Joan Fontcuberta
Vertices/Vetores: diálogos |
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Joan Fontcuberta, Fauna secreta, 1987
Em 1987, o artista catalão Joan Fontcuberta, em parceria com o escritor e fotógrafo Pere Formiguera, realizou a exposição Fauna secreta, que compreende um conjunto de trabalhos ficcionais sobre um personagem cientista criado pelos autores, um certo Dr. Peter Ameisenhaufen. Entre as várias montagens desse trabalho, a primeira delas, realizada no Museu Nacional de Ciências Naturais de Madri, é aquela que mais problematiza as condições de legitimação do documento, exatamente porque confronta a instituição científica com um discurso ficcional, sem que o público seja previamente advertido sobre isso.
O Museu Nacional, ao aceitar expor esse projeto, demonstra estar disposto a relativizar e repensar seu papel. A exposição resultou numa espécie de instalação que dialogava com um universo próprio da ciência e tensionava os limites entre a realidade e a ficção exploradas pela construção de um “bestiário fantástico”. A composição era formada por anotações, espécimes dissecados, registros fotográficos, radiografias, mapas de viagens, fichas zoológicas, textos, registros sonoros, instrumentos de laboratório e outros documentos apresentados ao público, por vezes desgastados, amarelados e com outras avarias que permitiram simular o tempo e as condições de armazenamento aos quais uma documentação de interesse histórico precisa normalmente sobreviver.
Simulando esses vestígios, Fontcuberta desconstrói certas estratégias recorrentes de exposições científicas que convocam a credibilidade do público: papéis envelhecidos, termos em latim e a insígnia de Doutor associada a um nome alemão, origem que, parodicamente, parece exigir certo respeito. Junta-se a isso uma narrativa biográfica dramática que permite uma forte empatia entre o público e o personagem: mesmo que o bom senso sugira duvidar de tantos animais estranhos, a história de vida do personagem é construída para gerar comoção e para desarmar a desconfiança do público, bem como para justificar a vocação que ele teria para descobrir uma natureza que nos parece impossível.
Ao mostrar o modo como essas referências podem ser produzidas ou destacadas pela ciência para seduzir o olhar, vemos que o documento e o espetáculo podem operar de modo semelhante.
Todos os documentos se apresentam como produzidos pelo Dr. Peter Ameisenhaufen e por seu assistente, Hans von Kubert, ambos personagens criados pelos artistas, mas cujas existências se fazem também comprovar por fotografias e muitos outros documentos. Como a exposição sugere, o Dr. Ameisenhaufen buscava em suas viagens animais que sofreram alterações genéticas, exemplares raros e únicos, uma vez que as características que apresentam os tornam inviáveis como desencadeadores de uma nova espécie. Num jogo de palavras com os nomes dos própios artistas, Fontcuberta dá origem a Hans von Kubert, e Pere Formiguera a Peter Ameisenhaufen, sobrenome que significa exatamente “formigueiro”, em alemão.
No texto “Fauna: concepto y génesis” (1989), Fontcuberta diz que os personagens constituíam seus alter egos e, com essas pistas, instiga o fantástico e o imaginário no público por meio de uma gramática própria do interesse científico.
Para os artistas, no texto que acompanha o catálogo da exposição:
o que emerge aqui, em primeira instância, é uma dúvida legítima sobre a oposição entre arte e ciência. Nascida depois do Renascimento, esta divergência organizou certos tópicos cada vez mais insustentáveis, como o de que corresponde a ciência o papel de prover um conhecimento objetivo e racional das coisas, enquanto que a arte se moveria no terreno da subjetividade e da intuição; uma proporia teorias e a outra poéticas, daí que para a ciência resulta vital trabalhar com a realidade enquanto a arte o faz com a ficção e o imaginário. Pessoalmente, estou entre os que creem que a arte e a ciência não representam senão enfoques dialéticos de um processo criativo que tende, em ocasiões com uma grande convergência, a fazer com que nos aventuremos nas experiências do mundo e de nós mesmos (FONTCUBERTA, 1989, p. 3-4, tradução nossa).
O museu é visto como um lugar que contém informação qualificada, na qual se pode confiar. Nas palavras do professor Ulpiano Bezerra de Menezes, a musealização consiste no ato de transformação de um objeto em documento (MENESES, 1994, p. 32). Com isso, o público se manifestou de diferentes formas, que oscilavam entre o encantamento e uma espécie de sentimento de “traição” do acordo estabelecido, uma vez que aquilo que está dentro do museu de ciência tende a ser tomado como “verdade absoluta”.
Nesse sentido, enquanto escancaram as estratégias de sedução e convencimento das narrativas históricas, os artistas fazem do próprio museu uma peça constituinte de suas obras. Joan Fontcuberta atua justamente na fresta que permite relativizar o documento, e o faz, sobretudo, pelo uso da fotografia, que também carrega em sua tradição tensões entre realidade e imaginário.
Resta dessa experiência uma questão bastante provocativa: não seria todo documento uma construção e, ainda, toda a história uma espécie de discurso ficcional legitimado por uma gramática consolidada pelo campo da ciência? Mas, na medida em que o próprio museu se abre a esse tipo de experiência, podemos supor que as instituições estão, elas próprias, dispostas a debater sua história e suas estratégias, refazendo de modo mais crítico o acordo que lhe dá credibilidade.