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O TEXTO COMO OBRA e a curadoria como texto, por José Augusto Ribeiro

Exposições utilizam preceitos da arte conceitual para dinamizar a circulação e propor debates

O texto como obra e a curadoria como texto


Dois curadores de arte contemporânea com atuação independente, o suíço Hans-Ulrich Obrist e o costa-riquense baseado na Alemanha Jens Hoffmann, adotam exposições constituídas apenas de textos como uma das plataformas para a diversificação da prática de curadoria. Por serem conjuntos de escritos, as mostras são dotadas de uma temporalidade dilatada; podem viajar a vários pontos do globo simultaneamente e com baixos custos de transporte; circulam em publicações e na Internet sem prejuízo à fruição; e algumas prescindem de espaço físico para montagem. Os trabalhos são realizados ou “ativados” por outras pessoas que não o idealizador, em casa ou na rua, e também surgem como reflexões sobre assuntos formulados dentro de um discurso curatorial, num misto de enunciado, argüição e peça artística. Assim, as investigações a respeito dos sistemas de organização de uma exposição e das possíveis maneiras de apresentá-la acabam por rever concepções de artista, curador, trabalho de arte e a natureza do espectador.

Notório por mostras em quartos de hotel, biblioteca, avião e outros locais inusitados que nada têm a ver com a pretensa neutralidade do cubo branco, Hans-Ulrich Obrist, atualmente curador do Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, coordena há mais de 10 anos a exposição “in progress” Do it, formada, como indica o título, por trabalhos “do-it-yourself”. Ou seja, os artistas se encarregam das instruções e quem quiser faz a performance, o desenho, a instalação, a escultura, a ação, o que for. Os projetos se dividem em segmentos para execução no museu, no ambiente doméstico e para veiculação na TV. A instituição que abrigar a mostra deve cumprir as seguintes regras: escolhe e constrói os trabalhos que deseja apresentar, disponibiliza o material necessário para os freqüentadores realizarem os próprios exemplares, fotografa cada uma das peças para a documentação do artista-autor e destrói tudo ao término do programa, a fim de evitar o “fetichismo” dos objetos. As configurações possíveis das obras são várias, enfim, tanto quanto o número de pessoas que as efetivam.

O artista italiano Michelangelo Pistoletto, um dos mais de 100 integrantes de Do it, exorta o espectador a esculpir uma bola de papel jornal úmido com um metro de diâmetro e a sair pelas ruas, rolando a esfera ao longo do trajeto programado para o dia. A artista iugoslava Marina Abramovic propõe algo literalmente mais cortante: uma receita da cozinha “espiritual”, em que um dos passos é fazer uma incisão “profunda” no dedo médio da mão direita com uma faca e... “comer a dor”. O primeiro, exeqüível, é um dos trabalhos a serem feitos a partir do espaço museal. O segundo, indicado para realização na casa do leitor-participante, tem a essência na escrita; o sentido do poema-receita se completa com a imagem que os versos sugerem e a apreensão se dá pela leitura, nada mais. A versão televisiva da exposição fica por tempo indeterminado na rede mundial de computadores, no endereço www.e-flux.com.

No mesmo sítio, Jens Hoffmann abriga, desde julho passado, a exposição Next Documenta should be curated by an artist ("A próxima Documenta deve ser curada por um artista"), em referência à mostra que se realiza em Kassel, na Alemanha, de cinco em cinco anos, um dos principais eventos internacionais dedicados à produção artística recente. O título, mais que uma asserção, é uma pergunta dirigida a 29 artistas de todo o mundo, inclusive três brasileiros, Ricardo Basbaum, Laura Belém e Cildo Meireles.

De acordo com Hoffmann, as respostas, os textos dos artistas, são “em parte” trabalhos de arte autônomos e “em parte” contribuições à discussão sobre as relações entre curador e artista e, por extensão, os limites entre curadoria e obra de arte. As opiniões se dividem. De um lado, estão os que não vêem pertinência na questão, como Lawrence Weiner, para quem se “a próxima Documenta deve ser curada por um artista”, que “o próximo omelete seja feito por um carpinteiro” –a mensagem está no título do trabalho. Noutro plano, ficam os abolicionistas dos limites que divisam o papel do curador e o do artista. Basbaum é um destes e, em poucas linhas, explica noções de “artista-etc.” (curador-artista, escritor-artista, teórico-artista, produtor-artista) e “curador-etc.” (aquele que pode atuar também noutras funções, como artista-curador, diretor-curador, daí em diante). 

O tema aterrissou no Brasil em formato de mostra, com outra curadoria de Hoffmann, A exposição como trabalho de arte, organizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, no começo do ano. Desta vez, o curador convidou 11 artistas, curadores e críticos do país a responder se uma exposição pode ou não ser um trabalho de arte por si só, “sem qualquer trabalho de arte”. A maioria (composta por Paulo Herkenhoff, Adriano Pedrosa, Ivo Mesquita e Iran do Espírito Santo, entre outros) prefere o esquema “artista faz arte e curador, curadoria”. A artista carioca Laura Lima é a única a dizer que sim, “uma exposição pode ser uma obra de arte, mesmo sem obra de arte”; Basbaum fala de uma “co-autoria artista/ curador”; e Artur Barrio devolve com outra pergunta, lacônica: “Que importa?”.

Importante ou não, a proposta de Hoffmann é pelo menos oportuna. Converge para uma agenda que põe em pauta a atuação do agente curador e o regime de divisão de trabalho e de poder no mercado de arte – a 50ª Bienal de Veneza deu visibilidade à matéria propondo “a ditadura do espectador” para aplacar as grandes narrativas do curador considerado tirano, onipresente em megaexposições. O que mostra a história recente é que curadores deixaram de se ocupar apenas da constituição de acervos públicos, para tornarem-se “diretores de exposição”, reivindicarem a figura de autor e assumir espaço nuclear nos mecanismos de produção e de circulação da arte.

Atento às acusações de que os seus colegas são alvo –a mais recorrente é a de reduzir ou deturpar os sentidos de proposições artísticas díspares ao usá-las para “ilustrar” um pensamento–, Hoffmann propõe um debate “examinando o próprio conceito de curadoria” e o apresenta nos moldes de uma exposição tradicional, com os resultados nas paredes da galeria do Parque Lage. A provocação reverbera indagações sobre as formas de legitimação, a função das instituições e os modos de ocupar os locais de difusão da arte. Daí o “engajamento mais profundo” do curador com esta forma “particular” de apresentá-la.

A tônica se justifica, nos termos de Hoffmann, à medida que curadores se interessam “mais e mais” por levantar exposições “criativas” e artistas se envolvem “seriamente” com a curadoria. As participações de Gabriel Orozco e de Rirkrit Tiravanija na organização de dois módulos da edição passada da bienal italiana, respectivamente “Cotidiano Alterado” e “Estação Utopia” –este em co-autoria com Obrist–, são citadas, na apresentação de Next Documenta..., como exemplos de trânsito livre.

Por sua vez, os curadores de Do it, Next Documenta... e A exposição como trabalho de arte transplantam para as mostras noções que artistas conceituais desenvolveram na metade dos 1960 para a redefinição ou o desaparecimento do objeto artístico. Formulam concepções de exposição como índice (espécie de fichário de orientações que levam à feitura dos trabalhos), como idéia (a pensar, tal qual em um debate, o artista na curadoria) e como análise (sobre se a exposição pode ou não ser obra). Será que a crítica de arte Lucy Lippard, autora do livro Six years: the dematerialization of the art object, diria que a presente é a época da “desmaterialização” da exposição?

Um recuo maior no tempo credita a origem de Do it, ou melhor, dos trabalhos de arte de instruções, ao francês Marcel Duchamp, que em 1919 presenteou a irmã e o cunhado recém-casados com um bilhete sugerindo que o par levasse um livro de teoria geométrica à janela e deixasse o vento folhear as páginas até abrir-se um problema para resolução. Depois disso, talvez só os “cartões-evento” do grupo Fluxus antecedam a multiplicidade de obras textuais que desponta com os conceitualistas norte-americanos Joseph Kosuth, Robert Barry e Douglas Huebler, ingleses Dan Grahan, Victor Burgin, Keith Arnatt e membros do grupo Art & Language, italianos Giulio Paolini e Pier Paolo Calzolari, no Brasil, Julio Plaza, Barrio e Mário Ishikawa, entre tantos outros.

Radicalidade e experimentação na procura por modalidades diversas de curadoria são, ainda, derivados da primeira geração conceitual. Na linhagem rumo à “desmaterialização” da exposição, o então galerista norte-americano Seth Siegelaub figura como um precursor. É dele a mostra January 5-31 1969, cujo catálogo tornou-se informação primária e a organização dos trabalhos nos espaços expositivos virou suplemento; em March 1-31 1969, apenas o livro ficou na galeria. Os gestos, somados à inventividade autoral dos “realizadores de exposições” Pontus Hulten (Machine, 1968) e Harald Szeemann (When attitudes become form, 1969, e Documenta V, 1972), ajudaram a sedimentar a percepção de curadoria como processo autônomo, como texto, seja ele uma narração sobre a história da arte, uma crítica ou um comentário sobre aspectos e temas da produção. Tudo com princípios criativos e direitos próprios, a despeito de o discurso proferido se estruturar a partir de signos alheios. O que não estava em jogo, e ainda parece não estar, é se isto faz do curador um artista.


José Augusto Ribeiro, jornalista, é torcedor da Associação Portuguesa de Desportos. [email protected]