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O Patrimônio no Espelho da Arte

Palestra apresentada no Museu de Arte da Universidade Federal do Pará, em Belém, no dia 14 de setembro de 2007

Com o edital Arte e Patrimônio, o IPHAN escolheu celebrar os seus 70 anos contornando celebrações pomposas. Ao fomentar o diálogo entre artes visuais contemporâneas e patrimônio artístico e histórico nacional, convocou o pensamento artístico e curatorial a pensar a atualidade do patrimônio cultural. Assim, demandou uma revisão de um Norte especial da instituição – a equação tradição e modernidade – que a caracterizou desde a sua criação.

Equacionar tradição e modernidade caracteriza a SPHAN, o IPHAN, mas também o Museu Histórico Nacional e as ações de configuração e defesa do patrimônio cultural brasileiro capitaneadas por Gustavo Barroso, que operava com referências tradicionais semelhantes e outras de modernidade em relação à SPHAN. Em arquitetura, em vez do racionalismo funcionalista, defendiam o movimento neocolonial, que era entendido como modernidade na década de 1920.

No IPHAN, é possível ver um equacionamento de modernidade e tradição específico, mas variado, devido às diferentes origens, opções e atuações dos arquitetos, artistas e poetas engajados na instituição. Esse equacionamento abarca o Museu das Missões, com projeto de Lucio Costa, e o Museu Regional de São João del Rei, com projeto de Edgar Jacinto; ou o palácio Gustavo Capanema – que se tornou uma sede multiemblemática da instituição –, com as obras díspares de Jacques Lipchtz, Celso Antonio, Bruno Giorgi e Cândido Portinari; para não falar das diferentes direções de seus livros de tombo, das divergências quanto ao tombamento produzidas ao longo do tempo.

Tradição e modernidade também eram equacionadas por artistas de vanguarda não comprometidos com a tradição nacional, nem com essas instituições, mas com o internacionalismo e/ou o universalismo, a partir de posições mais ou menos individualistas. Basta pensar nos expressionistas – Oswaldo Goeldi e Lasar Segall –, nos racionalistas em arquitetura – Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira, Henrique Mindlin, Sergio Bernardes, entre outros –, nos concretistas e neoconcretistas – Geraldo de Barros, Willys de Castro, Amílcar de Castro –, nos pós-conceituais – Waltercio Caldas, José Resende, Artur Barrio, entre muitos outros.

Equacionamento de tradição e modernidade que não caracteriza apenas as vertentes, instituições e artistas citados, sendo um dado das culturas em geral e, assim, também das culturas na contemporaneidade, inclusive a brasileira atual. O que pressupõe possibilidades de conexão amplas, muitos sentidos, muitas formulações, ambigüidade, abertura.

Algumas noções de patrimônio cultural sobressaem do edital, a partir da definição de campo de valor. Arte é vinculada a: história, experiências, experimentações, movimentos e estilos artísticos; Tradição, a: antropologia e miscigenação; Civilização, a: ordem, racionalidade, técnica, urbanismo e ocidentalização; Cosmologia, a: arqueologia, etnia, não ocidentalidade, religião. Uma clivagem baseada em dicotomias, com ausência de cruzamentos. Apesar de falar em miscigenação, essas ficam restritas às tradições, como se as civilizações não fossem feitas de mistura, como se a tradição prescindisse de experiências e experimentações, como se a cosmologia fosse carente de ordem, como se a arte não tivesse dimensões antropológicas. Entretanto, fica a esperança de as respostas artísticas e curatoriais embaralharem tudo isto.

Fator decisivo é o Norte claramente estabelecido no edital – o diálogo será comandado pelas artes visuais contemporâneas. Apesar de o edital reincidir em certa institucionalização do meio de arte, na qual as figuras do produtor e do curador acompanham e, de certo modo, antecedem e dirigem a dos artistas, é certo que foca na reflexão e na produção artísticas contemporâneas, que demanda obras de arte e reflexões estéticas atuais. Com certeza, é preciso compreender que contemporaneidade não diz respeito apenas ao que é feito hoje, pois muito do que é produzido hoje é nostálgico, assim como o passado só sobrevive como arte porque é atual. Mas é perceptível que tipo de ação artística o edital demanda com os termos ação, ativação, operação. Diálogos, obras, reflexões – outros termos que ressaltam agir, fricção, ruído, tensão. Em suma, o edital visa à dinamização do campo cultural.

Mas foca qual arte? O edital fala em nacional, regional, local – circunscrições que permitem tensões, mas também acomodações, acordos. O horizonte do patrimônio cultural é a nação? A arte ainda se circunscreve à nação? E a dimensão universal do patrimônio cultural e da arte? Com efeito, desde o modernismo brasileiro a arte participou ativamente da construção da nacionalidade. A produção contemporânea participa? Em que medida? As respostas ao edital permitirão avaliar um pouco mais essas questões.

A arte contemporânea estabelece, com certeza, vínculos com a cultura erudita, popular e de massas; Arthur C. Danto fala da sobreidade – aboutness – da arte contemporânea, o seu pensar e dialogar com o mundo. O que traz á mente relações com e referências a grupos e causas sociais: arte e gênero, arte e sexualidade, arte e religião, arte e etnia, arte e política, arte e nacionalidade, entre outros. Tendo em vista o que já produziu em arte no Brasil nessas tendências, o encontro fomentado pelo edital é possível e até mesmo previsível, fazendo esperar propostas instigantes.

O item 1 do regulamente – “Do objeto” – fala em “construção de perspectivas históricas”, o que parece bem complicado, seja pela menção à perspectiva e suas dimensões racionalizantes, ordenadas, homogeneizadoras; seja pela sobreposição à arte das funções da história, enquanto arte e história são campos, disciplinas, práticas que guardam diferenças. Em contrapartida, no item 1.3 do regulamento, fala-se em “tradução em termos de arte contemporânea”. O que leva a pensar na idéia de tradução como traição. O que não é necessariamente negativo. Antes, pelo contrário: é positivo! É uma possibilidade de a arte trair idéias preconcebidas, intenções entranhadas na instituição. É a possibilidade de a arte manter alguma dimensão crítica.

Ao longo do edital perpassa a idéia de atualização e problematização das noções que foram estabelecidas na valorização do patrimônio cultural brasileiro. Atualizar implica rever, problematizar, criticar. O que sugere crítica em formato de arte contemporânea, em crítica poética. Assim, o edital fomenta a revisão do patrimônio cultural brasileiro no espelho da arte contemporânea, sabendo que espelhos distorcem, produzem imagens invertidas, e que a arte contemporânea tem uma predileção pela ruína, o caos, a desconstrução. O que deixa brechas instigantes para outros modos de pensar o patrimônio, o relacionando à crítica poética que caracteriza a arte em suas maiores realizações.


Roberto Conduru

Professor adjunto de História e Teoria da Arte no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; membro e atual presidente do Comitê Brasileiro de História da Arte.