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Editorial (Completo)

 

Contemporâneo... recombinante. Em busca de uma recomposição imanente das práticas artísticas

Editar uma revista sempre foi meu desejo. Editar traz, contudo, o desafio de criar uma marca temporal em um fluxo sempre em movimento, neste caso, o fluxo de produção do Fórum Permanente. Tal fluxo pode ser chamado também de esfera pública, visto que o material já publicado no Fórum atua diretamente no contexto de produção artística no Brasil, colocando-se como espaço de articulação crítica a eventos, seminários, exposições, palestras, entre outros. Minha edição ou proposição vem então, nas malhas desse fluxo, mapear conteúdo de maneira a construir a narrativa de algumas possíveis crises e aberturas no campo de produção brasileiro, ora alterando a percepção do que já aconteceu (desejo crítico) ora dando território a nascimentos menos visíveis nessa plataforma, pautados em uma possível radicalização de alguns aspectos que são caros à prática artística (em geral). O sentido desse editorial é mobilizar o conteúdo abrindo o campo discursivo de uma “recomposição imanente” das práticas artísticas.

O editorial do Periódico Permanente 2 traça, portanto, o prenúncio de “desalinhamentos” no circuito da arte contemporânea, na seção Crise de representação, Crise institucional, passando por Microcrises (percepções e intuições), que endereçam aspectos mais subjetivos das práticas. Em seguida vêm os Problemas de Arquivo, para fazer pensar como nos relacionamos a aspectos de uma recomposição imanente que se colocam na inflexão de uma distância ou de um tempo (histórico, história...). Depois, desejando incitar a participação de produções processuais, colaborativas ou cartográficas uma seção reune artigos a partir da singularidade destas práticas estéticas: Bárbaros, Recombinantes, Submidiáticos, Tecnoxamãs,práticas que produzem, como veremos, as suas próprias metodologias. As noções de aprendizagem e compartilhamento são também importantes, e elas radicalizam, por sua vez, as noções de formação (do artista, do público) e de autoria e propriedade. Por isso, o editorial seleciona conteúdo a partir de iniciativas como Encontros, Residências Artísticas, Processos colaborativos e Universidades temporais... Seguindo, parte do argumento desse editorial surge da produção de Giuseppe Cocco, autor do conceito (e livro) “Mundobraz”[1], que analisa o contexto brasileiro (e global) a partir de uma ontologia imanentista e radical. A resenha de Peter Pál Pélbart na mesma seção é uma bela introdução ao livro de Cocco. Esses artigos estão reunidos em Proposição: Globalização, Mundialização, Recomposição. Somado a isso, visto que boa parte da produção atual tem seu acontecimento pautado a partir de “impressos”, selecionei também algumas Publicações, Livros, Revistas recentes que fazem parte de um diagrama de eventos, e convidei artistas a produzirem dossiês para compartilharem relatos de seus processos estéticos, disponível em Dossiês.

Considerando que a Periódico Permanente 1 dá conta da abordagem de algumas problemáticas institucionais atuais, aqui o foco se torna observar que há uma mudança significafiva no modo de produção de parte das práticas artísticas das artes contemporâneas, algo da ordem de uma redução de fatores de mediação e do investimento em relações diretas, imanentes, entre atores envolvidos nos agenciamentos da arte (e do que mais se desenrola). Um modo de produção que, anoto, se altera por conta de uma série de aspectos elaborados há décadas pelas práticas, visto que é resultado de uma transformação produtiva da produção artística em seus aspectos mais exteriorizantes e mais interiorizantes, ou em outras palavras, comuns e singulares. Isso advém sem dúvida do que chamo aqui de uma crise de representação, compreendida por uma crise de representação do sujeito, do artista como artista, de suas finalidades, e por consequência, de sua “obra”. (Veja a palestra de Ana Paula Cohen, na exposição Lygia Clark) As “crises”, seguindo, tornam-se assim também “institucionais” e cabe observar os novos modos constituintes (nas instituições e nas práticas elas mesmas). Negando a metodologia de um formalismo, sugiro experimentar falar por outro lado, como no campo antropologia, da produção de pontos de vista diferentes, da experimentação desses pontos de vista, ou de um “perspectivismo”. Ou seja, pensando como alguns projetos atuais em artes estabelecem um intercâmbio de pontos de vista, que radicalizam por sua vez alguns aspectos conservadores das artes visuais (e das práticas acomodadas em um sistema de produção de valor).

É a performance de diferentes pontos de vista, a “invenção da cultura dentro da relação”[2] que pode organizar a luta e a produção, segundo Cocco em Mundobraz. Ao endereçar o modo de produção podemos abordar as práticas artísticas não isoladas num campo de especialidade (não que isso não seja possível, ou necessário), mas por outro lado, “organizá-las” ou diagramá-las junto a outras ações e permitir que componham com as práticas sociais que lhe são relacionadas. Compreender a produção artística dentro de um sistema de produção que, diferente do que parece, não está pronto (ou acabado), mas se produz a cada instante e, por isso, pode ser moldado a cada novo ato, ação, performance, projeto, etc... A “recomposição imanente” pontuada aqui como paradigma de uma mudança é conceituada por Cocco:

“Na realidade, a brecha para pensar a transvaloração de todos os valores está numa perspectiva radicalmente outra, ou seja, na recomposição imamente da relação entre produção e valores, algo que diz respeito, por um lado, à crítica do dualismo sujeito-objeto que desdobra na produção a separação ocidental de cultura e natureza; e por outro, à reformulação da própria noção de produção em termos de criação, ou seja, de afirmação dos valores do próprio processo de sua produção do mundo: não mais produção do valor, mas a criação como valor”.[3]

Segundo o autor há uma nova dinâmica de produção de valores. Ela atua sobre as condições ou o estatuto do trabalho e, portanto, sobre as composições sociais visto que, hoje, a dinâmica da vida está contaminada pelas relações de produção, mais ou menos servis, autônomas, emancipatórias, etc...

Um exemplo das práticas que o editorial pretende endereçar é o recente “Parque para Pensar e Brincar”, concebido pelo coletivo Contrafilé no Jardim Miriam, projeto que construiu um imenso playground na favela, e através do qual um grande grupo de outros colaboradores se integrou para desenvolver técnicas de construção com materiais reutilizados e desenvolver atividades, em um processo autocrítico e de relação intensa com a comunidade que os recebeu. Os demais projetos relacionados aqui na seção Dossiês, cada um à sua maneira, não só endereçam problemáticas às práticas artísticas contemporâneas (sem pretender “resolvê-las”), mas colocam em um espaço importante a performance de novos “pontos de vista” por parte do próprio artista. Isto é sintomático de uma crise de “representação de si”, não para encontrar a si como elemento identitário, mas para produzir um outro (e outros). E, em segundo lugar, colocam em questão a dinâmica de produção de valores no contexto das práticas artísticas. Neste sentido, não importará produzir arte (ou não), ou seja, arte como significação ou desejo último, mas processo, processo estético, ou processo de… produção de mundo.

Em meu ponto de vista uma boa “sacudida” no campo de produção artístico no Brasil tomou forma com uma série de ações, obras e projetos de caráter de crítica institucional no final dos anos 90 e além[4]. Tais propunham espaços de acontecimento mais complexos do que a precedente institucionalidade de algumas “artes políticas”. Isso possibilitou em parte a emergência de agrupamentos e realizações de festivais, eventos, tomadas de espaço público[5], mobilizados igualmente pela retomada política nas manifestações em diversas cidades do mundo, e responsáveis por uma recuperação imanente do conceito de política depois do trauma da ditadura.

Me interessa com o editorial ajustar o foco de abordagem de algumas ações no campo das artes visuais assim como selecionar alguns acontecimentos que surgem de uma genealogia, de um diagrama de eventos que promovem outros processos estéticos. Iniciativas como os encontros que promovem e pesquisam “mídia livre”, “cultura livre”, “software livre”, pedagogias radicais e autônomas baseadas em Paulo Freire. Eventos como Submidialogias e outros festivais de intervenção urbana que criam territórios de ação não tanto para um “público”, mas práticas que chamamos de “constitutivas” e nas quais se pode apontar processos de aprendizagem (radical, autônoma, coletiva). Parte do material agrupado em Bárbaros, Recombinantes, Submidiáticos, Tecnoxamãs, refere-se a esta produção. Pretendo expor que em tais encontros ou dinâmicas de produçao a produção de subjetividade é mais importante do que a noção de “formar-se”, o que força linhas de horizontalidade frente a um campo de produção artístico brasileiro que tende muito à hierarquizações e institucionalidades.[6] Se falamos de aprendizagem, considerando que estamos no campo das práticas artísticas ou estéticas, vale jogar fora todo intuito civilizatório, “formação do olhar”, “formação do sujeito”, e apostar na radicalização dos modos de aprendizagem fora das constituições identitárias, mas, como processamentos de indivíduos em composição social.[7] Como disse Felix Guattari “o inimigo” pode ser o “si mesmo” eventualmente, assim como a própria “matéria da revolução”.[8] Diferente de “individualizar”, o conceito “individuar” explicita: deixar passar por si fluxos de singularidades.

 

Contemporaneizar...

A seleção do conteúdo agrupado no Periódico Permanente 2 responde ao convite dos seus editores, contemplando a seleção do acervo já existente do Fórum e uma série de materiais inseridos via este editorial, diversificando as vozes na promoção de uma esfera pública, tal como nos chama o Fórum como um todo.[9] São importantes aqui também as noções de pesquisa e arte como produção de conhecimento. Ou seja, a leitura atenta, o prazer de pesquisar a sua própria geração, misto de busca de um conteúdo entre o conhecido e a surpresa, que conformam este editorial - ou a cartografia que ele constitui -, ao lado de uma pesquisa pessoal, desenvolvida na prática artística e na produção crítica que venho construindo.[10] Por pesquisa compreendo a investigação que provoca desterritorializações à prática artística (seus modos, suas formas) junto de um desenvolvimento teórico, entendido como processamento dialógico com as inteligências que mobilizam o fazer da arte. Essas “inteligências” ou saberes são aqui tanto a atualização de uma história (da arte), assim como desejos de alinhamento ou aproximação com os saberes da filosofia política e da psico/esquizoanálise. A produção que é desencadeada a partir daqui, e a partir dessa multiplicidade que é o FP, constitui um saber intercambiado/intercambiável que acredito que posso chamar não equivocadamente de produção de conhecimento para as práticas artísticas.

O editorial cria uma provocação, a partir de uma percepção pessoal (não tanto a partir do conteúdo do FP), a de que o binômio “arte contemporânea” há muito perdeu uma capacidade potente, talvez pela excessiva repetição sem caracterização (de especificidades...), ou por ter tomado o caráter de uma reprodução social que não depende de uma “recomposição imanente” e ao mesmo tempo “radicalmente ontológica”.[11] Por outro lado, a arte passa a figurar em grande parte, tanto no âmbito de sua produção e como de sua recepção, como consumo que é promessa de uma “inclusão” (participação em uma comunidade privilegiada) ou do desenvolvimento econômico (do sistema, do circuito).[12] Como parte disso são gerados posicionamentos demasiadamente “de dentro” das práticas e dos discursos atuais (o que é protetivo talvez) que procuram (re)estabelecer a todo o momento os alicerces da tal “arte contemporânea”. (O que vai contra, radicalmente, uma recomposição imanente, por promover um aspecto transcendental na linha de subjugar a produção a uma denominação totalizante.) A produção artística, por sua vez, existe por meio de uma potente margem (ou sobreposição) que explico brevemente assim: a arte é o trabalho em si realizado pelo artista, portanto, o modo relacional com o outro, em que as subjetivações são o elemento central. A arte como trabalho (de si mesma) poderia afastar a potencial alienação que toma conta do trabalho em geral. Isso, na verdade, não acontece não só aqui, mas na grande maioria das relações de produção.

Desdobrando do binômio “arte contemporânea”, proponho forçar uma “contemporaneização”, por sua vez, dos discursos, atualizando-os criticamente na consideração de que contemporaneizar é trazer para o presente imanente, em que a significação é um curso (e não cessa, não tem finalidade...). Ou, perto de como propõe Jorge Menna Barreto, “operar traduções”, debatendo com os conceitos e dando espaço para questioná-los, alterá-los, reinseri-los se necessário. Onde a “arte contemporânea” figura como um “nome-maior”, sugiro darmos espaço aos “devires menores”. Parece mais interessante portanto abordar os modos de existência, resistência (Deleuze, Cocco) e/ou resistência/sobrevivência (Suely Rolnik) da arte em possibilidades incisivas, específicas, na instauração de um comum. Ao “provocar a arte”, como resume Cocco - visto que o que interessa nela “é o fato de ser uma forma de resistência”[13], ela opera um potencial ontológico, de criação de subjetividade e de realidades.

Para exemplificar, algumas situações que me parecem expor nitidamente o problema da afirmação repetitiva do binômio “arte contemporânea”, e logo seguir para as proposições, descrevo: (1) quando situamos o conforto que conceitos como “sistema das artes” ou “circuito” ainda instauram, assim como “inclusão”, “inserção” ou “participação” (sejam eles da produção, do artista, do curador, do participador na obra, etc), produzindo um “dentro” e extirpando um “fora” (desinteressante, miscigenado, impuro); (2) como continuidade dessa modulação de pensamento/prática, a crença de que a arte sempre “expande” seu território, seu mercado; sua dominação portanto também como linguagem, o que pode ser absolutamente autoritário e contra-cultura de uma misgenação real dos modos de ser e produzir nesse território promíscuo brasileiro; (3) quando insistimos em intercambiar objetos como plus valia de uma cadeia de produção sem no entanto cuidar dos afetos que provocam essas expressões e de seus efeitos, e ainda, sem evidenciar que, se são relações de afeto os moventes de grande parte das parcerias (im)produtivas nas realizações artísticas, não há portanto uma defasagem entre tais?; (4) quando a arte participa de um sistema de produção, como leisure obrigatório, e portanto busca-se obrigatoriamente um público (“formação de público!”), visto que a produção acontece alienada de uma comunidade social, ou porque enfim, aquela instituição cultural bancária deve responder a seu investimento cultural [14] ; e por fim (5) como continuidade desse último, a de que a arte em seus eventos é “entrada” para um lugar de abordagem crítica da sociedade, ou seja, a arte como processo iniciático e inclusão na participação de algo maior, do que tenho grande descrédito visto que é um discurso dominante especialmente em grandes exposições e eventos, producentes de um potencial eu diria muitas vezes equivocadamente pedagógico.

É preciso falar menos das formas, para falar dos afetos. E daí voltar às formas.

A “arte contemporânea”, como questão, pode endereçar então a questão do tempo mesmo. Ao passo que o  contemporâneo pode ser apenas a obrigação de atualidade (a produção como o mais recente, o mais  fresco, o inédito...), torna-se necessário rediscutir concepções de tempo. A recomposição imanente, no seu potencial ontológico constitui quebra da linearidade de um modo de produção (e como vimos, de valoração) e a participação numa trama híbrida de temporalidades. Assim, podemos colocar o próprio tempo como valor, visto que como diz Peter Pál Pélbar na resenha de Mundobraz (nesse editorial) “nesse âmbito o tempo deixa de ser medida do trabalho para tornar-se ele mesmo desmedida, desmesura, excesso, excedente de ser, abundância, liberação.” Diferente de contemporeinzar para “moldar para a captura” o tempo da produção pode ser colocado potencialmente no tempo da... recombinação.

 

Recombinação

A vontade de chamar a uma verdadeira contemporaneização dos discursos, deslocando o binômio “arte contemporânea” de uma modulação dura e de um nome-maior da produção, pretende dar lugar a miscigenações, hibridações, contrastes, conflitos... Trocar a forma pelos afetos, talvez, como disse acima. Visto que a produção que interessa mobilizar ocorre pela fuga de determinismos fáceis ou mesmo de uma instrumentalização, tais produzem novos sujeitos, novos des-artistas, chamados por si próprios de bárbaros, tecnoxamãs, submidiáticos, recombinantes, metarecicleiros, entre outros. Franco Berardi define a ”recombinação” como sendo a capacidade de remontar elementos do conhecimento de acordo com um traçado diferente daquele do lucro e do capital.[15] No Brasil, acredito que o conceito foi mobilizado no contexto da produção de coletivos e festivais entre 2002-2003 por Ricardo Rosas[16] . Berardi escreve:

"Se quisermos definir hoje um "o que fazer" para nossos tempos, devemos concentrar a atenção na relação entre a função cognitiva no trabalho social complexo e movimentos que organizem formas de autonomia produtiva e comunicativa. (...) Precisamos individuar uma função recombinante, e isto encontramos na função cognitiva que atravessa o conjunto da produção social.”

 

No âmbito da produção da arte e de sua mobilização há uma captura inerente que parece naturalizada. Ou o que chamo de uma “auto-expropriação” da produção. (Assim como há uma pré-captura da produção absolutamente jovem a um sistema de localizações previsíveis, em que não há mesmo fôlego para investigações desestabilizantes.) A sobredeterminação do sistema de produção do capitalismo cognitivo se funde conceitual e praticamente ao sistema de produção do valor da arte (por sua dinâmica de produção de valor, de abstração, especulação e circulação), e a dificuldade de construir uma crítica ao modelo atual de capitalismo vem exatamente porque ele pressupõe uma “aparente liberdade” (Barbara Szaniecki). O “trabalho” (ou a produção) toma a dimensão vital como seu motor (os desejos, os afetos, os modos de vida) e, bem por isso, o capital molda a vida, molda os processos de significação (o que Felix Guattari chama de “codificação”).  É nesse perigoso encontro que se situa a “cafetinagem” da arte[17], como bem denomina Suely Rolnik, mas é talvez de onde possa surgir um êxodo.

Se em alguns contextos como o europeu, na onda da crítica institucional, ocorreu uma excessiva burocratização de discursos e práticas atuais (aquelas desdobradas da arte conceitual, em grande parte), no Brasil não parece que atingimos esse âmbito. Por sua vez, criaram-se novos contextos oriundos de uma hibridação com aspectos culturais locais (o trabalho junto a grupos indígenas e afro-brasileiros, os pontos de cultura, entre outros), cultivando liberdades de relação, associação e significação, que dão lugar às crises e aos rompimentos - considerados inoportunos para alguns e que, portanto, não cessam de serem afastados de uma possível “miscinegação” a demais processos estéticos atuais (em favor de uma “pureza” dos processos encapsulados na “arte contemporânea”, entre outros). Há, neles, uma produção de sentido(s) que escapa à objetualidade dos discursos da arte contemporânea (não especificada, não auto-crítica, nem em crise...).

Ricardo Rosas instituiu pontos de vista importantes na esfera discursiva que elabora tais práticas. Em “Hibridismo coletivo no Brasil: radicalidade ou cooptação”, selecionado nesse editorial, ele elaborou uma crítica necessária à corrente naturalização de alguns processos a partir do conceito de “transversalidade” de Felix Guattari (ie. a tese de que a coletividade per se não garante um “traçado diferente”, como disse Berardi, dos modos vigentes). A transversalidade definiria uma metodologia que procura “atravessar” as instituições dadas (sujeitos igualmente).

“Em sua fluidez mutante, então, a transversalidade pode significar abrir frestas em espaços limítrofes, no qual diferentes posições de produção teórica, ativismo político e prática artística oscilam, reduzindo assim a rigidez dos sistemas binários e das hierarquias entre teoria e prática, arte e ativismo ou virtual e real.”[18]

A transversalidade operaria, então, como matéria de recombinação.

De modo geral as práticas artísticas cujos registros são esses elencados aqui em termos de colaboração, compartilhamento, aprendizagem, etc., operam suas “transversais” e suas “recombinações”, e requerem modos também singulares de exteriorização e problematização. Tais processos resistem em resultar objetos, visto que existem pelo meio de suas dinâmicas vivas, e para quem procura materializações classificáveis, parecem difusos e escorregadios. A “crise da representação”, que é também a crise de representação de si (como sujeito), não é só a crise do objeto (mas ele nem tem subjetividade!), elaborada desde os tempos do tropicalismo e do conceitualismo. A “transversal”  aqui atua também sobre a cultura, em que não cabe figurar uma produção cultural - as artes visuais, por exemplo - apartada de uma miscigenação, e sim considerar que há uma “invenção da cultura dentro da relação”[19], como já citei antes, configurando um novo pensar sobre a “mestiçagem” brasileira.

No editorial vale sublinhar, além dos projetos de Daniele Marx, Contrafilé, Maíra das Neves, Camila Mello e Ali Khodr agrupados nos Dossiês, as práticas “tecnoxamãs” e “tecnomágicas” analisadas e produzidas por Fabiane Borges e Thiago Novaes, as “ideias perigosas” de Ricardo Ruiz e Thais Britto, os “bárbaros tecnizados” (“nos constituímos e vivemos na nossa hibridação”). Outros, por sua vez, que agrupo em uma linha de proximidade mais íntima com a produção de artes visuas, constituem metodologias como a “tradução” e a “mediação colaborativa”, conceitualizadas por Jorge Menna Barreto, e iniciativas como Universidades de Verão (Capacete), e residências artísticas como Terra UNA, que se tornam um espaço produtivo nas dinâmicas das artes visuais e suas hibridações no Brasil. Tais causam, à sua maneira, a provocação de insurgências estéticas, de ranhuras nas (aparentemente) suaves linhas de produção do campo das artes visuais e da produção estética brasileira. Instalando desde um “onde?”, um “como?”, e um “o quê?”.

Se a hibridização atua como fator de multiplicidade, e não de homogeneização, parece que não foi por acaso que terreno/território do JAMAC (que é um Ponto de Cultura) tenha dado existência ao Parque para Pensar e Brincar.[20] Cabe aqui então a citação de Cocco em Mundobraz, de que “o 'belo' [segundo Antonio Negri] é o novo ser construído pelo trabalho colaborativo, coletivo: mixagem, recombinação, saque e dádiva.” Ele segue “Ao mesmo tempo esse deslocamento não é linearmente libertador nem emancipador. Ele apenas define o marco de um novo conflito.”[21] Nas novas relações produtivas não se defende, evidentemente, primeiro, uma coletivização total como salvamento de uma captura (a colaboração e a participação foram também “cafetinadas” pelo capitalismo cognitivo); em segundo, nem a afirmação última “isso como arte”; nem em terceiro o total o êxodo (de um “circuito”), mas o espaço em que a subjetividade em conflito atua na criação de seus territórios existenciais e que a produção de sentidos, modos, realidades, afetos, é um processo (escapa, portanto). A produção de valor, então, ocorre nas negociações dessas criações. Relutar a sobrecodificação constante da produção e de seus próprios discursos é uma necessidade para manter a vitalidade do processo (resistência/existência), resistência constitutiva e contingencial. Repito, como define Cocco: hoje a “revolução é imediatamente criação, ou seja, afirmação da significação da transformação [da produção].”[22]

 

Fórum

O diagrama de eventos e a crítica que re-editoro aqui se conecta sem dúvida a realizações minhas anteriores, uma delas que dialoga diretamente com o FP, o Desarquivo.org, uma plataforma aberta on line para agregar e difundir materiais relacionados a práticas artísticas atuais, assim como difundir textos, livros, revistas, imagens e documentos diversos estimulando uma esfera discursiva e “reativando” os eventos que “desarquiva”.[23] O ímpeto desse Editorial é, portanto, semelhante ao Desarquivo.org[24], instigar em primeiro lugar uma releitura, atenta, crítica, a uma série de textos, relatos, artigos, vídeos percentences ao Fórum, considerando sua unidade mas sobretudo considerando sua participação em uma rede complexa de produção. Bem por isso, discorre essa  nota quase metodológica: as classificações criadas – os títulos de cada um dos oito agrupamento aqui apresentado no Periódico Permanente 2 - devem operar mais como transversais do que exatamente como etiquetas. É um tanto difícil (e se pensarmos bem, desnecessário) fechar demasiadamente uma estrutura que sobresignifique o conteúdo (ainda que funcione como chave de acesso). Por isso as seções são propostas com alto teor de promiscuidade e intercâmbio.

Para seguir, ressalto que o estado de “fórum permanente” que o FP instala é muito necessário em termos da manutenção de uma esfera pública que dê conta de problematizar, e não apenas de informar, as vozes de um campo de produção. Os usos possíveis de um fórum podem garantir um passo além das redes sociais excessivamente povoadas hoje, visto que muita publicidade não é necessariamente a constituição de uma esfera pública. Faz parte de uma “transformação produtiva” constituir composições maduras e com graus de autonomia de um sistema vigente. Diz Cocco: “a 'partitura  do intelecto'[25] pode ser o fato uma esfera pública que permita a produção e a reprodução (a circulação produtiva!) de suas dinâmicas livres e multitudinárias”[26]. Isso não significa, contudo, que “tudo torna-se de todos”, ou que haja uma apropriação livre e em geral, mas torna explícito em primeiro lugar os modos de consumo, subordinação, segregação e sobredeterminação de um sistema de produção vigente  (e da “arte contemporânea”, por exemplo), e, em segundo lugar, faz possível o espaço de insurgência de novas composições sociais (solicitando subjetividades criadoras e não “criativas” no modelo da indústria criativa). Na nova matriz produtiva não se está a salvo de capturas e subordinações, mas espera-se que haja liberdade de nogociação nas relações produtivas. A afirmação dos valores, a criação como valor, por parte de seus próprios produtores, e as suas negociações são, brevemente, o que podemos chamar de uma recomposição imanente.

A esfera pública do FP, à sua maneira, contempla as vozes que emitiram seus discursos in loco aqui dadas a serem lidas (vozes que têm defasagens entre si, pela diferença do tempo entre o acontecido e o relato, por exemplo) e os silêncios que se desenrolam nos seus interstícios. O silêncio da leitura e entre leituras contém, espera-se, uma elaboração produtiva, intempestiva, dessa produção. Este mesmo trabalho da leitura e do silêncio vai operar via vocês, leitores do Periódico Permanente 2, sugerindo que uma conversa vá se instalando desde o lançamento e se extendendo pelos 3 meses em que o editorial ocupa a capa do Periódico. O silêncio e suas crises podem ser quebrados, e devem. Portanto, se você quiser participar, escreva.

Agradeço imensamente aos  “recombinantes” que enviaram artigos, textos, relatos, autorizaram a publicação e produziram dossiês para o Periódico Permanente 2.

 

Cristina Ribas

Editora / Curadora residente

[email protected]

 

Este texto é a versão completa do editorial para a revista Periódico Permantente 2 do Fórum Permanente



[1] COCCO, Giuseppe. Mundobraz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo. Editora Record, 2009.  Rio de Janeiro: Record, 2009.

[2] Em Mundobraz, p. 93.

[3] Em Mundobraz, p. 85. Grifo meu.

[4] Considero importantes, ao menos naquelas que influenciaram a minha produção, o trabalho de Jac Leirner, Rosângela Rennó, Ricardo Basbaum, Jarbas Lopes, Jorge Menna Barreto, Carla Zaccagnini, grupos como Camelo, projetos como Ilha da Casa da Pólvora, Arte Cidade, Cinema Capacete, São Paulo S.A., e alguns que criei e com os quais me envolvi, como a Casa de Passagem, os Laranjas, a Casa da Grazi, Perdidos no Espaço, Rejeitados, entre outros.

[5] Chamou-se genericamente ações deste tipo de coletivos a(r)tivistas, nominação que não contempla, na leitura do seu aparecimento, a diversidade de proposições e modos de associação entre artistas nem problematiza a fundo a noção de ativismo ou militância política.

[6] O editorial toca um corpo de ações que podem ser agrupados por produzirem estados e espaços comuns de acontecimento. Diz-se que alguns tocam “problemáticas sociais”. Trata-se, me parece, de um “saber-fazer” que a arte contemporânea desdobra em uma série de conceitos como “participação”, trabalho “engajado socialmente”, “prática social”, “trabalho de base comunitária”. Em meu ponto de vista muitas dessas práticas surgem pela “provocação ontológica” da própria prática artística, e não tanto por uma sobredeterminação que os dirige a um “fora”. O devir é “menor” (Deleuze & Guattari).

[7] Vale diferir o conceito de “aprender” que me interessa mobilizar aqui daquele “aprender” que torna-se obrigação no sistema de produção atual, que corresponde a estudar e acumular títulos como competitividade profissional. Não é disso que estou falando; e sim aprender como desertar dessa previsibilidade, condução, tendência do capitalismo. Aprender se aproxima assim de um produzir imanente e ontológico: aprender em relação com.

[8] Citação: “O 'inimigo' varia de rosto: pode ser o aliado, o camarada, o responsável ou o 'si próprio' “Guattari, Félix. 1987. Revolução Molecular. Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo: Brasiliense.  P. 20.

[9] Cabe socializar uma definição de esfera pública de Alexander Kluge, aquela que considera pontos de vista oposicionais uns em relação aos outros, esfera pública com diferenças reais, portanto.

[10] Cabe definir aqui essa prática como sendo também “cartográfica”, sem um horizonte absoluto (do que se quer produzir), mas horizontes relativos em um território fértil por onde o pesquisador se move atento ao trabalho dos desejos, capaz de observar, problematizar e alterar, forçosamente, seu ponto de vista. Ver livro: Pistas para o método da cartografia, (org.) PASSOS, E. , KASTRUP, V., ESCÓSSIA, L. Porto Alegre: Sulina, 2009.

[11] Em Mundobraz, 2009.

[12] Sintoma disso talvez seja o fato de projetos de arte contemporânea integrarem tão facilmente projetos de revitalização ou gentrificação, mediados por instituições, corporações, governos, que requisitam a facilidade de adaptação poética a discursos do capital.

[13] Em Mundobraz, 2009. P. 86

[14] Isso não quer dizer que não haja necessidade para o investimento. Minha crítica surge para polemizar os modos de produção dentro do parâmetro da indústria cultural, grande parte dela possibilitada por renúncia fiscal.

[15] BERARDI, Franco. “Entropia social e recombinação”. Em Recombinação, (ord) Ricardo Rosas e Marcus Salgado http://desarquivo.org/sites/default/files/rizoma_recombinacao.pdf

[16] Ricardo Rosas e Marcus Salgado conceberam a plataforma atualmente extinta Rizoma.net., traduzindo, organizando, difundindo uma enormidade de artigos. Esse conteúdo está disponível em:  http://desarquivo.org/node/1232

[17] Para ver como Suely elabora o conceito, leia o texto “Geopolítica da Cafetinagem” http://desarquivo.org/node/959 .  Outros textos de Rolnik aqui http://desarquivo.org/node/433 e aqui http://caosmose.net/suelyrolnik/ .

[18] Texto publicado em 2005. Em: http://www.forumpermanente.org/event_pres/simp_sem/pad-ped0/documentacao-f/mesa_01/mesa1_ricardo_rosas

[19] Em Mundobraz, p. 93.

[20] Para discernir das práticas que reincidem na produção objetual (e recapturam para si, no limite da autoexpropriação que vira mercadoria), me parece que a política de estado para a cultura, a política de editais como “Interações Estéticas” no e dos Pontos de Cultura, Redes da Funarte, entre outros, podem radicalizar uma série dos pressupostos de realização e participação congelados pelas artes contemporâneas.

[21] Em Mundobraz, p. 91.

[22] Em Mundobraz, p. 93.

[23] Relaciono o Desarquivo.org a outras outras iniciativas recentes no Brasil que, lutando pelo compartilhamento do conhecimento produzido nas redes e problematizando noções de autoria e propriedade, dão existência a publicações como o livro “Copyfight” (link http://desarquivo.org/node/1396 ) de Adriano Belisário e Bruno Tarin, 2012.

[24] Desarquivo.org deriva do projeto Arquivo de emergência, projeto que existe/existiu como arquivo real para documentos impressos produzidos a partir de práticas artísticas, comunicativas, expressivas, realizadas no Brasil a partir de meados dos anos 2000. Em 2011 parte do Arquivo foi transformando na plataforma aberta Desarquivo.org, onde cada “arquivista” pode logar e subir conteúdo para compartilhamento.

[25] Paolo Virno analisa que o trabalhador contemporâneo é um executor virtuoso (tal como o bailarino, como o músico), ele gera o valor de seu trabalho num processo de criação e performance inerente ao trabalho que realiza, sempre em relação com outros. Ele trabalha sem obra, e isso não quer dizer sem finalidade. O trabalhador é dotado, portanto, de uma partitura de seu próprio intelecto, tomado como recurso primeiro para trabalhar. VIRNO, Paolo. Virtuosismo e Revolução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

[26] Em Mundobraz, p. 92.