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O mundo pós-pandemia conhecerá 'novas geografias de descontentes'

José Tadeu Arantes para Agência FAPESP, em 11/11/2021.
O mundo pós-pandemia conhecerá 'novas geografias de descontentes'

Avaliação pelo professor da USP Eduardo Haddad em seminário sobre cidades pós-pandemia. Evento, organizado por FAPESP e ILP - ALESP, teve a participação de Ciro Biderman, Raquel Rolnik e Gabriel Poli de Figueiredo (foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Desencadeada em um contexto marcado por agudas desigualdades econômicas, sociais e culturais, a pandemia acentuou ainda mais a distância que separa os desiguais. O trabalho remoto contemplou apenas 38% da força de trabalho, excluindo vários grupos profissionais e também as faixas da população com menor conectividade. As regiões urbanas que concentram maior número de deslocamentos para o trabalho concentraram também o maior número de óbitos. E a imunização pelo critério etário privilegiou os territórios mais ricos.

“No mundo pós-COVID, testemunharemos o surgimento de novas geografias de descontentes, reforçadas por disparidades intraurbanas e inter-regionais, principalmente nos países em desenvolvimento”, afirmou o professor da Universidade de São Paulo (USP) Eduardo Haddad, durante seminário on-line promovido no fim de outubro pela FAPESP e pelo Instituto do Legislativo Paulista (ILP).

O conceito de “geografia de descontentes” baseia-se na ideia de que a maneira como as pessoas vivem e trabalham influencia a maneira como veem o mundo e como pensam sobre os desafios que enfrentam.

“No contexto da pandemia, vimos que a disseminação do coronavírus esteve fortemente relacionada às desigualdades estruturais – sociais e espaciais. Indivíduos de baixa renda, que vivem nas periferias das cidades, tenderam a ser mais afetados. Por exemplo, na área metropolitana de Santiago, no Chile, as taxas de mortalidade nos bairros mais pobres atingiram patamares mais de cinco vezes superiores ao das taxas verificadas nos bairros mais ricos”, informou Haddad com base em uma pesquisa de 18 meses conduzida no Núcleo de Economia Regional e Urbana da USP (Nereus).

De modo geral, segundo o pesquisador, a pandemia teve efeitos mais intensos nas famílias pobres das áreas metropolitanas do Sul Global, afetando fortemente os bairros densamente povoados, intensivos em mão de obra, com grande ocorrência de trabalho informal e pouca presença do Estado. “Estudos de impactos no Brasil, Angola, Colômbia e Marrocos, realizados no Nereus, mostraram que as principais perdas se concentraram nas regiões que mais contribuem para o Produto Interno Bruto [PIB] desses países, que coincidem com as áreas urbanas mais densamente povoadas e fortemente relacionadas com a economia de aglomeração”, disse.

“Outro ponto importante foi o papel das lideranças. Aqui no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro rejeitou publicamente o risco associado à pandemia e posicionou-se, assim como o então presidente norte-americano Donald Trump, contra métodos preconizados pela Organização Mundial de Saúde [OMS], como o distanciamento social e o uso de máscaras. Ainda assim, durante um bom tempo, grande parte das sociedades pareceu ignorar o perigo e apoiar os dois presidentes. A questão-chave é como os países absorvem as informações, adaptando-as às suas realidades, para combater a pandemia de forma mais eficaz. Nesse sentido, o papel dos líderes é muito importante”, enfatizou Haddad, que é professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA-USP) e presidente da Regional Science Association International (RSAI).

Desafios de mobilidade

O impacto da pandemia no setor de transportes foi o tema abordado por Ciro Biderman, professor dos programas de Graduação e Pós-Graduação em Administração Pública e Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e coordenador do Centro de Estudos em Política e Economia do Setor Público (Cepesp).

“Em função da crise sanitária, o transporte público por ônibus na cidade de São Paulo teve uma redução brutal de demanda – da ordem de 50%. E o sistema, que já vivia uma situação instável no período pré-pandemia, acabou estourado”, disse.

Discorrendo sobre essa instabilidade anterior, o pesquisador, que foi chefe de gabinete da São Paulo Transporte S/A (SP Trans) entre 2013 e 2015, informou que, até 2013, as tarifas de ônibus aumentavam sistematicamente acima da inflação. As manifestações contra a majoração das tarifas, ocorridas naquele ano, impediram, em certa medida, que isso continuasse acontecendo, o que aumentou a pressão sobre o sistema. “Além disso, surgiu um fenômeno novo, que foi a emergência do transporte por aplicativo. No transporte por ônibus, as viagens curtas subsidiam, na prática, as viagens longas. E a adoção do transporte por aplicativo fez cair exatamente a demanda por viagens curtas”, explicou.

O recuo relativo da pandemia já possibilitou que a demanda por ônibus subisse a 75% do nível pré-pandemia. Mas o futuro do sistema segue incerto. “Precisamos evoluir para um novo paradigma de mobilidade, com a separação entre tecnologia e operação; a incorporação dos avanços tecnológicos à operação, monitoramento, planejamento e comunicação; a criação de ônibus sob demanda, reduzindo o tempo de espera e a incerteza sobre quando o ônibus vai chegar; e a integração do transporte público com o transporte por aplicativos”, sublinhou Biderman.

Raquel Rolnik, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP) e coordenadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), esmiuçou em sua fala como e por que a pandemia afetou de forma distinta os diferentes territórios. E contestou a resposta simplista que associa estritamente à pobreza a maior incidência de casos e óbitos.

“A primeira coisa que apareceu nos debates públicos foi a ideia de que ‘onde tem favela tem COVID’. Essa ideia dialoga com o reconhecimento das desigualdades, das condições precárias vividas por grandes parcelas da população, mas não se verifica na prática. Já vimos esse tipo de explicação em outros momentos da história e ela esconde uma espécie de criminalização de certas formas de morar que, no pós-pandemia, justificaria a demolição de determinados espaços”, disse.

Segundo a pesquisadora, a correlação mais clara mostrada pelas pesquisas foi com a mobilidade urbana. Áreas que concentram o maior número de saídas para o trabalho foram também as que concentraram o maior número de óbitos. E isso foi ainda reforçado pelo tempo de exposição no transporte coletivo, afetando os segmentos da população que precisam fazer os maiores deslocamentos entre o local de moradia e o local de emprego.

“O ‘fique em casa’ não pôde contemplar a maior parte dos trabalhadores. Só um percentual pequeno da força de trabalho da cidade tinha um tipo de ocupação que lhe permitia trabalhar de casa. Além do fato de a conexão com a internet ser absolutamente diferenciada para os diversos grupos sociais”, afirmou.

Outra pesquisa citada por Rolnik mostrou que, na escala dos bairros, também foram afetadas as áreas que apresentam maiores aglomerações e maiores circulações. Nessa mesma pesquisa, constatou-se que a máscara, que recebeu uma enorme adesão no município de São Paulo, também não era usada no comércio local, como se o comércio local fosse uma espécie de extensão do espaço do lar – o que é um fenômeno bastante conhecido nas periferias.

Desigualdade tecnológica

A última palestra foi proferida por Gabriel Poli de Figueiredo, doutorando na FAU-USP e pesquisador do INCT Internet do Futuro para Cidades Inteligentes. Ele abordou o tema “cidades inteligentes e tecnologia nas cidades pós-pandemia”.

“Existe uma pretensa neutralidade da tecnologia. Isso aparece muito no discurso sobre cidades inteligentes. Sendo que, ao contrário, cada escolha tecnológica pode apresentar um viés de classe, raça ou gênero”, argumentou Figueiredo.

O pesquisador mostrou que existem conflitos que não podem ser resolvidos de maneira racional, sentando-se ao redor de uma mesa. “Há conflitos irreconciliáveis, posições tão opostas que é impossível chegar a um consenso. Um modelo genérico e pretensamente universal, como o das cidades inteligentes, é muito difícil que dê conta de realidades tão complexas.”

Conforme Figueiredo, no contexto da pandemia, houve grandes expectativas em relação ao potencial da tecnologia. “Expectativas em relação ao trabalho remoto, à redução dos deslocamentos, de que tudo poderia ser entregue imediatamente e que haveria uma explosão no tipo de serviços oferecidos por via digital. Mas o que de fato aconteceu? Mais de 70% das pessoas ocupadas nas classes A e B puderam aderir ao trabalho doméstico. Porém, nas classes C, D e E, a adesão não passou de 28%. Também houve uma grande disparidade em relação ao tipo de dispositivo utilizado para a realização do trabalho remoto. Enquanto 77% das pessoas ocupadas nas classes A e B utilizaram o computador, laptop, notebook, nas classes D e E as pessoas tiveram que recorrer ao celular”, apontou.

A síntese das quatro apresentações é que, se a ideia de pós-pandemia parece apontar para o futuro, o que se verifica de fato é a persistência do passado – um passado de desigualdades que a COVID acentuou, em vez de arrefecer.

O seminário “As cidades pós-pandemia” foi mediado por Horácio Forjaz, gerente de Relações Institucionais da FAPESP. E teve a participação da deputada estadual Carla Morando na Assembleia Legislativa de São Paulo. O evento on-line integra o Ciclo ILP-FAPESP de Ciência e Inovação 2021 e pode ser assistido na íntegra pelo YouTube.

 

Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.