Justiça proíbe que Fundação Palmares se desfaça de acervo e estabelece multa de R$ 500 por item doado
gestão de Sergio Camargo está catalogando livros do acervo da Fundação Palmares para excluir 'obras marxistas' Foto: Reprodução do Twitter
Uma liminar do juiz federal Erik Navarro Wolkart, da 2ª Vara Federal de São Gonçalo, publicada nesta quarta-feira, proíbe a exclusão de parte do acervo bibliográfico da Fundação Cultural Palmares. Como adiantou o colunista Lauro Jardim, a decisão, que atende a uma ação popular movida pelo advogado Paulo Henrique Lima, estabelece o pagamento de R$ 500 por cada item doado em descumprimento à decisão.
A liminar tem como réu o presidente da Palmares, Sergio Camargo, responsável pelo expurgo do material, e cita sua avaliação sobre o acervo, publicado no relatório que deu origem à retirada dos livros da autarquia: "Um conjunto de obras pautadas pela revolução sexual, pela sexualização de crianças, pela bandidolatria e por um amplo material de estudo das revoluções marxistas e das técnicas de guerrilha".
A decisão, que dá 15 dias para que Camargo se manifeste, determina que "a parte ré não promova a doação dos livros, folhetos, folders e catálogos pertencentes à Fundação Palmares, sob pena de multa pessoal de R$ 500,00 pela doação de cada item, além das demais consequências cíveis e criminais decorrentes do descumprimento de ordem judicial".
No texto da liminar, Wolkart ainda destaca que "a despeito da autonomia da Fundação, bem como da separação dos Poderes, entendo que a desmobilização de parcela relevante do acervo da mencionada entidade deva passar por uma discussão mais ampla e plural, de acordo com a finalidade da própria Fundação e das comunidades que ela visa proteger e representar (...) sob pena de lesão irreparável aos valores das comunidades negras e da sociedade brasileira como um todo".
Em seu perfil no Twitter, Camargo compartilhou o link da coluna de Lauro Jardim, afirmando que a Palmares vaio apresentar recurso contra a liminar: "Caso seja vitoriosa, fará a doação das obras marxistas, bandidólatras, de perversão sexual e de bizzarias. Descobertas após triagem no acervo, tais obras contrariam e corrompem a missão institucional da Fundação, definida por lei".
'Vitória jurídica, política e simbólica'
Autor da ação, o advogado e coordenador do coletivo Direito Popular, Paulo Henrique Lima, celebrou a decisão e fez questão de registrar a carga simbólica de ter sido proferida um dia após a data de aniversário de Luiz Gama, abolicionista brasileiro do século XIX e uma das figuras mais relevantes da história do país e do movimento negro. Gama, que dá nome a um projeto de pré-vestibular apoiado pelo coletivo de Lima, foi um dos personagens atacados por Sergio Camargo, e teve sua minibiografia retirada do ar no site da Fundação Palmares.
— É uma vitória jurídica, política e simbólica. Essa decisão do juiz Erik Navarro caminha na ideia de resgatar nosso direito à memória e à existência enquanto povo nesse país, que registra violência tão grande contra a população negra — avalia Lima. — A decisão mostrou que o poder judiciário precisa se movimentar quando uma instituição como essa rompe com a linha constitucional.
O advogado lembra que as ações de Sergio Camargo à frente da Fundação Palmares já vinham violentando os direitos do movimento negro. Por isso, essa decisão judicial veio para "corrigir um grande problema que vinha sendo colocado ao Estado Democrático de Direito". E, por isso, tem importância jurídica, social e pedagógica:
— A possibilidade de uma medida como essa (doação de acervo), dentro de uma fundação importante como a Palmares, mostra como as instituições do país vêm caminhando de forma diferente que a Constituição prevê. A Palmares não pode ficar refém da ideologia do presidente. A liminar é até mais importante para a democracia do país do que para o próprio movimento negro. Se essa censura fosse naturalizada, poderia ser a destruição da imprensa, da cultura e do ensino público.
Outras ações tentam impedir expurgo
Outras ações correm na Justiça contra a decisão da Palmares de excluir parte de seu acervo. No dia 16, mais de 200 entidades do movimento negro nacional, representadas pela Coalizão Negra por Direitos, entraram com uma ação cívil pública na Justiça Federal de São Paulo. Dois dias depois, o deputado o Marcelo Freixo (PSB) também entrou com uma ação contra Camargo na Justiça Federal. Nesta terça-feira, foi a Associação Juízes para a Democracia (AJD) quem entrou com pedido de liminar contra a autarquia. Sobre esta última ação, Camargo comentou em suas redes: "A associação de juízes, na imensa maioria brancos, quer me ensinar como deve ser um 'bom preto'. Resumindo: esquerdista e submisso à cartilha".
Após a publicação do relatório com os livros selecionadios para serem excluídos da biblioteca da Palmares, Camargo anunciou uma revisão no acervo iconográfico da autarquia e um edital para a escolha de uma nova logomarca, a ser publicado no fim do mês, com prêmio de R$ 20 mil. "Pelas regras do edital, o novo logotipo será não-religioso e, obrigatoriamente, patriota. O logo atual é o machado de Xangô (Candomblé)", escreveu Camargo em suas redes.