Sobre a obra “Jaz”, de João Loureiro
O trabalho que João Loureiro propôs para os arredores do Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, no município de São Miguel das Missões, Rio Grande do Sul, parte do campo de questões sugerido pelo edital Arte e Patrimônio 2007. O Sítio abriga as ruínas da maior e mais próspera das reduções jesuíticas em atividade nos séculos XVII e XVIII na região onde habitavam os índios Guaranis, reunindo características muito eloqüentes para uma discussão das estratégias de tratamento do patrimônio cultural.
A experiência das reduções jesuíticas dos índios Guaranis recebeu diversas interpretações históricas, servindo a diferentes apropriações ideológicas. Entre elas, sobressai a imagem de uma organização racional da sociedade em que não havia dominantes e dominados, não havia propriedade privada e se trabalhava e se produzia fartamente, ou seja, onde os princípios civilizatórios ocidentais, aplicados sobre homens “não corrompidos”, alcançavam êxito. No século XVIII a experiência das missões teria inspirado as teorias do bom selvagem e sido objeto de comentários elogiosos de Voltaire e Montesquieu. Falou-se na “República comunista dos Guaranis” e nas conseqüências políticas de tomar seu exemplo histórico. Falou-se na comunidade cristã “pura”, que atualizava o sonho de uma existência feita de “amor e paz”. As aproximações históricas se basearam, sobretudo, em evocações exemplares, e isso se impõe na visita às ruínas; é como se elas fossem capazes de conservar algo daquela promessa civilizatória.
O Sítio de São Miguel já foi objeto de importantes estudos e a obra de João Loureiro não pretende, nem poderia, sugerir novas hipóteses sobre os fatos passados. O que deve constituir a relevância da proposta do artista é justamente a interação concreta com o Sítio, que fará com que, por um lado, as questões formalizadas na obra de arte contemporânea possam ser continuamente enunciadas e confrontadas com seus referentes e, por outro, que as ruínas sejam informadas por aquela presença. A obra deverá, se bem sucedida, abrir uma nova possibilidade de percepção do Sítio, indagando os padrões de valoração sedimentados nas narrativas históricas que cercam as ruínas.
Intitulado “Jaz”, o trabalho de João Loureiro consiste numa escadaria que conduz a uma sala subterrânea. O visitante não tem acesso ao interior da sala, que é totalmente fechada por um pano de vidro. Do patamar inferior da escada, ele vê, dentro da sala, uma pedra artificial e um fragmento (o “busto”) do que parece ser uma estátua agigantada cujo corpo estaria enterrado. Trata-se de uma representação de um bandeirante, com traços bastante estilizados, em referência aos muitos monumentos construídos, sobretudo no estado de São Paulo, para “glorificar” o bandeirantismo. Uma segunda pedra artificial está no próprio patamar inferior da escada, fora da sala. A estátua e as pedras são quadriculadas. Disposto a indagar os modos de constituição da história e particularmente as formalizações que organizam uma memória cultural a partir dos acontecimentos passados, o trabalho traz para a região da redução de São Miguel Arcanjo um personagem histórico que, nas narrativas locais, ocupa um lugar relativamente secundário.
Como se sabe, os bandeirantes atacaram as missões no século XVII, capturando os índios catequizados (considerados já “domesticados”) para a escravização nas plantações de cana de açúcar. No entanto, por uma série de razões combinadas – entre elas a descoberta do ouro em Minas Gerais, que atraiu a atenção dos bandeirantes, e a resistência armada de jesuítas e índios, autorizada pela coroa espanhola após longas negociações – os ataques cessaram, e as missões sobreviveram por mais algumas décadas. O que as destruiu de fato foram ações das próprias coroas portuguesa e espanhola – estas as “vilãs centrais” de uma história que é romantizada, por exemplo, no “Espetáculo de som e luz” que acontece todas as noites dentro do Parque das Missões.
Esse personagem secundário, porque “derrotado”, é submetido pelo trabalho a um regime oposto ao do monumento tradicional: ele não se encontra em posição “heróica”, mas está imobilizado, esterçado e enterrado; ele não pode ser visto à distância; ele não pode ser circundado; ele não solicita uma identificação simbólica positiva com a população e não omite, mas revela, principalmente através da quadrícula, a condição construída, planejada, artificial e esquadrinhada de seu possível vínculo com determinados fatos históricos. As pedras, por sua vez, aludem ao tipo particular de apelo e reivindicação de verdade que a aparência de ruína empresta a um local1. Mas as pedras também são quadriculadas, e sua natureza é a mesma natureza da estátua. A configuração da sala sugere uma escavação arqueológica, escavação na qual, ao invés de indícios autênticos de fatos passados, encontraram-se formalizações de discursos ideológicos sobre esse passado. A existência de uma pedra quadriculada fora dos limites protegidos da sala faz referência a uma situação que ocorre no próprio Parque das Missões: fora da área cercada encontram-se pedras entalhadas bastante semelhantes àquelas que, estando dentro do Parque, são consideradas patrimônio cultural.
João Loureiro e Ana Luiza Dias Batista