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'Elegemos o pior brasileiro entre 210 milhões', diz Nuno Ramos

Guilherme Amado para Época, em 17/06/2020. Atualizado em 18/06/2020.
'Elegemos o pior brasileiro entre 210 milhões', diz Nuno Ramos

Nuno Ramos. Foto: Elvira T. Fortuna / Divulgação

Fonte: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/elegemos-pior-brasileiro-entre-210-milhoes-diz-nuno-ramos-24483073

Artista plástico acredita que o bolsonarismo potencializou traço brasileiro de ser indiferente a mortes

O artista plástico, escritor e compositor Nuno Ramos não esconde o pessimismo ao analisar o Brasil da pandemia, um país que já vinha ladeira abaixo desde 2018. Crítico feroz do governo Bolsonaro, Ramos disse, em entrevista à coluna no Instagram, que o país escolheu naquele ano o "pior brasileiro" para o Palácio do Planalto.

Ramos acredita que o bolsonarismo potencializou traços brasileiros de ser indiferente a mortes e de tolerar o intolerável.

"A indiferença pela vida, o Brasil sempre teve. Não é criação bolsonarista. Mas o grau de elaboração que isso tomou nos levou ao plano do inominável".

Leia os principais trechos da entrevista:

 

Está criando na pandemia?

Me sinto mais disperso. Antes eu tinha mais foco. O tempo é o enigma dessa pandemia, né? Você não tem marcações. Sinto que de repente o tempo passou. E no Brasil estamos todos sobrecarregados do pesadelo que é decidir o que fazer, sem nenhum parâmetro coletivo claro. Me parece uma expressão profunda do país: uma dificuldade crônica de estabelecer critérios minimamente válidos para todos. Vivemos uma situação em que o número de mortos é inútil, e isso é desprezado. O grau de mentira que circula, o enlouquecimento discursivo, a falta de empatia... É uma guerra civil com outras armas.

 

Sua obra tem sido influenciada pelo isolamento social?

Penso um pouco ao contrário. Quando analiso meu trabalho, vejo que parece uma infindável premonição do que aconteceria, sem que eu percebesse. Isso estava em versos de canções, nos três urubus que coloquei na Bienal de São Paulo (em 2010)...

Temos passado por episódios inimagináveis, como o presidente andando a cavalo no meio de uma pandemia.

A loucura é tamanha que você não tem nem como emoldurar uma coisa para falar, porque logo vem outra. Não se sabe qual ato isolar. O que o fascismo me mostra, vivendo-o agora por dentro, é que ele é uma agitação que não leva a lugar algum, a não ser a destruição. E vão levar o país junto. Só vai sobrar o que essa gente não enxergar. A indiferença pela vida, o Brasil sempre teve. Não é criação bolsonarista. A gente sempre topou deixar muita gente morrer, tolerando o intolerável. Temos mais de 100 mil mortes ao ano que dava para dar um jeito, né? Agora, o grau de elaboração que isso tomou nos levou ao plano do inominável. Lembro de uma observação de Adorno (Theodor W. Adorno), de que depois de Auschwitz não seria mais possível escrever poesia. O que você faz com a crueldade que temos passado? São inversões malucas. Quem defende a democracia é acusado. Parece uma pegadinha sem fim.

Ainda falta a muita gente a dimensão do que estamos vivendo?

Gosto da palavra "naturalização". Bolsonaro foi naturalizado. E, com isso, naturalizaram uma barbaridade. É diferente dos erros que governos democráticos cometeram, erros graves e que precisam ser criticados. O que fizemos foi eleger talvez o pior brasileiro entre os 210 milhões. O conceito de aristocracia remete ao governo dos melhores. Estamos com o governo do pior. É difícil explicar por que cometemos um harakiri político. O Brasil tem um fundo de violência, uma incapacidade de assimilar e respeitar quem está fora do jogo. A única coisa normal é que ele foi eleito. Isso conta e temos que tirá-lo pela democracia, com rigorosa anunciação do rito democrático, sem falhar em nenhum pontinho. Senão, daqui a pouco chegaremos a um ponto quando não poderemos eleger mais ninguém.

Como será a vida pós-pandemia?

Temos de sair disso tentando reconfigurar nossos vínculos, nos dar um tempo mais longo. Precisamos voltar a não saber, parar para pensar. Quem sabe tudo é o Olavo de Carvalho. Temos uma cultura de viver no agora, e o Carnaval talvez fosse a manifestação positiva disso. Essa agoricidade não dá. A gente precisa se historicizar, olhar para trás, refundar os mitos, a questão racial, refundar o tempo. O Brasil precisa de um tempo mais longo, de alguma continuidade. O bolsonarismo é a grande descontinuidade. Veio para destruir o que puder com uma nuvem de gafanhotos.

Como você mantém o ânimo durante o isolamento social?

Não quero deprimir. Quero brigar de volta com essa gente, com as armas da democracia, com toda a força. A gente precisa ir pro pau, de algum modo. Essa gente é covarde, não tem nada a dizer, precisa ir embora. Sinto que eu olho as coisas com mais espanto. De fato, saí um pouco de uma relação mais imediata com o país. Tenho saudade de um país que não está mais aí. O Brasil de antes da eleição não existe mais. Tivemos acesso a um buraco do país, com coisas horrorosas. Mas isso não veio de Marte. Aponta para algo que sempre fomos. É preciso que os partidos façam uma frente ampla que exclua essa minuciosa desconstrução de cada instituição, que acontece todo dia.

Como chegamos a esse clima tão exaustivo?

Dos anos 1980 até 2013, faltou diferença, conflito entre as forças políticas. O verdadeiro conflito parou de existir. A pauta da corrupção e da violência foram entregues para eles, e agora precisamos retomá-las. Há muitas coisas interessantes acontecendo, como essa discussão em torno das estátuas de personalidades questionáveis. Hoje não é mais verdade o ditado de que se você quer esquecer alguém, deve construir uma estátua. Existe a pergunta de quem é aquela pessoa morta, mas viva na cena pública. Essa porcaria do Borba Gato está sendo vista como um genocida. Isso é o que importa. Se vamos derrubar a estátua, botá-la num parque... A arte contemporânea já deu respostas interessantes sobre o tema. Um artista alemão refez uma fonte destruída pelos nazistas, mas de ponta cabeça. A água cai dentro dela. Isso tem muita força.  Sem a cena pública questionar, o monumento vai ser só um homem a cavalo. Essa volta da politização é importante. Não podemos ficar recebendo ordens da dona macroeconomia. Ela é um instrumento. Precisamos dizer o que queremos de novo. Isso talvez esteja voltando.

 

Ramos faz parte de uma série de entrevistas promovidas pela ÉPOCA para trazer diferentes perspectivas sobre as transformações por que o Brasil e o mundo estão passando e passarão com a pandemia.

Os outros convidados foram Gilmar Mendes, ministro do STF, a produtora Paula Lavigne, o psicanalista Christian Dunker, a educadora Elisama Santos, o cientista político Marcos Nobre, a presidente da Fiocruz, Nisia Trindade Lima, a deputada Carla Zambelli, o educador Sérgio Haddad e a economista Monica De Bolle.

O próximo entrevistado será o ativista cultural, escritor, dramaturgo e ator Rodrigo França. Será nesta quinta-feira, 18 de junho, às 19h, no Instagram.

(Por Eduardo Barretto)

Fonte: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/elegemos-pior-brasileiro-entre-210-milhoes-diz-nuno-ramos-24483073