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Alguns argumentos em proveito do estabelecimento dos quatro “Campos de Valor” para a interação da arte contemporânea com o “Patrimônio Cultural”

por Afonso Luz

Tecer algumas considerações seguindo argumentos pelos fios de nossa experiência cultural brasileira, supondo que ela tenha sido feita coletivamente, é, talvez, um modo de falar em favor da proposta apresentada. Contudo, essa unidade de uma “experiência” que se quer aqui invocar, mesmo que a favor de uma proposição heterodoxa, caiu no desuso de uma  atualidade repleta de contra discursos. Não há só o esvaziamento de falas em favor dos contextos nacionais, há também a complexidade dos novos territórios sócio-culturais e sua instabilidade de fluxos e refluxos populacionais. Tudo isso, sem dúvida, emergindo em termos contemporâneos com acentuada diversificação do perfil cultural e identitário que estabelece as adoções e pertencimentos aos territórios. As dinâmicas que fixavam lugares ao imaginário foram desdobradas e levadas a uma complexidade que vai muito além da idéia de “Globalização”, mesmo que  nas últimas décadas ela tenha servido ideologicamente na propulsão de novas configurações simbólicas internacionais. Falar mais desse quadro é chover no molhado.


Não sabemos ainda qual serão os re-desenhos dessas linearidades do passado, onde restarão os nós de uma amarra nacional da cultura, ou como serão os fios amealhados das tradições havidas. Sabemos, contudo, que as redes e seus tecidos contemporâneos, assim como a mobilidade e o sistemas de comunicação, traçaram uma nova esfera de valores que impõem tanto horizontes novos, quanto outras estratégias de diferenciação na organização dos resíduos do tempo passado para a sua boa sedimentação. A diversificação de perspectivas e de narrativas, contudo, não pode burlar os pontos e os marcos que se firmaram pela experiência das populações nos usos e agenciamento de saberes em cada território. Há todo uma malha simbólica que se enreda e que fertiliza o solo real e imaginário, cultos e cultivos, desde muito estabelecidos que voltam a tona e passam a permear esse processo. São estabelecimentos que se formaram na noite dos tempos, talvez desde que a ocupação da superfície terrestre se deu e se sucedeu em momentos consecutivos. Estariam eles sujeitos a desaparecer ou estão  sendo reinventados em termos novos? Eis a questão. Mas como nos lembra a anedota “ninguém é capaz de pular sua própria sombra”.   

Mas, mesmo em vão, me parece salutar dar as pistas para quem quiser perseguir o traçado da  elaboração desses possíveis campos de valor. Não pretendemos fazer o histórico do percurso que leva até a definição deles, mas algo de seu contexto político e cultural esperamos que venha a tona. Principalmente uma parte daquilo que vem sendo discutido nas instituições culturais e nos organismos multi-laterais. Há hoje, na ordem do dia, mais do que as agendas estratégicas. Há as dificuldades ocasionais e as possibilidades abertas, e ambas são  questões que estão postas pela “Convenção da Diversidade Cultural”. Mais do que um simples tratado aprovado pela Unesco, essa nomeação de uma diversidade e a amplitude desse conceito, implica uma nova discussão para os organismos multi-laterais no que diz respeito aos valores.

Para além da esfera institucional de ação, é de se supor que tal convenção repercuta também no âmbito da cultura. Não condicionando os processos simbólicos, mas estabelecendo um novo patamar crítico de confrontações e agenciamentos de valores. Se isso não deve ocorrer na dinâmica simbólica e estética, com certeza é preciso que se conceitue  e se debata adequadamente essas dinâmicas de valores, levando à formulações que impactem positivamente as fontes de financiamento e investimento que condicionam o “circuito global” da cultura. Evitando que tudo se repita mais ou menos como aconteceu na afirmação do multi-culturalismo há pouco tempo: um processo que pouco respeitou os sedimentos em suas singularidades próprias e tornou-os apenas “toleráveis”, como disse Eduardo Viveiros de Castro.

Sem querer avançar o sinal, apenas considerando esse fundo contemporâneo, talvez mais existente para quem se situa no lugar institucional que ocupa provisoriamente, mas não só, penso ser importante afirmar o que segue. 

Cultura e arte no Brasil dos tempos de agora

Arte e cultura são duas coisas muito diferentes; quem não sabe? A sabida distinção,  entre “uma coisa” e “outra”, no entanto traz seus problemas também. Se no Brasil essa separação demorou a se fixar, pelo menos em termos mais substantivos, definindo espaços e conceitos, o tempo decorrido até seu estabelecimento fez surgir outro ciclo de implicações problemáticas. Uma delas é que, ao invés da “autonomia” esperada pelas perspectivas da modernização, essa separação gerou um “circuito fechado” ou um “círculo vicioso”. Tudo acontece como se o universo de sentido da arte, a certa altura, pudesse girar em falso, mesmo com toda a sua complexidade adquirida.

Há algum tempo, uma certa heteronomia, bastante complicada na alternância de sujeitos e poderes, típica do circuito mundial de arte se fez presente na proposição de novos valores e circulações. Para bem e para mal, o destaque dos curadores e a internacionalização de referências são um sucedâneo desse processo ocorrido. De alguma maneira, o encalacramento da arte acabou por transformar as lógicas do “meio de arte” ou do seu “sistema de comportamentos e prestígios” em um “campo de valor” simbólico auto-referente, mesmo para os trabalhos que o questionam. Esse talvez seja o maior problema hoje vivido pelo universo cultural no qual as artes visuais se fixaram.
   
A órbita circunscrita de valores que põe no centro a arte é tão mais complicada ao passo que a própria arte deixa de reivindicar para si uma autonomia em relação ao Mundo. Muito pelo contrário, como bem sabemos, a arte das últimas décadas tem enunciado constantemente seu desejo de se confundir com a vida, de atravessar as relações “mundanas” da sociedade e da cultura. Mas não é incomum entre nós ver um trabalho de vitalidade estética ser rapidamente capturado pelo contexto social e institucional que ele buscava deslocar em sua operação. Mesmo as muitas formas de interação espacial e ambiental, de  presença urbana que foram sucessivamente propostas não repercutiram no alargamento desses círculos de recepção. Não seria então o caso de pensarmos como fazer para que os acontecimentos culturais gerados pelas próprias obras tomassem o espaço e a situação que lhes cabe. Mas como? 
   
Essa questão que tomamos como ponto de partida vai se complicando mais e mais, principalmente quando fazemos as contas e  auferimos que hoje se vive uma segmentação cultural acentuada. E essa separação de públicos e circuitos, divisão social de sentidos, se multiplica na penúria de espaços comuns, na fragmentação de sempre, com poucos valores valendo para além das micro-esferas de circulação. E os mais cotados no geral são, geralmente, os mais duvidosos. No “vale tudo” há perdas e mais perdas, e ela são tão mais complicadas se nos pegamos num País como o nosso, em que a lenta sedimentação cultural ainda tem poucas camadas de solo comum constituído.

A cultura global da arte entre nós

Há quem diga que “as coisas melhoraram muito nos últimos anos”, “a arte brasileira isso..., a arte brasileira aquilo...”. E isso e aquilo são verdades, quase inquestionáveis. Mas a persistência da tragédia local está na eternização desse nosso lugar “geopolítico” e “mental” periférico, o de um País no qual o “Mundo da Arte” tende a se tornar um microcosmo de auto-valorização.  E esse circuito de auto-valoração não redunda nem mesmo em benefícios econômicos: é apenas uma bolha social de pequenas proporções. E isso ocorre mesmo que sejamos reconhecidos cada vez mais em todo o Mundo. Por mais que haja uma quantidade significativa de trabalhos e de obras que rompa essa dinâmica, em seus universos estéticos e de agenciamentos de sentido, há ainda o pouco reconhecimento social dessas rupturas. Uma presença de características pouco extensivas, que acentua a sua relativa invisibilidade pública. Se isso não é um problema na maioria dos casos, é muito problemático quando se torna um regra. Até porque há um limite nesse padrão de sustentabilidade local, quando não o risco de uma internacionalização predatória. 

Não é de se espantar que caiba até uma pergunta dessas: “a arte teria virado uma sub-cultura urbana com seus localismos globais?” Pelo sim, pelo não, valeria pôr à prova essa má separação, ou a boa combinação, um tanto estanque, entre “arte e cultura” nesses tempos atuais. Talvez valesse rever o poder de regulação dessas formas de “apartamentos” e de “associações”. Mas, para além da revisão, resta ainda perguntas sobre o bom sentido de um sistema da arte mais aberto ao mundo da cultura. Como pensar essa cultura de fronteiras móveis e de territórios movediços que agencia hoje a produção estética da arte? Ou ainda, que culturas ou que valores a arte traz para seu universo de interação? Essas outras questões são bastante cruciais, pois é sempre muito difícil situar palavras correntes como “Cultura”, “Mundo”, “Valores”, e estabelecer o universo semântico que elas querem agregar a uma tal ou qual proposição.

E, além disso, deveríamos pensar o significado dessas coisas todas numa delimitação geopolítica e espacial mais ou menos problemática que vivemos hoje sob os resíduos históricos da Nação. Se cabe questionar algo ainda dessa “perspectiva nacional”, é porquê somos vistos assim, ainda que hoje isso ocorra, menos por nós mesmos, muito mais pelo mundo que nos cerca e nos condiciona com seu olhar e interesse. Principalmente, porque o circuito internacional vê a arte aqui produzida como um diferencial ”brasileiro” na cultura mundial. Então teríamos uma nova série de questões sobre o como devolver a produção estética contemporânea ao corpo a corpo com os sedimentos culturais em toda a sua diversidade local sem cair na anedótica ilustração ou no simbolismo nacional. Mas não forcemos a mão nas perguntas, pois não vem ao caso produzir respostas imediatas. Talvez estejamos só estabelecendo nossas dúvidas e questões. Afirmando com indagações. E porque não?

A idéia do edital
     
Nossa idéia é sugerir um pequeno deslocamento sócio-cultural, algo que pode, a depender das proposições estéticas e artísticas geradas nesse processo, ganhar uma escala de impacto na esfera da “cultura”. Quem sabe se isso ocorrerá? O que sabemos é que induzir esse reposicionamento delicado é arriscar deixar tudo como está. Não tem problema. Que assim seja. Basta considerar essa perspectiva de uma resistência inamovível no campo artístico e seguir com nosso estratagema. No pior dos casos teremos o acréscimo de uma perspectiva de problematização, algo, não há dúvida, vital ao sistema da arte.

A estratégia adotada então foi estabelecer quatro universos de “simbolização” diferenciados para que campos de atrito sejam gerados e que dentro de cada um deles a produção contemporânea possa ver-se em freqüências culturais mais intensamente específicas. Essa rugosidade que buscamos despertar nas superfícies interiores às esferas valorativas, nesses tecidos de interação cultural que se formam circunscrevendo universos de sentido e objetos, se corporificará na identificação de “assuntos” específicos ou “funções” sócio-culturais. Essas escolhas serão feitas por  cada artista: uma escolha de objetos de densidades culturais diferentes que deixem haver diálogos e atritos com o seu trabalho. A escolha desses campos de valor se dá quando ele julgue que tal coisa seja significativa para um interação. Os trabalhos realizados tomarão para si “objetos simbólicos”, sejam construções históricas, sítios arqueológicos, peças restantes, ou cargas semânticas, palavras e conceitos, modos de estabelecer e cultivar valores singulares, e assim por diante. Foi com essa idéia em mente que se chegou aos tais “campos de valor” que orientam as categorias do edital.

Cada campo de valor é uma tentativa de diferenciação no interior do que a cultura brasileira desde o século passado acostumou-se a chamar de “patrimônio histórico e artístico nacional”. O IPHAN que é o órgão responsável pela gestão desse “patrimônio” material e imaterial, nesse ano de 2007, completa os seus 70 anos. Nada melhor para rememorar esse tempo passado do que uma abertura crítica de horizontes contemporâneos para a instituição. Mais do que tornar-se, paradoxalmente, ele mesmo, um “patrimônio”, penso que o IPHAN está passando por um processo de reflexão que concerne a todos nós. A intenção, implícita, dessa delimitação de valores é também rever as certezas que deram origem a essa instituição cultural, produzindo deslocamentos que impliquem numa reavaliação dos expedientes culturais estabelecidos. Algo que pode acontecer ou não, a depender dos resultados provocados. Explicitar isso é importante para que todos saibam o terreno em que estão pisando. O caso não é que se queira fazer uma mudança institucional no Instituto, mas sim atingir simbolicamente os modos de simbolização que o Pais adotou tacitamente para si. Nada melhor do que a arte para realizar tais deslocamentos.
   
O propósito maior é estabelecer com as quatro delimitações semânticas uma leitura de ambientes sócio-culturais que estão divididos, por razões que não vem ao caso. Nesses quatro “campos de valor” encontram-se uma série de possibilidades para que cada projeto identifique o seu objeto de eleição e estabeleça sua modalidade de interação contemporânea. Não interessa a precariedade de cada uma das definições, elas são assumidamente sentidos provisórios que não circunscrevem mundos separados, apenas identificam intensidades valorativas divergentes. Cada um dos campos de valor pode ser apenas  uma provocação cultural para que a arte contemporânea processe sua relação com aquilo que chamamos de “Patrimônio Cultural”. Mas, ainda que provisoriamente, eles são, também, a tentativa molamba de estabelecer uma diferenciação que é típica de universos simbólicos existentes no Brasil.

Identificação de identidades

Não vale a pena recompor o que foi tantas vezes posto, cabe apenas relevar que nossa formação sócio-cultural acolheu tanto matrizes européias de cultura, quanto permitiu, por assim dizer, a “sobrevivência” de algumas formações ameríndias completamente diferentes dos padrões ocidentais. Além dessa consideração de universos simbólicos divergentes, essas quatro esferas semânticas possibilitam as estratégias de diferenciação cultural e de reconhecimento que as etnicidades, principalmente as “afro-orientais”, mas não só, traçaram para si no mundo contemporâneo para fugir dos marcos nacionais de pertencimento e identificação. Mas além de tudo, essas esferas e cada universo de coerência deveriam ser problematizadas como valores das identidades que suportam.

A idéia, assim formulada, abre o edital à possíveis pensamentos e reflexões estéticas contemporâneas. Talvez se tenha ao fim dele um mapa de suas ocorrências, de suas procedências e de seus cursos.  Espera-se que essa topologia de lugares e modos de atualização das linguagens artísticas levem a interpretação dessa diversidade existente  para além das chaves “multi-culturalistas” reinantes. Pois as coreografias bem compostas e comportadas dos “reconhecimentos” e das “afirmações” de “identidades” não nomeiam mais os conflitos valorativos do presente em todas as suas extensões territoriais, espaciais e simbólicas. Essa talvez seja a nossa contribuição mais plausível dada ao sistema “global” da arte mundial feita e estabelecida hoje. No mais das vezes, estamos simulando “opções” e “lados” que se tornam posições nem sempre sustentáveis numa geografia contemporânea de lugares e localizações.

Cabe imaginar que para tanto, seja necessário produzir um agenciamento de forças semânticas em meio ao que é “diverso”. A diversidade não pode servir para uma desvalorização de valores. Ainda que se diga o contrário quando se quer afirmar contemporaneamente a força política dessa palavra chave. Precisamos politizar as palavras em nome de uma diferenciação mais atual, do estabelecimento de novos marcos para aquilo que um dia nos movia, seja a identidade local, seja o cosmopolitismo. E esses campos de força são algo como o que faz no mundo da palavra um verbete de “dicionário”: uma série de traduções e equivalências que identificam densidades, sistemas de usos e qualidades diferenciais. Mas diferentemente do dicionário elas criam problemas de sentido, mais do que resolvem dúvidas sobre significações. Esse o lado rugoso que se quer trazer a tona para atritar os modos de interação.

“Nossas culturas”- ainda que se fale em sentido plural- são sistemas de valores mais ou menos coerentes e devem ser encarados enquanto tais. Uma idéia justa que está inscrita no subterrâneo dessas camadas de definição é: seria preciso, principalmente, evitar o esvaziamento que os pluralismos provocam. A pluralidade é uma armadilha matemática dos cálculos da dominação contemporânea, em sua equação de multiplicação indefinida, de segmentação infinita e de relativização evasiva. Há sempre quem fale em nome dos outros. Fundamentalmente porque a assunção da “alteridade”, ou a consideração do que é substantivamente diferente, não pode ser feita num regime de “tolerância” ou de aceitação desvalorizada. Em última instância, essa forma “multi-cultural” apenas considera a “existência objetiva” de algo e nada mais faz. A multi-cultura de hoje não dá voz ao que é diferente, não dá valor à sua significância própria, não ao seu modos de presentificação de sentidos, não ao seu ser.

Para a construção de campos estendidos de valoração

Para além das idealidades de que se fala, não podemos deixar de ver que do outro lado dessa provisória coesão de “campos de valor”, dessas “valorações de valores”, há também o seu outro caráter, o arbitrário e o fantasioso. Essa inevitável situação é, como sempre acontece quando se produz um discurso, para organizar a vitalidade do fenômeno cultural ou estético. Não se está querendo dar nome à cultura e à arte, apenas nomear um problema atual. Essas insuficiências da organização restritiva devem, contudo, ser observadas pelas suas particularidades, não pelas generalidades retóricas dos discursos e dos contra-discursos. São assim por uma questão de arbítrio e juízo sobre campos da cultura em sua diversidade historicamente formada. Todos sabem que nada é fácil em matéria de definições, simplesmente porque um tal “objeto” do passado ou “obra” contemporâneo jamais poderão enquadrar-se ali ou aqui, nessas quatro construções discursivas. A intenção não é, nunca foi, e espera-se que não seja, reduzir a algum campo desses qualquer coisa que exista ou venha a existir. Apenas é buscar seu significante, suas ordens de sentido ou seu lugar de enunciação cultural.

Além do que, hoje não é possível desconhecer as estratégias culturais da “miscigenação”, da “mestiçagem” , da “hibridização” e da “mixagem”. Mesmo que elas não sejam adoções e procedimentos na totalidade dos casos, elas são fatores culturais da maior relevância. Para ser mais sensato e direto: é possível, inclusive, que cada uma das proposta apresentada ao edital e surgidas na interpretação contemporânea do patrimônio cultural, freqüente ou atravesse simultaneamente todos esses quatro campos. Que bom!

De todo modo, essas “diferenças de valor”, como se diz aqui, são “conceitos provisórios” que servem para estimular a confrontação dos trabalhos contemporâneos. São discursos para estimular a presença da arte, sua intensidade conflitiva ou seu impulso reflexivo, sua relação com o “patrimônio cultural” material e imaterial de nosso País. Espera-se que isso aconteça, seja pela complexidade formativa que tem a arte, seja pelo informe de que se alimenta, ou ainda pela singularidade do País em que vivemos. Como nos disse Hélio Oiticica, em seus quase oráculos, sentenças tão  ressoantes, “da adversidade vivemos”.

 
1 - “Patrimônio Cultural” como Arte.
Arte: 1. é um valor singular que conta no processo de simbolização, de subjetivação e de inter-subjetividade, de expressão de um indivíduo ou grupo deles; 2. manifestação de uma singularidade perante sua comunidade de sentido, acontecimento que em sua construção particular, emancipada e relativamente autônoma, ganha força reflexiva ou intensidade imanente no deslocamento cultural; 3. construção de qualquer simbolização que seja indiretamente comunicável e que ative e qualifique propositadamente a relação dos indivíduos com o campo do não-racional, do sensorial, do intuitivo e do acidental; 4. agenciamento de materiais e conteúdos de modo inusitado e reflexivo, operando na ordem do não racionalizado, ou do não entendido e fixado conceitualmente; 5. agenciamento de valor que estabelece a possibilidade de reflexão sobre o informal perceptível, o não-formalizado socialmente, e sobre o formal sensibilizado, o estilizado ou o codificado esteticamente; 6. campo de valores organizado em torno da exteriorização da atividade do psiquismo e da pulsionalidade, ou da intencionalidade e da consciência; 7. campo que ativa a capacidade de perceber, seja pela visibilização ou pela audição, seja pela corporalidade ou pela fisicalidade do fenômeno artístico; 8. valores referenciados na liberdade, na estética e nos modos de percepção, ou vivenciados na experiência artística e estética do mundo.

2 - “Patrimônio Cultural” como Tradição.
Tradição: 1. valor de mediação que conta no processo de comunitarização dos indivíduos e de expressão da comunidade em sua unidade provisória, temporalizada e localizada; 2. valores que permitem o reconhecimento dos indivíduos no interior de uma formação sócio-cultural como membros dela; 3. maneiras de identificação das individualidades como participantes de uma série de autoridades e modos de convivências, hábitos, jeitos e sotaques; 4. construção de sistemas de “comunicação” integrados, no sentido de trânsitos e comunhões, que tecem uma complexa rede e que enredam os participantes à uma economia simbólica endógena; 5. agenciamento de costumes, ritos, comportamentos e compartilhamentos, que qualificam a relação entre os indivíduos e estabelecem laços de pertencimento, de obediência e de troca, tanto materiais, quanto místicos; 6. campo de valor organizado em torno da reprodução familiar-habitacional, da relação espaço-ambiental, do trato da natureza circundante e da memória transmitida inter-geracionalmente; 7. campo valorativo referenciado na transmissão de saberes, lidas e usos que é realizado pelos “mais velhos” e pelas autoridades consentidas comumente, assim como pela positividade exemplar da maestria técno-artística; 8. valores organizados pelas habilidades corporais e manuais, pelos cultivos de substâncias e entidades espiritualizadas, pelos investimentos afetivos implicados no que está habituado e apalavrado, nas tratativas e sabedorias, assim como nas nomeações e topologias; 9. marcas e marcações da experiência antropológica de reprodução e afirmação de comunidades e imaginários.

3 - “Patrimônio Cultural” como Civilização.
Civilização: 1. valor de finalidade que conta no processo de sociabilização geral, de expressão da vida civil, de melhoramento dos hábitos e formações sócio-culturais e de organização de sistemas urbanos; 2. valor tendencial de generalização  e universalização abstrata dos modos de vida que contam na edificação das relações espaço-temporais; 3. construção de estruturas racionais e funcionais de organização, que disponibilizam à sociedade formas ordenadas e hierarquizadas de agenciamento do simbólico; 4. valor que estabelece nexos de continuidade entre coisas e acontecimentos de modo a descrever uma sucessão, um princípio lógico  ou um ideal de desdobramento que pode ser descrito historiograficamente; 5. campo organizado em torno da perspectiva de universalização de valores, de transposição das fronteiras etno-religiosas e nacionais, que busca a afirmação indiscriminada do “humano” e da verdade tecno-científica em nome do “cosmopolitismo” e do “ocidental”; 6. sistema valorativo que conta com a generalização das sociedades urbanisticamente planejadas, seus modelos de territorialidade e de suas arquiteturas, e se assenta na modernização gerada pelo mercado, pela indústria e pelo consumo; 7. campo que projeta um sistema de comércios e de intercâmbios de valores em direção à uma  esfera comum e pública, em consonância com a democratização dos poderes constituídos; 8. universo de valores referenciado no desenvolvimento da cidadania esclarecida e na consumação e no refinamento do estado de direito, alavancado pelos modos de conhecimento e de ordenação da linguagem, fundados na experiência culta e erudita.

4 - “Patrimônio Cultural” como Cosmologia:
Cosmologia: 1. valor absoluto que conta na totalidade dos processos de auto-reprodução sócio-ambiental de populações, desde o alimentar até o místico; 2. valor de expressão do indivíduo-comunidade pela nomeação e pelas estruturas cíclicas de sociabilidade, numa indiferenciação complexa e numa integralização de todos os seus momentos e elementos segmentáveis, do cultivo ao culto; 3. construção de sistemas estruturais e simbólicos plenos que marcam a identidade de um povo e de uma língua, suas narrativas míticas e arquetípicas; 4. campo de sentido que disponibiliza sua linguagem gráfica e plástica, sua arquitetura e técnicas construtivas, sua utilização do espaço e da natureza circundantes; 5. valor que agencia a semântica gestual e linguageira, estabelecendo uma atemporalidade mítica e uma corporalidade ritualizada em todos momentos de existência; 6. campo de valoração marcado pela indistinção entre o fenômeno humano e o natural, pela vivência das corporalidades animais, vegetais e minerais sem divisão positivas dos seres; 7. completude referenciada na magia e nos usos de princípios ativos, na coleta e na caça, no combate e na guerra, nos nascimentos nominais e no sepultamento, na dádiva e no sacrifício, na espacialidade nômade e na narrativa mitológica; 8. modos de cultivos e de cultos que evocam experiências arqueológicas e étnicas.