(NÃO) PANORAMA 2003: DESARRUMAÇÃO CLEAN, por Guy Amado
(NÃO)PANORAMA 2003: DESARRUMAÇÃO CLEAN
O MAM de São Paulo apresentou até 30 de novembro o que seria a versão 2003 de seu tradicional Panorama da Arte Brasileira. Ou, como procura esclarecer o curador convidado para essa edição, o cubano Gerardo Mosquera, um "anti-Panorama". Explica-se essa afirmação em diversos níveis, a começar pelo convite a um profissional estrangeiro para a curadoria do evento, fato inédito em sua história, assim como pela inclusão de artistas também estrangeiros.
(Desarrumado) – 19 Desarranjos, título da mostra, evidencia um nítido distanciamento das premissas do Panorama tal como o conhecemos – entendendo-se por isso o intuito de “reunir obras modernas, de alto nível, de artistas de todo o Brasil, a fim de possibilitar... uma visão global da arte brasileira", como prescrito no regulamento de sua primeira edição, em 1969, bem como as diversas alterações por que passou em sua trajetória, notadamente a partir dos anos 1990. Dessa forma, ajuda muito na leitura deste evento abolir quaisquer expectativas prévias acerca de um "formato Panorama" e ter em mente que SE trata de uma exposição com um mote curatorial claro e autônomo, onde se propõe um recorte da produção brasileira a partir da noção de desarranjo. Esse termo fundamenta a concepção autoral da mostra e sintetizaria, para o curador, uma parcela razoável da fatura artística atual no país (cabe ressaltar que os três estrangeiros convidados - o argentino Jorge Macchi, a chinesa Kan Xuan e o belga Wim Delvoye – foram assimilados como sendo também "meio brasileiros", no entender do curador, dotados que seriam de certa "poética brasileira" em sua produção; posição relativamente arbitrária e questionável).
Mosquera desenvolve a idéia de desarranjo como vinculada a uma inclinação construtiva manifesta em segmentos da arte brasileira, desde a introdução dos preceitos concretistas no país até os infinitos desdobramentos que a seminal experimentação neoconcretista não cessa de alimentar. O curador vê a tendência à assimilação deste legado como um diferencial qualitativo tupiniquim – menos pelo seguimento de seus postulados que pelas vias de uma livre reinterpretação dos mesmos; notadamente na tendência em partir de estruturas e procedimentos desconstrutivos como estratégias estético-discursivas que colaborariam para constituir a noção de "desarranjo criativo" que é aqui central.
A mostra em si é interessante e bem montada. A valorização de áreas intercomunicantes na ocupação do espaço, utilizando-se um mínimo de painéis, bem como da luz natural que a fachada envidraçada do museu permite, resulta num projeto expositivo limpo e arejado – trunfos, sem dúvida, de um "anti-Panorama" enxuto, com apenas 21 artistas, que nega a disposição compressiva de um formato efetivamente panorâmico.
Se a presença de um núcleo central com a obra de Leonilson – um tanto "avulso" na relação com seus pares circunstanciais – sinaliza um desarrumo de natureza interior, refletindo menos questões formais que aspectos vivenciais, alguns trabalhos evidenciam de imediato a adequação à proposta curatorial, conferindo mesmo alguma literalidade ao conceito de "desarranjo/desarrumo" introduzido por Mosquera. É o caso das composições-apropriações do jovem maranhense Marcone Moreira, da anárquica e poética reconfiguração de cartografias marítimas apresentada pelo argentino Jorge Macchi, da malha de dominós de José Patrício, dos arranjos despojados de Umberto Costa Barros (arquiteto carioca de carreira artística interrompida) e das des-estruturas da série Descalas, de Cildo Meireles. Cabe ressaltar que Cildo tem sua presença aqui percebida como algo "forçada", representado que está por um trabalho que mais se afigura como "de ocasião", em peças que se ajustam confortavelmente ao mote temático mas que não parecem refletir a força da obra do artista (dado particularmente curioso quando se sabe que Mosquera é grande conhecedor da produção de Cildo).
Em outros momentos a conexão com o mote temático ocorre de modo mais discreto, como na intervenção de Adriana Varejão, que reveste o corredor do museu com azulejos decorativos - reais, não mais 'simulados' - que trazem imagens de ervas e plantas alucinógenas ou que são utilizadas como drogas, revelando uma "botânica proibida". O resultado é de presença elegante e perturbadora. Da mesma ordem sutil é o trabalho elaborado por Jailton Moreira e Lucas Levitan. A dupla concebeu uma série de 100 capas de CDs ilustrando eventos musicais fictícios mas altamente verossímeis, fruto de intensa pesquisa fonográfica e iconográfica. Investigando as tendências de design da época dos artistas – nacionais e estrangeiros - que elegem, Moreira e Levitan inventariam e reinventam momentos da música num exercício saboroso que combina certo grau de fetichismo, uma pitada informal de antropologia, nostalgia e o prazer da experimentação artística.
Numa proposta também de presença discreta mas que se anuncia mais, digamos, explosiva, Paulo Climachauska apresenta uma série de precários coquetéis molotov fabricados exclusivamente a partir de materiais relativos à pintura - potes para pincéis, lona de tela, terebentina, tinta. Peças investidas de aspecto simbólico mas ainda "funcionais", estes múltiplos são espalhados casualmente ao longo do MAM, numa ação que se estende ainda – de forma mais pontual - aos acervos da Pinacoteca e do Museu do Ipiranga, "dialogando" com obras emblemáticas na história da pintura brasileira (particularidades contextuais à parte, impossível não traçar paralelos com a contundência dos poderosos molotov - construídos a partir de garrafas de Coca-Cola - propostos nos anos 70, "no calor da hora", pelo mesmo Cildo Meireles que se vê aqui representado de maneira tão pontual como deslocada).
A propósito da característica de trabalhos que se expandem para além do espaço da exposição, defendida como outro diferencial deste "não-Panorama" pela curadoria, há que se mencionar um projeto que terminou em fiasco, de autoria de José Guedes. O artista havia proposto uma intervenção sobre as faixas de pedestres, que "esticaria" indefinidamente, numa ação simbólica, em ruas de intensa circulação de São Paulo. O trabalho foi no entanto inviabilizado por conta de entraves burocrático-legais, não obtendo autorização para se efetivar como inicialmente concebido. Decidiu-se então por uma solução paliativa, instalando-se uma versão mais "modesta" do projeto no percurso interno do Parque do Ibirapuera, na rua que contorna os prédios da Bienal e do MAM – um arremedo de via pública metropolitana, convenhamos. O resultado consiste numa adaptação precária e algo constrangedora, forçada a ter lugar em um contexto amortecido, absolutamente diverso do previsto inicialmente; seria talvez o caso de se questionar a procedência da realização da empreitada nas condições em que se deu.
Voltando ao interior do museu, um momento mais feliz tem lugar na sala menor, no diálogo estabelecido entre as obras de José Damasceno e José Patrício. Até certo ponto óbvia, pela relação de atração por oposição e complementaridade que as peças parecem naturalmente estabelecer entre si, a vizinhança entre estes artistas estabelece uma dinâmica silenciosa de aproximações e contrastes. Motim, de Damasceno – instalação composta de peças de xadrez num arranjo difuso sobre a parede, sugerindo uma revolta à trama ortogonal e à lógica analítica do jogo - e 280 Dominós, de Patrício – uma variante das obsessivas composições com dominós sobre as quais o artista vem trabalhando há anos – dialogam a partir de polaridades como ordenação e desarrumação, ruído e silêncio, racional e aleatório, comentando o desarranjo da ordem e do acaso.
Ao final do percurso, contudo, resta um apanhado de impressões contraditórias dessa exposição, que carrega uma alcunha ("Panorama...") inadequada e de resto desnecessária para o formato de que foi investida. Se a seleção da curadoria dá conta, por um lado, de traduzir visualmente o conceito que propõe, chama a atenção, em uma mostra calcada na noção do desarranjo, a extrema limpeza visual do conjunto e a intenção DE privilegiar uma produção que, se pode ser articulada por um viés (des)construtivo, é também marcada por uma fisionomia essencialmente clean, de presença e ocupação espacial "limpas", sugerindo uma tônica excessiva na ilustração do conceito que a agrupou.
Mais que familiarizado com a arte brasileira, Gerardo Mosquera faz questão de reiterar um discurso bem-intencionado e de preocupações anti-reducionistas com relação à mesma - caso da produção que aqui apresenta como desarrumada. No entanto, e sobretudo considerando-se a perspectiva de itinerância internacional prevista para esse "anti-Panorama", não há como descartar a possibilidade de leituras um tanto rasteiras que o conjunto destes trabalhos, tal como aqui articulado, pode sugerir. Na esteira do binômio desarranjo/desarrumo que norteia a exposição, e contrastando com as aspirações de seu curador, fica a sensação de que, ao circular no estrangeiro, o conjunto dessa "plástica anti-samba" (nas palavras de Mosquera) pode oferecer uma apreensão da arte brasileira ainda por vias esquemáticas. Isto se verificaria não mais pelo (quase) superado viés estereotipado do "tropical-exótico-luxuriante", mas na apologia – espera-se que involuntária – de uma inefável "qualidade criativa" do brasileiro que incorpora a adversidade e a precariedade como dados indissociados da prática artística, assimilados como elemento formalizador a ser inventivamente subvertido (o que transpareceria em trabalhos como os de Costa Barros, Patrício, Marcone, Fernanda Gomes e Sara Ramo). Se é sabido haver alguma procedência nessa equação, é igualmente conhecida a leviandade com que, a partir de leituras rasas de características como estas, se passou a referir e a valorizar uma certa “vocação internacional" da arte brasileira – fenômeno infelizmente mais associado a uma lógica de mercado (e do qual são sem dúvida representativos nomes como Vik Muniz, Ernesto Neto e Adriana Varejão, presentes nesta mostra) do que, como seria preferível, ao reconhecimento de uma movimentação que se desenvolve de modo talvez irregular mas calçada na singularidade e numa capacidade criativa que lhe confere autonomia e resiste a compartimentações. Sob essa ótica, os elegantes desarranjos apresentados terminariam por se constituir em um recorte da cena artística brasileira que paradoxalmente solapa algumas preocupações expressas pela curadoria.
Guy Amado é pesquisador em arte contemporânea pelo IASCA (Institute of Advanced Studies on Contemporary Art, Chicago), mestrando em História da Arte pela ECA-USP e crítico de cinema frustrado. Divide seu leque de interesses entre arte, quadrinhos, esportes radicais (especialmente sinuca) e diversões eletrônicas. Desempregado há quase dois anos, não vai ao teatro há três e não gosta de dança. Não acredita em anjos e alega já ter atirado em duendes. [email protected]