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Editorial

 

Contemporâneo... recombinante. Em busca de uma recomposição imanente das práticas artísticas

Editar uma revista sempre foi meu desejo. Editar traz, contudo, o desafio de criar uma marca temporal em um fluxo sempre em movimento, neste caso, o fluxo de produção do Fórum Permanente. Tal fluxo pode ser chamado também de esfera pública, visto que o material já publicado no Fórum atua diretamente no contexto de produção artística no Brasil, colocando-se como espaço de articulação crítica a eventos, seminários, exposições, palestras, entre outros. Minha edição ou proposição vem mapear conteúdo nas malhas desse fluxo, de modo a construir a narrativa de algumas possíveis crises e aberturas no campo de produção brasileiro, ora alterando a percepção do que já aconteceu (desejo crítico), ora dando território a nascimentos menos visíveis nessa plataforma, pautados em uma possível radicalização de alguns aspectos que são caros à prática artística (em geral). O sentido desse editorial é mobilizar o conteúdo abrindo o campo discursivo de uma recomposição imanente das práticas artísticas.

O editorial do Periódico Permanente 2 traça, portanto, o prenúncio de “desalinhamentos” no circuito da arte contemporânea, na seção Crise de representação, Crise institucional, passando por Microcrises (percepções e intuições), que endereçam aspectos mais subjetivos das práticas. Em seguida vêm os Problemas de Arquivo, para fazer pensar como nos relacionamos a aspectos de uma recomposição imanente que se colocam na inflexão de uma distância ou de um tempo (histórico, história...). Depois, desejando incitar a participação de produções processuais, colaborativas ou cartográficas uma seção reune artigos a partir da singularidade destas práticas estéticas: Bárbaros, Recombinantes, Submidiáticos, Tecnoxamãs, práticas que produzem, como veremos, as suas próprias metodologias. As noções de aprendizagem e compartilhamento são também importantes, e elas radicalizam, por sua vez, as noções de formação (do artista, do público) e de autoria e propriedade. Por isso, o editorial seleciona conteúdo a partir de iniciativas como Encontros, Residências Artísticas, Processos colaborativos e Universidades temporais... Seguindo, parte do argumento desse editorial surge da produção de Giuseppe Cocco, autor do conceito (e livro) “Mundobraz”[1], que analisa o contexto brasileiro (e global) a partir de uma ontologia imanentista e radical. A resenha de Peter Pál Pélbart na mesma seção é uma bela introdução ao livro de Cocco. Esses artigos estão reunidos em Proposição: Globalização, Mundialização, Recomposição. Somado a isso, visto que boa parte da produção atual tem seu acontecimento pautado a partir de “impressos”, selecionei também algumas Publicações, Livros, Revistas recentes que fazem parte de um diagrama de eventos, e convidei artistas a produzirem dossiês para compartilharem relatos de seus processos estéticos, disponível em Dossiês.

Considerando que a Periódico Permanente 1 dá conta da abordagem de algumas problemáticas institucionais atuais, aqui o foco se torna observar que há uma mudança significafiva no modo de produção de parte das práticas artísticas das artes contemporâneas, algo da ordem de uma redução de fatores de mediação e do investimento em relações diretas, imanentes, entre atores envolvidos nos agenciamentos da arte (e do que mais se desenrola). Um modo de produção que, anoto, se altera por conta de uma série de aspectos elaborados há décadas pelas práticas, visto que é resultado de uma “transformação produtiva” da produção artística em seus aspectos mais exteriorizantes e mais interiorizantes, ou em outras palavras, comuns e singulares. (Veja a palestra de Ana Paula Cohen, na exposição Lygia Clark). É bem por isso que se torna pertinente, me parece, analisar o que são possíveis “crises” no campo de produção artístico e observar novos modos constituintes (nas instituições e nas práticas elas mesmas). Negando a metodologia de um formalismo, sugiro experimentar falar por outro lado, como no campo antropologia, da produção de pontos de vista diferentes, da experimentação desses pontos de vista. Ou seja, pensando como alguns projetos atuais em artes estabelecem um intercâmbio de pontos de vista, que radicalizam por sua vez alguns aspectos conservadores das artes visuais (e das práticas acomodadas em um sistema de produção de valor).

Um exemplo das práticas que o editorial pretende endereçar é o recente “Parque para Pensar e Brincar”, concebido pelo coletivo Contrafilé no Jardim Miriam, projeto que construiu um imenso playground na favela, e através do qual um grande grupo de outros colaboradores se integrou para desenvolver técnicas de construção com materiais reutilizados e desenvolver atividades, em um processo autocrítico e de relação intensa com a comunidade que os recebeu. Cada um à sua maneira, outros projetos apresentados pelo editorial são de Daniele Marx, Maíra das Neves, Camila Mello e Ali Khodr agrupados nos Dossiês. Eles não só endereçam problemáticas às práticas artísticas contemporâneas (sem pretender “resolvê-las”), mas colocam em um espaço importante a performance de “novos pontos de vista” por parte do próprio artista, o que é sintomático de uma crise de “representação de si”, de maneira e diferir de si como elemento identitário e produzir um outro. Foram selecionados pelo editorial materiais referentes também às práticas tecnoxamãs e tecnomágicas analisadas e produzidas por Fabiane Borges e Thiago Novaes, as ideias perigosas de Ricardo Ruiz e Thais Britto, os bárbaros tecnizados (que dizem “nos constituímos e vivemos da nossa hibridação”), entre outros. E outros, por sua vez, que agrupo em uma linha de proximidade mais íntima com a produção de artes visuais, constituem metodologias como a tradução e a mediação colaborativa, conceitualizadas por Jorge Menna Barreto, e iniciativas como Universidades de Verão (Capacete), e residências artísticas como Terra UNA, que se tornam espaços produtivos nas dinâmicas das artes visuais e suas hibridações com outras práticas e modos de vida no Brasil. Tais causam, à sua maneira, a provocação de insurgências estéticas, de ranhuras nas (aparentemente) suaves linhas de produção do campo das artes visuais e da produção estética brasileira, instalando desde um “onde?”, a um “como?”, e um “o que?”...

O diagrama de eventos e a crítica que re-editoro aqui se conecta sem dúvida a realizações minhas anteriores, uma delas que dialoga diretamente com o FP, o Desarquivo.org, uma plataforma aberta on line para agregar e difundir materiais relacionados a práticas artísticas atuais, assim como difundir textos, livros, revistas, imagens e documentos diversos estimulando uma esfera discursiva e “reativando” os eventos que “desarquiva”. O ímpeto desse editorial é, portanto, semelhante ao Desarquivo.org[2], instigar em primeiro lugar uma releitura, atenta, crítica a uma série de textos, relatos, artigos, vídeos percentences ao Fórum, considerando sua unidade mas sobretudo considerando sua participação em uma rede complexa de produção. Bem por isso, discorre essa  nota quase metodológica: as classificações criadas – os títulos de cada agrupamento aqui apresentado no Periódico Permanente 2 - devem operar mais como transversais do que exatamente como etiquetas. É um tanto difícil (e se pensarmos bem, desnecessário) fechar demasiadamente uma estrutura que sobresignifique o conteúdo (ainda que funcione como chave de acesso), daí serem as vizinhanças propostas com alto teor de promiscuidade e intercâmbio.

Para seguir, ressalto que o estado de “fórum permanente” que o FP instala é muito necessário em termos de manutenção de uma esfera pública que dê conta de problematizar um estado de crise (e criação), e não apenas de informar as vozes de um campo de produção. Os usos possíveis de um fórum podem garantir um passo além das redes sociais excessivamente povoadas hoje, explicitando que muita publicidade não é necessariamente a constituição de uma esfera pública, e faz parte de uma “transformação produtiva” econstituir composições maduras e com graus de autonomia de um sistema vigente. Diz Giuseppe Cocco: “a 'partitura  do intelecto'[3] pode ser o fato uma esfera pública que permita a produção e a reprodução (a circulação produtiva!) de suas dinâmicas livres e multitudinárias”[4]. Isso não significa, contudo, que “tudo torna-se de todos”, ou que haja uma apropriação livre e em geral, mas torna explícito em primeiro lugar os modos de consumo, subordinação, segregação e sobredeterminação de um sistema de produção vigente  (e da “arte contemporânea”, por exemplo), e, em segundo lugar, faz possível o espaço de insurgência de novas composições sociais (solicitando subjetividades criadoras e não “criativas” no modelo da indústria criativa). Ali não se está a salvo de capturas e subordinações, mas espera-se que haja liberdade de nogociação nas relações produtivas. A afirmação dos valores, a criação como valor, por parte de seus próprios produtores, e as suas negociações são, brevemente, o que podemos chamar de uma recomposição imanente.

A esfera pública do FP, à sua maneira, contempla as vozes que emitiram seus discursos in loco aqui dadas a serem lidas e os silêncios que se desenrolam nos seus interstícios. O silêncio contém, espera-se, uma elaboração produtiva, intempestiva, dessa produção. Este mesmo trabalho da leitura e do silêncio vai operar via vocês, leitores da Periódico Permanente 2, sugerindo que uma conversa vá se instalando desde o lançamento e se extendendo pelos 3 meses em que o editorial ocupa a capa do Periódico. O silêncio e suas crises podem ser quebrados, e devem. Portanto, se você quiser participar, escreva.

Agradeço imensamente aos  “recombinantes” que enviaram artigos, textos, relatos, autorizaram a publicação e produziram dossiês para o Periódico Permanente 2.

 

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Atenciosamente,

 

Cristina Ribas

Editora / Curadora residente

[email protected]

 


[1] COCCO, Giuseppe. Mundobraz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo. Editora Record, 2009.  Rio de Janeiro: Record, 2009.

[2] Desarquivo.org deriva do projeto Arquivo de emergência, projeto que existe/existiu como arquivo real para documentos impressos produzidos a partir de práticas artísticas, comunicativas, expressivas, realizadas no Brasil a partir de meados dos anos 2000. Em 2011 parte do Arquivo foi transformando na plataforma aberta Desarquivo.org, onde cada “arquivista” pode logar e subir conteúdo para compartilhamento.

[3] Paolo Virno analisa que o trabalhador contemporâneo é um executor virtuoso (tal como o bailarino, como o músico), ele gera o valor de seu trabalho num processo de criação e performance inerente ao trabalho que realiza, sempre em relação com outros. Ele trabalha sem obra, e isso não quer dizer sem finalidade. O trabalhador é dotado, portanto, de uma partitura de seu próprio intelecto, tomado como recurso primeiro para trabalhar. Paolo Virno: Virtuosismo e Revolução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

[4] Em Mundobraz, p. 92.

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