temas pseudo-sociais, mas raramente questionando os termos aceitáveis do "bon gout", mas sim estabelecendo valores estéticos, conservadores e decorativos para artistas mais jovens, impedindo uma pesquisa mais arriscada e formando um grupo subseqüente de artistas bem-sucedidos no mercado. Este último grupo, vendendo no mercado local a preços extremamente elevados, torna-se parte do inquestionável status quo nacional. Finalmente, nos anos 60 e 70, um outro grupo, especialmente na América Central, envolveu-se intensamente na arte do "protesto", mas não conseguiu avançar além de uma denúncia panfletária nem desenvolveu uma proposta artística e estética séria.
Joaqufn Rodriguez del Paso Amerlca-a story in black and white América-uma história em preto-e-branco 1994 óleo e técnica mista sobre tela (oil and mixed media on canvas) 180x180cm
Recentemente e apesar das conjunturas dramáticas da região, alguns artistas emergiram com uma visão e atitude diferentes em relação às posturas convencionais, aos discursos oficiais e manipulações demagógicas de identidade. Estes artistas compreendem seu presente e contexto de um ponto de vista crítico, de forma a reagir contra a antiga vocação nacionalista e messiânica ungida sobre o "Artista". Sobre os artistas da América Central, escrevi em 1996 que eles "se relacionam com seu contexto como testemunhas individuais de seu tempo, cada um expressando sua experiência por muitos meios diferentes e elementos simbólicos, e a maioria deles é consciente de um grande supra-sistema que-no meio de sua crise-continua a gerir o mundo artístico internacional. A visão da geração mais jovem diferencia-se pela atitude em relação à política, que sem ser cínica se tem distanciado da idéia do passado pela qual o artista era-ou sentia a obrigação de ser-uma voz "nacional" coletiva, optando em vez de comentar a situação que o rodeia com a liberdade de, ou como, um indivíduo".[4]
Em conjunturas precárias como as da Guatemala, Nicarágua e Honduras, os próprios artistas decidiram organizar grupos e conferências, a fim de buscar alternativas físicas e mentais à falta de centros de arte e de apoio local. Com orçamentos muito modestos, começaram a organizar exposições, editar publicações e estimular uma dinâmica diferente em seus países. A falta de críticos e curadores profissionais também levou alguns dos artistas mais articulados a escrever e a se envolverem em práticas curatoriais em suas comunidades artísticas.
No Caribe, fica claro que Cuba permanece como a estrutura cultural mais forte e o ponto mais alto nas artes visuais. Como muitos dos países da região, que fundaram escolas de arte na virada do século, Cuba teve inicialmente uma orientação e tradição conservadoras européias, que evoluíram da mesma forma que na maioria dos países onde o indigenismo e as escolas nacionalistas tentaram criar uma linguagem local. Contudo, a segunda metade do século XX trouxe profundas mudanças , especialmente após a Revolução Cubana. Com todos os seus altos e baixos, apesar de uma censura maior ou menor, Cuba produziu com sucesso gerações de artistas extraordinários que trabalham em todas as técnicas, mas também assumiu uma atitude combativa que modificou as relações entre os Centros e o restante do mundo. Cuba adquiriu uma posição significativa não só artística como politicamente, e os artistas compreenderam como ambas se relacionam.
Nossas realidades são complexas e divididas. O sentimento insular é geral, mesmo dentro do istmo da América Central. Cada um destes países respeita o Norte, mas raramente estende as mãos a seus vizinhos. Foi apenas recentemente, após o término da guerra política, que começamos a recompor os vínculos rompidos. O sentimento de insularidade sofrido pelas inúmeras ilhas do Caribe é o mesmo encontrado pelos artistas da América Central. A fragmentação pós-colonial fez de nós todos ilhas.
Contudo os artistas nesta seleção são parte de várias gerações que olham para o interior e o exterior procuram um caminho de fazer arte que corresponde ao seu próprio tempo e espaço, relacionando a seu contexto e desconstruindo a imagem ou discurso oficiais, direcionando a observação a detalhes de seu próprio ambiente social ou urbano, os quais os setores dominantes desejam que não fossem vistos. A maioria dos países vive em uma esquizodinâmica: todos são pontos turísticos , alguns mais do que outros, mas essencialmente concebidos pelo "mundo externo'' como lugares politicamente instáveis porém fascinantes e românticos. Muito da arte está nesse jogo, com um grande apoio local. Estes outros artistas deixaram de ser cúmplices e começaram a desvendar seu/nosso presente.
Moisés Barrios Banana Art in America, Banana Life da série Bananas 1996 óleo sobre Tela (oil on canvas] 15Gxl10cm cada [each]
A seleção de artistas , particularmente no Caribe, uma região em que eu não trabalhara a fundo anteriormente, foi guiada até certo ponto pela escolha inicial do grupo da América Central, cada um, com exceção de Sandra Eleta, fora incluído na primeira mostra contemporânea do istmo, com a curadoria a cargo de nosso museu em 1996. Com exceção de Cuba, que mais uma vez.é um caso à parte, muitas das condições encontradas na América Central repetiram-se no restante do Caribe. Gradualmente, começaram a surgir vínculos entre os artistas. Uma relação especial com a cidade, a sociedade e o ambiente encontra-se presente em muitos artistas: enquanto Carlos Garaicoa se refere à paisagem urbana, às mágicas ruínas de Havana e cria um vínculo pessoal com as ruas, os edifícios desmoronando, transformando Havana em seu herói trágico, Martín López observa e captura o povo dominicano nas ruas de Santo Domingo.
Abigail Hadeed caminha pelos panyards de Port of Spain, berço dos famosos conjuntos de metais, registra, documenta e testemunha sua saga. Allora e Calzadilla usam imagens de uma pista de dança fictícia- um de nossos espaços sociais privilegiados - e aludem, entre outras coisas, ao fato de se assumir um determinado ponto de vista. Sandra Eleta tem trabalhado documentando o tecido social de Portobelo[5]e, mais recentemente, convivendo com populações indígenas originalmente estabelecidas nas florestas densas e praticamente intocadas do legendário Darién, que migraram em direção ao rio Chagres.
Outros artistas se concentram em uma experiência ou memória mais pessoais, e vários deles aludem à aglutinação, à restauração, à reconstrução de realidades a partir da fragmentação das anteriores, à busca do eu pela pesquisa de origens múltiplas ou pela abstração de um contexto físico. Algumas vezes os materiais utilizados não têm nenhuma relação com o conceito final. Dois desses artistas, os que estão trabalhando no plano mais íntimo, coincidentemente residem fora de seus países. Luis Paredes vive na Dinamarca há vários anos, e Albert Chong é professor em Boulder, Colorado. Ambos trabalham especificamente com fotografia e abordam seu próprio passado, de formas completamente diferentes. Enquanto Chang se preocupa com sua ascendência miscigenada, Paredes tenta reconstituir suas lembranças de San Salvador que conheceu quando criança, diferente da cidade que se tornou violenta desde a guerra. Ernest Breleur trabalha a partir de radiografias descartadas , que ele aglutina e marca com pontos de sutura coloridos. Mario Benjamin, a princípio um pintor como Breleur, voltou-se para imagens de luz projetadas em quadrados de poliuretano.
Moisés Barrios, Regina Aguilar e Raul Quintanilla incorporam a seu trabalho elementos pré
hispânicos e naturais ou referências que eles contrapõem às imagens ou aos objetos tecnológicos ocidentais, em vários graus metafóricos de sua reflexão sobre mundos que colidem e se justapõem, e se referem à inclusão de elementos não-ocidentais nas práticas artísticas tradicionais. Moisés Barrios e Raul Quintanilla acrescentam, espontaneamente, um traço profundamente irônico a seu trabalho.
Priscilla Monge faz parte de um grupo costa-riquenho de artistas de ruptura que questionam o discurso de igualdade e justiça promovido pelas vozes oficiais de um país que, sem dúvida com certa razão, tem sido transformado no paradigma da democracia e da paz. Diferentemente, o trabalho de Priscilla Monge é o equivalente conceitual da crítica social do trabalho de Carlos Garaicoa. Cuba e Costa Rica partilham, até certo ponto, de uma situação semelhante: forte apoio governamental à cultura há muitos anos, mas uma imagem oficial a ser mantida e exportada. Nesses dois países, há uma reação dos artistas contemporâneos a esse discurso que subitamente cria um espaço de discussão social e política na arte. Enquanto alguns costa-riquenhos se referem sofridamente à urbanização crescente e incontrolável de um ambiente natural no passado, o trabalho de Priscilla Monge tem sido, desde o início de sua carreira, um questionamento de uma realidade velada pelo discurso social demagógico dentro de uma estrutura conceitual consistentemente forte.
Regina Aguilar ln between Enire 1985 rocha vulcânica da América Central, cristal [Central).Amencan volcanic rock. lead crystal] .50x30x 25cm
Moisés Barrios possivelmente exerceu a mais forte influência sobre a geração mais jovem de artistas guatemaltecos, mesmo pertencendo a este grupo e expondo com ele. Por mais de vinte anos, Barrios fez pesquisas nas técnicas mais tradicionais - desenho, pintura a óleo e xilogravura. Em um amplo conjunto de trabalho coerente, o artista desenvolveu preocupação e relações profundas com o contexto de conflito da Guatemala e uma busca de uma linguagem pessoal. Em toda a sua obra há um sagaz senso de ironia e auto zombaria, com uma forte consciência histórica e uma solidez intelectual, de que poucos artistas mais jovens podem se orgulhar. Sua iconografia permeou a obra de muitos outros artistas, e o grupo guatemalteco apresenta um fenômeno de intertextualidade e inter apropriação visuais conscientes.
Desde 1997, Barrios tem incluído mais fotografia em sua obra. Seu último projeto de pintura Bananas era uma série de telas semelhantes a pôsteres, usando um trocadilho direto sobre a definição de nossos países como "república banana''. O artista pintou pencas de banana em várias posições, organizadas e com referência direta aos grandes ícones e à mídia do mundo da arte ocidental {pôsteres do MoMA, capas da Art in America, editais da Sotheby 's ou anúncios da Absolut). Simultaneamente expôs uma série de auto-retratos fotográficos em sépia, retratando-se como uma curiosidade etnológica, integrando seu próprio corpo como parte de uma montagem com vários objetos estereotipados tradicionalmente associados à Guatemala, às suas práticas religiosas e à sua identidade indígena. Para a Bienal, ele construiu e fotografou dezenas de pequenas montagens, um comentário profundamente irônico sobre a história da arte ocidental, subvertida pela presença de garrafas de Coca-Cola, bananas, latas vazias, frutas e flores tropicais-as aves do paraíso! Em Cafe Malinowski, Moisés Barrios age corno um franco atirador, mirando em todas as direções e devorando tudo a seu alcance, seja leste, oeste, norte ou sul, ou ele próprio. Ele consegue uma diversão, uma leitura nova e aparentemente "leve" dos ícones da história da arte por meio de um furto totalmente irreverente e aberto de imagens . A canibalização das máscaras africanas por Picasso, destituídas de seu sentido ritual, encontra seu contraponto de zombaria na série de Barrios. O artista defende o direito ao furto, e esta série trata-se realmente de uma ridicularização da apreciação da arte latino-americana como derivada do modelo ocidental. Diferentemente da Guatemala, onde uma longa tradição fotográfica abriu caminho para a pesquisa contínua nesta técnica, Honduras praticamente não tem fotógrafos envolvidos em algo além de imagens tradicionais e esteticamente direcionadas ou urna documentação básica. Selecionei uma escultora, Regina Aguilar, que após estudar no exterior e ter sido relativamente bem-sucedida com suas esculturas em vidro fundido retornou a Honduras e mudou totalmente seu direcionamento. Após concluir duas obras públicas, uma das quais destruída à noite por vândalos contratados, Regina Aguilar tem usado sua experiência em fundição de vidro e mesclado suas habilidades técnicas com os elementos rudimentares locais da cantaria cotidiana para construção de mós de milho. Esses mós mantiveram suas formas ancestrais e ainda são utilizados tanto pelas populações indígenas quanto pelos mestiços. Em outra obra, ela se apropria de outras formas de pedra pré-hispânicas e as recria, provocando um sentimento ambíguo no espectador. O material, das pedreiras originais, utilizados até hoje pelas populações indígenas, e as formas, que nos fazem lembrar os metates pré-colombianos bem corno os mós alongados de milho, afligem o espectador pela inclusão de elementos inúteis acrescentados a objetos utilitários aparentemente antigos ou pela modificação do objeto a fim de torná-lo absurdo, uma trágica metáfora de urna situação social " sans issue". Na obra preparada para a Bienal, ela integra elementos da alta tecnologia da fundição de vidro com um mó sobredimensionado, numa interpretação simbólica de mundos tão distantes e ainda assim coexistentes neste país. Os trabalhos de Regina têm formas puras e acabamento perfeito, mas este forte compromisso formal não obscurece as implicações históricas do material e da forma, mas sim reforça sua base conceitual.
Regina Aguilar Cloning Clonagem maquete para a peça de São Paulo (model for São Paulo piece 1998) rocha vulcânica. cristal, óleos
[volcanic rock. lead crystal, olls] 35x35Jc10cm
Raul Quintanilla
EI sueño de la ración produce monstruos O sonho da razão produz monstros [The dream of rationing produces monsters] detalhe 1998 foto instalação [photo installation) dimensões variáveis
Voices of The mountain Vozes da montanha 1996 instalação metralhadora e milho [machine gun, com] dimensões variáveis
A Nicarágua tem em Raul Quintanilla um artista controverso. Formado em arquitetura, ele é um entusiástico escritor e curador na Nicarágua, coordena e lidera o grupo Artefactoría, estimulando artistas experimentais que exploram alternativas a um ambiente artístico e social bastante conservador. Quintanilla ainda é editor da Artefacto, uma revista de arte e cultura, em que cada edição é de fato concebida como um livro de artista . É um artista intelectual e também sarcástico. Em trabalhos recentes ele justapõe "artefatos" pré e "pós"-colombianos em comentários sociais e políticos aguçados sobre muitas situações , dentro ou fora da Nicarágua, mas também se refere ironicamente aos movimentos indigenistas. Ele opta por materiais locais "pobres", combinados com objetos industriais simbólicos para se referir à invasão de mercadorias manufaturadas estrangeiras e às idéias externas pré-embaladas. O choque entre o ocidente conquistador e as conjunturas locais, a intervenção de forças estrangeiras na tomada de decisões e nos processos políticos na Nicarágua, a ameaça de sanções por nosso conseqüente "mau comportamento" e a ambigüidade da sociedade puritana norte-americana em relação a seu comportamento sexual são alguns dos temas desenvolvidos e ridicularizados por Quintanilla. A obra preparada para a Bienal transforma o título original de uma das obras mais famosas de Goya
el sueño de la razón produce monstruos [o sonho da razão produz monstros] - e o vilifica em El sueño de la ración produce monstruos [o sonho da ração produz monstros].
"A obra de Raul Quintanilla [. . .] composta por uma série de caixas e objetos que combinam a relação de seus elementos plásticos com sua força simbólica é, à maneira das pinturas de Goya sobre a Captura do bandido Maragoto, um ato de antroprofagia , Saturno devorando seus filhos. [...] Nesta obra, uma narrativa ficcional expressa em uma série de episódios, parece que o quadro escondido e escandaloso de Courbet, L'origine du monde [A origem do mundo], transformou-se neste personagem goyesco, corno a cena principal."[6]
Uma das solitárias deste projeto é Priscilla Monge, provavelmente a artista jovem da América Central mais conhecida fora da região, ao lado do fotógrafo guatemalteco González Palma, embora um tanto subestimada em seu próprio país, a Costa Rica. Monge pertence à "geração de ruptura"[7], artistas que assumiram uma posição crítica em meio a profundas mudanças na sociedade e vida costa riquenses. Distante de uma atitude feminista tradicional, Priscila Monge aborda de forma direta aspectos velados de um ambiente social complacente que jamais foram questionados: fundamentalmente, os padrões sutis de agressão e de mecanismos de domínio, as relações ambíguas entre vítima e agressor. A artista começou pintando em material de tapeçaria e retratava figuras entrelaçadas que criavam uma ambigüidade por sua proximidade-eram lutadores, amantes, jogadores? Monge utilizou iconografia esportiva como um comentário das estranhas regras que governam um modo de vida delicadamente coercitivo e condicionante.Tratava-se de violência real ou de apenas um jogo? Desde então a ambigüidade tem caracterizado seu trabalho, que toma muitas formas, formatos e técnicas. Sem jamais ser óbvia, trabalhando o mesmo conceito repetidamente, enriquecendo-o com as inúmeras raízes que possa ter a feminilidade, a artista desenvolve as relações amor-ódio, vítima-agressor na maioria de seus trabalhos .
Priscilla Monge Make-up lessons Lições de maquiagem 1998 video 4 minutos coleção Museo de Ar1e y Diseño Contemporáneo, San José.
Priscilla Monge Callese y cante [Shut up and sing] 1997 instalação 6 a 10 máscaras de boxe, caixas de música [6 to 10 boxing masks, music boxes] dimensões variáveis.
Para a Bienal, Monge fez seu primeiro trabalho em vídeo: Make-up lessons [Lições de maquiagem]. Uma mulher está sendo maquiada e ensinada a realçar os atrativos e esconder os defeitos, mas o resultado final é imprevisível: a última imagem é a do rosto roxo da mulher espancada. Esta obra alude ao sentido perdido da pintura corporal, o ritual da caça, da guerra e da conquista, da intimidação do inimigo, que se tornou um outro tipo de ritual: tornando-se o "eu" ocidental, convertendo-se na versão mais próxima do cânon da beleza ocidental, imposto ao mundo por concursos, revistas, estilistas, fabricantes de maquiagem e cinema, o desaparecimento de "outros" tipos de beleza, a referência aos conceitos estéticos, tudo isso se encontra num vídeo de quatro minutos. O vídeo, contudo, também se refere à relação permanente e problemática entre sedução e agressão.
Como já mencionei acima, a região não é reconhecida particularmente por sua fotografia. A isso se devem muitos motivos: em primeiro lugar, a fotografia nunca foi realmente considerada como parte das artes visuais, e os próprios fotógrafos espontaneamente limitam seu campo de ação. Os colecionadores de fotografia são raros ou simplesmente inexistentes, e o material para pesquisas extensas é caro e difícil de obter. Assim, a maioria dos fotógrafos depende essencialmente da arte comercial para sua sobrevivência e raramente se envolvem em propostas artísticas. Não obstante, há aqueles que conseguiram manter uma produção constante durante os últimos anos, ou os que se sustentam com arte comercial, porém têm conjuntos de trabalho, todo um projeto fotográfico dedicado a um determinado aspecto de seu contexto. Artistas como Sandra Eleta, Abigail Hadeed e Martín López são testemunhas de suas épocas complexas e muito diferentes. Cada um deles aborda de modo diferente uma "maneira de ser", uma "maneira de viver", sem quaisquer intenções antropológicas, mas simplesmente como um transeunte, uma pessoa a mais na fotografia. Todos eles compartilham uma sensibilidade aguçada em relação aos grupos sociais que os rodeiam, e todos eles questionam-mais ou menos aberta ou indiretamente-as relações entre a imagem criada por alguns meios e a realidade subjacente à nossa imagem forjada.
Martín López é um fotógrafo dominicano muito ativo não apenas em seu próprio trabalho, mas também na organização de um festival internacional de fotografia. A exemplo da maioria dos fotógrafos da região, López se vê forçado a combinar uma linha de trabalho comercial com suas propostas artísticas, uma situação bem diferente da de outras áreas de prática artística, em que isso não seria possível. López simplesmente sai caminhando e faz centenas de simples fotos espontâneas de tudo o que acontece em uma rua de Santo Domingo, ou mesmo de Nova York, se for o caso. Esquecendo a rigidez do quarto escuro e a busca obsessiva por "a" foto, ele fotografa enquanto caminha, do modo como vê, sente e percebe, então revela seus filmes em qualquer loja local, pede ao técnico que lhe devolva os negativos sem cortá-los e manda ampliar as tiras longas. Com uma qualidade semelhante à de um filme, ele registra a vida cotidiana de Santo Domingo sem uma seleção aparentemente pré-concebida das imagens a serem captadas. Às vezes, imagens radicalmente diferentes surgem nas tiras, em outras, uma sequência de um determinado local ou de um rosto ou situação em particular são uma evidência de um detalhe que chamou a atenção de seu olhar ou que distraiu sua concentração. Conceitualmente monocromáticas, as longas tiras de fotos são ampliadas em tons sépia, magenta ou azuis. Martín López age como um voyeur itinerante de sua cidade que ele conhece tão bem. "O trabalho de López é, em relação à fotografia ortodoxa, o que a trama urbana é para os edifícios monumentais. A trama funciona em uma dimensão quantitativa, não apenas de qualidade individual. O valor da trama resulta da série inteira e de suas relações, e pode ser apreciada durante um longo passeio. A comparação pode ser significativa ainda mais do que neste sentido geral, porque nestas fotos a cidade é vista como uma trama, como um continuum de um espaço humano, um mosaico de seres, ações e ambientes. É uma visão da cidade como uma cidade em que se caminha, se vive." [8]
Martín López
[The fleas from Santa Fe, Bogotá] 1992 instalação I Festival Internacional de Fotografia de Santo Domingo
http:// www:[email protected] detalhe 1998 coleção Ser Dominicano fotografia em preto-e-branco sobre papel fotográfico colorido [black and white photograph on color paper] 200x1500cm
No contexto de Abigail Hadeed é um caso de amor com os conjuntos de metais de Trinidad. Eles são uma expressão musical absolutamente autêntica que se desenvolveu nas colinas de Port of Spain há cerca de 50 anos e emblemas de um ambiente determinado. A matéria-prima para os instrumentos dos conjuntos de metais - as panelas - são tambores de óleo de 55 galões [aproximadamente 208 litros] descartados pela indústria petrolífera de Trinidad. Sua base é martelada e moldada na forma de uma panela que, a seguir, é marcada com a escala de notas e afinada. A seguir, os tambores são cortados para produzir panelas tenores, panelas guitarras, violoncelos, dependendo da altura final do tambor. Os baixos são formados por tambores de óleo cheios. O conjunto final é uma orquestra versátil que pode tocar tudo, desde Calipso a Beethoven, com um som característico.
Os conjuntos de metais são um empreendimento coletivo e social complexo, resultante da necessidade de se encontrar uma linguagem musical própria, que foi encontrada nos dejetos industriais. As panyards são os espaços sociais urbanos onde as atividades noturnas giram em torno dos ensaios. As quadras verdadeiras eram originalmente terrenos baldios nos bairros periféricos de Laventille, onde os músicos afinavam e depois tocavam os metais. Estas panyards, onde os conjuntos construíram simples armazéns para abrigar suas '' panelas" e ensaiar à noite, gradualmente estão sendo deslocadas ou simplesmente destruídas. Uma panyard famosa, a Desperados, testemunhou a construção, feita pelo governo local, de um pan-hall, um grande espaço fechado de concreto com capacidade para centenas de espectadores e que pode se tornar uma atração turística. Os conjuntos ainda tocam, as panelas estão lá e os ensaios continuam, mas muito do verdadeiro espírito da panyard desapareceu para sempre, rompendo o antigo tecido social criado pela presença desses conjuntos ao ar livre.
Formada nos Estados Unidos como fotógrafa comercial, Abigail Hadeed retornou a Port of Spain e trabalhou por algum tempo para um tablóide político local. Enviada para fazer a cobertura de eventos, registrar imagens de crimes, roubos, escândalos sobre corrupção, suicídios e catástrofes naturais, a artista progressivamente ingressou na realidade de sua cidade e começou a fazer seu próprio trabalho documental, tanto em Trinidad como no interior da Guiana. Este foi o período inicial de seus passeios pela cidade que a levaram, finalmente , a observar bem de perto o que se passava nas panyards e nos conjuntos de metais. Hadeed é presença habitual nas quadras, saudada por afinadores e músicos como parte de suas vidas.
Em oposição a artistas como Martín López e Moisés Barrios, que buscam simples revelação e ampliação comerciais como parte de seu conceito, Hadeed é fanática pelo quarto escuro e insiste em revelar ampliar cuidadosamente suas fotos e verificar todos os detalhes. Como regra, suas fotos são feitas apenas com luz natural. Ela mantém o quadro total, jamais - cortando suas ampliações. Chris Cozier, artista, curador e escritor de Trinidad, declara sobre o trabalho da artista: "suas imagens não retratam o charme nostálgico ou um passado idealizado, elas se preocupam mais com a forma do presente".[9]
No mesmo espírito de trabalho de Abigail Hadeed, Sandra Eleta é uma das fotógrafas mais respeitadas da América Latina. Ela mesma oferece a pista fundamental para entender e abordar seu trabalho: "Procuro penetrar o máximo possível na Identidade do tema de que estou tratando: busco um diálogo em vez da captura de momentos. [. . .] Quero capturar o ambiente invisível de meus temas". [10]Seu projeto sobre Portobelo, bastante conhecido e exposto, é um longo ensaio fotográfico sobre os habitantes deste pequeno porto, os descendentes de escravos trazidos da África. Portobelo, fundada no século XVI no lado caribenho do Panamá, foi interligada com o Pacífico como centro comercial onde finas mercadorias européias eram trocadas por ouro e prata. Com o passar dos séculos, Portobelo entrou em decadência, e seu destino foi marcado pelo declínio do poderio espanhol. O porto foi sendo abandonado, e gradualmente ocupado pela população negra, trazida originalmente para trabalhos forçados, e hoje sua realidade é uma imagem dupla: "declarada [um] patrimônio mundial, [ela] apresenta, no entanto, um quadro pouco exótico: uma taxa de desemprego que excede a média ao país inteiro e se encontra em segundo lugar em todo o istmo; economia de subsistência e condições precárias de saúde e habitação".[11]
Sandra Eleta também produziu diversos vídeos premiados sobre vários temas, incluindo a última invasão americana no Panamá. Seu trabalho mais recente, selecionado para a Bienal, segue o mesmo padrão de compartilhar seu tempo e conviver intensamente com as populações rurais a quem ela tanto ama, agora com os índios chocoe. A artista passou meses com os índios morando no rio Chagres, e da mesma forma que se relacionou com os habitantes de Portobelo, especialmente as crianças, o documentário fotográfico guia-se por seus sentimentos inspirados pela América, seu "peixe-anjo", uma criança do rio. Este conjunto de fotografias documenta a vida atual destes índios, forçados a migrar do Darién para os distritos centrais do rio. A história do Panamá começa e prossegue no rio Chagres-o "grande rio" das populações pré-colombianas, onde muitas culturas se intermisturaram por centenas de anos antes da conquista espanhola. Tornou-se, então, o meio privilegiado para transporte fluvial de mercadorias e tesouros até as frotas espanholas. "É difícil encontrar nos cinco continentes um rio que tivesse transportado mais ouro que o Movi ou o Chagres." [12]
Não existe nenhuma atitude complacente ou exotizante por parte de Sandra Eleta. Seu trabalho é um documento, mas não se trata de um estudo antropológico nem de uma crítica social. Mais do que apenas uma visão dos índios do rio Chagres, da relação cotidiana essencial e sábia com seu ambiente, consiste em um estudo de aproximação. Uma abordagem espontânea por parte da objetiva em relação ao tema, dentro de uma cumplicidade apenas possibilitada pela profunda compreensão adquirida paciente e amorosamente pela artista em relação a cada um de seus temas. Duvido que sua intenção seja a de denunciar, trata-se meramente de um diário fotográfico de uma profunda experiência pessoal. Para o espectador, é parte do que nosso presente é feito, não algo do passado recriado para um olhar itinerante superficial.
Carlos Garaicoa, artista cubano da nova geração, porém próximo do agora famoso grupo dos anos 80, estabeleceu uma relação pessoal com sua cidade, Havana. A decadência corrói a parte antiga da cidade, os edifícios desmoronam e os esgotos transbordam. Garaicoa reconstrói Havana em seus sonhos, seus traços a lápis visam ajudá-la com estruturas de apoio imaginárias ou prolongar as ruínas infinitamente até o céu. Sua instalação-performance para a última Bienal de Havana apresentou, no interior do espaço da exposição, um jardim japonês "zen", rodeado por fotografias do entulho de Havana, e no exterior seu contraponto, uma performance ambientada nas verdadeiras ruínas, fora da área de exposição branca, perfeita e irreal. Sobre seu trabalho, Garaicoa declara:"[... ] pretendi estabelecer uma nova leitura deste espaço urbano, em que o objeto agiria como o sujeito da narrativa e, a partir de sua reentrada no espaço do discurso cultural do qual foi violentamente removido, tenta ser o protagonista da 'nova' escrita. Esta proposta é uma recuperação de um diálogo fragmentado entre uma cidade contemporânea em crise e um transeunte, também em crise".[13]
Em outro conjunto de trabalho, Garaicoa aborda a questão de Angola. Ele incorpora uma consciência histórica em relação a um assunto tabu, em grande parte intocado e não-eliminado pelas autoridades ou pelos artistas. Ele trabalhou sobre o silêncio que gira em torno da guerra em Angola, usando o silêncio dos grafites não-lidos, as marcas das balas em paredes que não são vistas, e as sombras de quatro ex-combatentes irreconhecíveis.
Para a Bienal, Garaicoa apresenta uma série de "edifícios ideais" - desenhos arquitetônicos e backlights com os planos para estas edificações que jamais serão construídas juntamente com uma maquete em cristal desta cidade imaginária. Garaicoa move-se continuamente entre a realidade e o imaginário, os "espaços de ficção" [14]que a realidade possa permitir. "Arrancar o segredo de uma cidade e mostrá-lo, este é um dos propósitos de meu trabalho. Mais ainda, instituir este segredo como um discurso crítico sobre a sociedade contemporânea tornou se a necessidade que lhe dá forma, e que o faz existir, entre a ficção e o vazio de nossa memória fragmentada."[15]
Abigail Hadeed
Curtis Edwards 1995 fotografia (prata/gelatina) [silver gelatin print]
Savana Rupununi 1994 fotografia {prata/gelatina) [silver gelatin print]
Desperados Panyard Local de ensaio da banda Desperados 1994 fotografia (prata/gelatina) [silver gelatin print]
Nas palavras de Gerardo Mosquera: "Em Cuba vivemos as ruínas de glórias passadas, entre o entulho da cidade e a utopia. [...] Ninguém construiu melhor o imaginário da queda do épico cubano que Carlos Garaicoa. Seu trabalho é a grande metáfora do colapso." [16]
Jennifer Allora e Guillermo Calzadilla são os artistas mais jovens dessa mostra. Formaram-se recentemente em artes plásticas e já realizaram um trabalho forte e consistente, sem quaisquer limites quanto às técnicas ou aos materiais empregados: alguns de seus trabalhos são instalações externas como The grass is always greener somewhere else [A grama do vizinho é sempre mais verde] (1996) ou Hot dog torture machine [Máquina de torturar cachorro-quente] (1997), que consiste em uma cama grande e outra pequena, construídas com perfeição, ambas brancas e de quatro colunas, colocadas lado a lado em um jardim coberto de neve. Em outro trabalho utiliza tinta automotiva sobre tela, acrílica sobre madeira, ou verniz sobre peças fundidas , algumas de uma série intitulada Spectacles of indifference [Espetáculos de indiferença]. As obras dos dois artistas são elaboradas por ambos , nas quais um absorve o outro e os dois se tornam um enquanto devoram o trabalho do outro. Extremamente organizados, quase clínicos em suas propostas, eles visam diversos objetivos em que noções aparentemente opostas se unem.
Na obra de chão, criada para a Bienal-Charcoal dance floor or [Pista de dança de carvão] - os dois artistas desenharam um grupo de pessoas dançando em qualquer local da região, nesse caso um lugar virtual. Os desenhos são elaborados a partir de fotos feitas de cima, de forma que as imagens são escorços forçados que começam com o topo da cabeça para baixo. Allora e Calzadilla selecionam uma das mais importantes atividades de nossa região, a dança, que também é um ato efêmero, e atenuam sua cor, som e impacto. Essa pista de dança virtual, uma imagem composta, roubada e transformada de uma pista que nunca existiu de fato , permite ao público se envolver em uma ação por outro lado impossível, a de caminhar sob um teto de cristal de"[...] uma discoteca imaginária. À medida que nos movimentamos, a perspectiva muda, o efeito é de vertigem, e temos de continuar andando ( des-desenhando) para encontrar o ponto de vista ideal do qual o ilusionismo de um determinado casal se revela, perfeitamente. A obra força uma caminhada obsessiva sobre a superfície, em uma ação que termina por a pagá- la. Desfrutá -la é destruí-la".[17]
Allora e Calzadilla descendem de uma mistura de raízes: cubana, porto-riquenha, italiana e americana. A característica de cada uma destas diferentes origens, aliada à formação de cada artista, surgiu em todos esses trabalhos como um resultado involuntário de seus antecedentes multinacionais, no entanto os dois artistas não têm como preocupação específica a herança ou as raízes. O que difere de Albert Chong, cuja principal preocupação reside em sua herança, sua ascendência miscigenada , também matéria-prima de sua pesquisa artística. Chong é uma figura simbólica das misturas raciais de sangue africano e chinês no Caribe. Vivendo e trabalhando em Boulder, Colorado, com uma longa produção artística, Chong obteve grande reconhecimento internacional tanto pelo trabalho fotográfico quanto pelas instalações. A maior parte de seu trabalho é uma reflexão e recriação de seu eu ,interior e de suas origens e pertences entrelaçados. O artista relembra a ascendência e identidade miscigenadas, sobrepondo-se a si mesmo e a objetos de suas origens diversas de modo ritualístico . Recentemente voltou à Jamaica e passou de seu interior para a exploração do eu interior do outro, por meio de retratos de pessoas em uma pequena cidade no interior da Jamaica . O trabalho mais famoso de Albert Chong foi realizado no final dos anos 80 e início dos 90. Nele, o artista fotografou a si mesmo como um espírito que desaparecia e reuniu vários elementos referentes à exploração de sua ascendência, que foram colocados sobre cadeiras, tornando-se tronos recém-concebidos e absolutamente pessoais.
Luis Paredes é um artista que sempre trabalhou com a fotografia como sua técnica artística. Uma pessoa frágil, por ter sofrido de uma doença grave, Paredes exilou-se de uma realidade, com a qual não consegue se confrontar por mais de um curto espaço de tempo. Vivendo e trabalhando na Dinamarca, o artista sobreviveu, pelo exílio, ao conflito mental que a situação de El Salvador lhe impôs. Em seu trabalho anterior, grandes fotos sobre papel opaco apresentadas sem moldura, o tema principal tratava de figuras religiosas vernáculas centro-americanas pela representação de corpos femininos, intervindo e alterando o próprio negativo. Seu trabalho mais recente refere-se mais às suas lembranças de EI Salvador, uma reconstrução de seu próprio jardim pessoal imaginário. Paredes chega a esse resultado fotografando flores de perto, apenas a cabeça e pétala, ampliando-as e queimando-as até ficarem irreconhecíveis, a fim de criar um estoque básico de fragmentos que serão rearranjados por ele em grandes formações tridimensionais de múltiplas flores. O projeto de Paredes de "arranjos de flores" de "jardinagem" alude à nostalgia de um ambiente natural que ele conheceu no passado, por meio de elementos de associação como terra, ar e água, terra para plantar o jardim, mas também solo impuro, sua terra perdida. Ar em que as flores respiram, ar que envenenam quando em ambientes fechados. Água para fazer o jardim crescer, água para saciar a sede e água para apagar o fogo. O fogo se torna ao mesmo tempo a força da destruição e a força da transformação a uma nova realidade, feita de uma nova visão da anterior, com a presença implícita dos quatro elementos que constituem toda a matéria: terra, água, ar e fogo.
Ernest Breleur trabalha há anos com radiografias obtidas em hospitais de Fort de France. Com formação em pintura, Breleur fez trabalhos relativamente expressionistas, como muitos dos artistas nesta região. Alguns anos atrás, começou a reunir essas radiografias descartadas e a pintar pontos de sutura para simbolicamente uni-las. A reconstrução de uma realidade diferente da de corpos desmembrados e radiografados e a insistência em unir, costurar e reconstruir adquiriram várias formas nos últimos quatro anos, iniciando com grandes peças planas nas quais a separação da pintura tradicional era sugerida, mas não concluída, pois o suporte mudava mas o conceito permanecia similar. Os últimos trabalhos de Breleur deixaram a parede e, mediante iluminação específica, refletem uma imagem virtual na parede atrás da obra real. Em trabalhos mais recentes, o artista sugere a profundidade da lente da objetiva de uma câmara, pendurando diversas peças do mesmo tamanho, uma atrás da outra, em cujo centro foi recortado um círculo cada vez menor. A obra é complementada por uma projeção de vídeo, em direção a esse centro, de vários tipos de elementos em movimento-água, fogo e corpos. Como se a busca por uma definição própria do eu pudesse encontrar sua essência em elementos eternos, o fogo, a água e o movimento também são sugeridos nas imagens do trabalho de outro artista caribenho: Mario Benjamin.
Em um país com uma forte tradição em pintura como o Haiti, e tão definitivamente ancorado na arte primitiva, Mario Benjamin é um dos jovens artistas que buscam formas diferentes de trabalho e ruptura da circularidade das propostas artísticas haitianas. Como pintor fotorrealista, seu trabalho nunca se voltou à corrente primitiva, porém ecoou a fragmentação corporal relacionada à prática do vodu. Seu trabalho posteriormente desenvolveu-se em auto-retrato e figura compostos de fortes pinceladas, retratando rostos enceguecidos ou partes de corpos em cores austeras e sombrias. Após incorporar objetos ao trabalho, Mario Benjamin apresenta obras que consistem em retroprojeção sobre poliuretano, quadrados de imagens, lembranças emaranhadas, como se o abandono da imagem reconhecível pudesse levá-lo a desenredar seu passado.
Como mencionara, nossa região, a bacia do Caribe, define-se por sua fragmentação e insularidade. O que pode parecer redundante. Não obstante, aplica-se não apenas às Antilhas mas também ao istmo centro-americano, à terra firme. Projetos de integração falharam, a economia está claudicando, em grande parte em vista de um desenvolvimento pós-colonial desigual, mas também devido a incapacidade local de formar uma frente solidária e comum ante intervenções externas contínuas. Recentemente um longo período de instabilidade política e de guerra civil destruiu as relações trans centro-americanas e enfraqueceu as já precárias estruturas de apoio cultural. No próprio Caribe, os grandes problemas de comunicação-serviços postais e telefônicos ruins, conexões de vôo impossíveis, todos os tipos de problema logístico-resultam em relações verticais e bilaterais com a metrópole colonial ou com os Estados Unidos, em vez de promover vínculos regionais horizontais e multilaterais. As Antilhas ainda funcionam como micronúcleos mesmo entre si, sem mencionar a ausência de vínculo com a América Central.
Em sua maioria, as estruturas culturais não são sólidas na região. Uma triste falta de apoio oficial e a quase total ausência de um sistema sério de galerias tornam a visibilidade internacional muito difícil ou impossível para a maioria dos artistas da região. Alguns países realmente apresentam as condições necessárias para que artistas contemporâneos façam exposições e, em alguns casos, participem de bienais e de outros eventos similares. Todavia, para a maioria, o apoio é extremamente limitado. Mesmo alguns países com uma economia relativamente mais forte praticamente não alocam verbas para criar ou apoiar instituições culturais, muito menos para espaços contemporâneos. Em muitos casos, órgãos oficiais apoiam atividades voltadas para atrair o turismo, em uma permanente confusão entre cultura e promoção turísti
Não obstante, enquanto eu viajava pela região, surgiram questões paralelas com artistas de diferentes países. Um número crescente de artistas começou a transferir sua pesquisa pictórica em uma técnica que lhes permita desenvolver uma linguagem mais complexa, adaptada a uma maior consciência do contexto e de sua origem. Pode-se sentir a preocupação em reconstruir, refazer, restaurar. Em vez de expressarem a nostalgia de épocas passadas e retratarem cenas ideais de anos passados, como muitos artistas faziam antigamente e que corresponde a um esquema político particular, os artistas de hoje estão partindo de várias experiências de fragmentação e dispersão e recriando uma outra realidade por meio da percepção pessoal de cada um. A transformação acelerada de nossas cidades é um forte elemento no trabalho de muitos artistas.
Também há uma maior liberdade em se engolir o outro, em apropriar elementos de onde quer que desejem e em usar uma mescla de linguagens. As civilizações pré-colombianas reuniram-se em torno do objeto, mas a tradição de pintura européia gradualmente removeu esses objetos da classificação das artes plásticas.
Enquanto a pintura ainda permanece uma corrente muito forte na maioria da região, as linguagens tridimensionais estão sendo usadas cada vez mais, incorporando a instalação às técnicas tradicionais como desenho e gravura. Os artistas também estão questionando o discurso e os valores artísticos tradicionais estabelecidos pela maioria das escolas e de forma gradual adquirindo uma maior consciência de sua própria história, passada e presente.
O grupo selecionado para a XXIV Bienal de São Paulo, como em qualquer projeto de curadoria, é uma visão parcial do presente na América Central e no Caribe. Quando falamos de práticas artísticas, sem os regulamentos ou expectativas de uma bienal em particular, pareceria mais apropriado incorporar várias disciplinas a fim de se conhecer a realidade artística. Como mencionei anteriormente, a literatura é uma forte expressão em toda a região, o cinema é importante em lugares como Cuba e Trinidad e tradicionalmente tem estado presente não apenas no cotidiano como se desenvolvido um reconhecimento internacional durante anos. A inclusão gradual de elementos vernaculares locais, a liberdade com que os artistas mais jovens conscientemente praticam uma atitude canibalística apropriada em relação à história da arte ocidental, mais uma formação profissional adquirida em várias partes do mundo, criaram mudanças no panorama artístico. Fortalecendo nossos vínculos regionais, documentando o presente e conhecendo melhor a nós mesmos; criando a conscientização da necessidade de apoio local é uma questão principal se aspiramos a participar em um âmbito internacional sem nos tornarmos, uma vez mais, apenas uma derivação do sistema central. Nosso tempo e espaço são diferentes, é um entre muitos outros, e os artistas estão tentando defini-lo para encontrar os elementos de seu "appartenance" e trabalhar neste tempo e espaço particular, que é simultaneamente local e global.
Virgínia Pérez-Ratton
[1] Edouard Glissant, Pour une poétique du divers, Paris: Gallimard, 1996
[2] lbid.
[3] "Todos eles, de alguma forma, estiveram nas ilhas- assim se refereriam ao lugar onde eu nasci - e divertiram-se lá. Decidi não gostar deles apenas por isso; desejava uma vez mais ter nascido em um lugar que ninguém quisesse visitar, um lugar repleto de lava e vulcões entrando em erupção inesperadamente, ou onde o visitante se transformasse em uma pedrinha ao pisar ali; de certa forma sentia-me envergonhada de vir de um lugar do qual só se dizia: 'Eu me diverti enquanto estive lá"', Jamaica Kincaid, Lucy, Nova York: Penguin Books, 1991
[4] Virginia Pérez-Ratton, Mesótica 11: Centroamérica/re-generación, San José, MADC, 1997
[5] Sandra Eleta, "Portobelo", Fotografía de Panamá, col. Dei Sol.,
Argentina: Ed. La Azotea, 1991
[6] Porfirio García Romano, EI sueño de la ración produce monstruos, Managua, 1998
[7] Virginia Pérez-Ratton, Priscilla Monge: victima/victimizador, Bienal de Medellín, 1997
[8] Gerardo Mosquera, Martín López, Obra y artista. Fotobiografía de un destino inconcluso, Santo Domingo: Casa del Muerto Editores, 1994
[9]Christopher Cozier
[10]Citado em "Sandra Eleta or the search for a cultural identity", por Maria Cristina Orive. Sandra Eleta, "Portobelo", Fotografía de Panamá, col. Dei Sol., Argentina: Ed. La Azotea, 1991, p.3
[11]Edgar Soberón Torchia, "Portobelo", op.cit, p.9
[12]Bonifacio Pereira, EI Chagres
[13]Carlos Garaicoa, Artist statement, 1997
[14]lbid
[15]lbid
[16]Gerardo Mosquera, Carlos Garaicoa: las marcas y el silencio, 1998
[17] Marimar Benítez, Zeitgeist: Charcoal dance or, San Juan, abril 1998