ARTE NO CAFÉ DA MANHÃ, por Cristiana Tejo
Jornalismo Cultural e Arte Contemporânea
Matérias publicadas recentemente em veículos de
comunicação no Brasil e no Exterior apontam a desconexão entre artes plásticas
e sociedade. A revista Bravo de
outubro de 2003 trouxe um artigo sobre a Bienal do Mercosul que questionava a
falta de público para a arte contemporânea, como se o distanciamento da
audiência fosse um sintoma apenas do hermetismo detonado pelas vanguardas do início do século 20.
Esse texto, por sua vez, apoiava-se numa pesquisa da revista Veja sobre os 40 artistas mais
influentes do Brasil. Não surpreendentemente, num país que mal preza sua
herança literária e praticamente desconhece as artes plásticas de qualquer
período ou procedência que seja, nenhum artista plástico constava na lista. Os sinais
do desprestígio não param por aí. Um estudo promovido pela Interscience [empresa
especializada em pesquisas de mercado], publicado na revista Carta Capital em agosto deste ano,
divulgou que, de 100 empresas de vários setores que foram ouvidas, apenas 23%
investiam em cultura. Desta porcentagem, 74% investiam em teatro, 61% em
livros, 48% em música e 9% em artes plásticas e em educação ambiental.
Trazendo para o âmbito internacional, podemos lembrar de outra estatística desastrosa para a área. Um artigo publicado no jornal The Daily Telegraph, da Inglaterra, apresentava o resultado de uma outra pesquisa que diagnosticava a ignorância dos britânicos (logo eles, reconhecidos por sua dedicação à manutenção de sua malha diversificada de museus...) em relação à história da arte. De acordo com o estudo, organizado pela Enciclopédia Britannica, aproximadamente 49% dos entrevistados não conseguiram identificar quem pintou a Mona Lisa, sendo que uma resposta em dez atribuía a Vincent Van Gogh e não a Leonardo Da Vinci a autoria de um dos quadros mais difundidos em todo o mundo. Só para esclarecer que esta não é uma crise somente da arte contemporânea, em seu primeiro ano de funcionamento a Tate Modern atraiu o equivalente ao total de visitantes de todos os museus londrinos (incluindo a National Gallery, a Tate Britain e o Museu Britânico).
Esta crise de legitimidade generalizada em torno das artes plásticas pode talvez ser entendida, entre outros motivos, por sua inadequação às indústrias culturais e à sensibilidade massificada. A arte não faz parte da vida das pessoas. A música e o cinema, de uma forma ou de outra, sim. Por não se transformar facilmente num “produto” a ser vendido e massificado, seu papel nos mass media resume-se a ilustrar matérias ou entrar na pauta quando um evento factual assim o permite, já que o jornalismo cultural praticado no Brasil desde a década de 80 vem se norteando pela “desova” das mercadorias culturais. O espaço destinado à reflexão e ao aprofundamento das questões referentes ao sistema e à produção artística é cada vez menor em vários jornais brasileiros, ou pode-se dizer inexistente, como é o caso em boa parte das regiões Nordeste e Norte.
A falta de uma formação em artes plásticas mais sistemática de toda a sociedade coloca nas mãos do jornalista cultural a responsabilidade de formar o repertório do leitor/futuro espectador e/ou consumidor de arte, atualizando-o com as discussões que são travadas no meio artístico, familiarizando-o com as idéias e os trabalhos de artistas de todos os tempos. A mediação feita para o público amplo na grande imprensa perpassa vários aspectos delicados. Em primeira instância, há que se pensar no “entrelugar” do jornalista cultural hoje e a dificuldade de circunscrever seu campo de atuação, tendo em vista a crescente participação dos jornalistas em curadorias de arte, em júris de salões, em revistas críticas. Especializado, pois o texto de cunho opinativo exige conhecimento do que se está falando, mas muitas vezes não considerado um crítico, talvez pela ligeireza do texto (o que pode resvalar na superficialidade), o profissional de jornalismo que atua nos cadernos culturais vive sempre em meio a demandas de posturas por vezes antagônicas: a busca pela objetividade e a imparcialidade dos códigos do jornalismo moderno e a realidade subjetiva e opinativa que a escrita sobre cultura pede. Além disso, exige-se a química mágica de traduzir para seu José da esquina, sem banalizar ou esvaziar, trabalhos artísticos sofisticados, que requerem repertório amplo. Claro que também sem menosprezar a capacidade das pessoas. Se os textos críticos dos catálogos e paredes dos museus também medeiam o discurso artístico e os jornalistas estão exercendo várias ocupações, afinal, o que diferencia os espaços da crítica e do jornalismo cultural? Quando um jornalista deixa de ser jornalista e é chamado de crítico?
Num momento anterior à profissionalização do jornalismo brasileiro, dado por volta da década de 60, o espaço dos jornais e revistas era ocupado pelos produtores, pelos literatos, pelos acadêmicos e pelos intelectuais que refletiam sobre os diversos campos artísticos. A emergência da profissão em si corresponde também à valorização dos bens culturais gerados pela indústria cultural e à necessidade de subtrair os jargões e o palavreado específico dos artigos, “simplificando” a linguagem para atingir o leitor, esse alvo sem rosto e sem forma, na maioria dos casos. Com o passar dos anos, chegar ao caderno cultural passou da coroação do estágio de amadurecimento intelectual para o início da trajetória do profissional recém-saído da faculdade. A densidade analítica, a bagagem intelectual, vai sendo formada no decorrer da feitura das resenhas e das reportagens, situação que exige do jornalista fôlego e perfil para pesquisar e se aperfeiçoar solidamente, acelerando o processo de maturação. Ganha-se com a base empírica, que gera ferramentas de reflexão que são potencializadas pelas leituras e embates teóricos.
Infelizmente, o que fica em nossa memória são os exemplos jornalísticos em que a leviandade e a busca pela polêmica fácil imperam, o que acaba reafirmando a ojeriza generalizada dos artistas e intelectuais pelos jornalistas e ofuscando o trabalho importante que profissionais do jornalismo cultural fazem pela legitimação e a ampliação da visibilidade das artes plásticas na sociedade brasileira. Revistas especializadas, sites e jornais alternativos são imprescindíveis para viabilizar a crítica, fazer circular discursos, pluralizar as vozes, mas sua efetivação também depende da inserção das discussões da área na agenda do país, na grande imprensa, na vida das pessoas. A população precisa ser contemplada nos assuntos que também lhe dizem respeito, como a manutenção de acervos públicos que contam a memória plástica do país, por exemplo. Segmentar é uma tendência sadia, mas não se exclui a importância da representação do setor na leitura que acompanha diariamente o café da manhã do brasileiro.
Cristiana Tejo é jornalista cultural, mestranda em comunicação pela UFPE e coordenadora de Artes Plásticas da Fundação Joaquim Nabuco.