Grupo de mulheres está à frente de mudanças estruturais no Museu de Arte Moderna do Rio
Da esquerda para a direita: Camilla, Lucimara, Keyna (em pé) e Gleyce Kelly Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Em cargos de liderança, elas querem transformar o MAM em modelo de revitalização de centros culturais
“Não tenho medo de entrar com o pé na porta. Mas, para que forçar, se estamos com a chave?” A frase é da recém-anunciada diretora artística do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio, Keyna Eleison, e resume o espírito das intervenções que vêm sendo feitas nas entranhas de uma das mais importantes instituições de arte do Brasil. A partir de uma configuração sem precedentes, quatro mulheres ocupam, de uma só vez, cargos de liderança dentro do museu. Além da carioca, que divide o posto com o espanhol Pablo Lafuente, o MAM anunciou, ao longo deste ano, Lucimara Letelier como diretora adjunta institucional, ao passo que Camilla Rocha Campos ficou à frente das residências e pesquisas artísticas e Gleyce Kelly Heitor assumiu a gerência de educação e participação.
Num contexto em que a cultura sofre com um notório desmonte em todo o país, essas mulheres promovem intervenções capazes de ressignificar a própria existência do museu — sem negar os méritos de administrações anteriores, elas frisam — e torná-lo pivô de uma cena de revitalização desses espaços, no Rio e no Brasil. “Estamos no contrafluxo, mas com muito ar no pulmão”, avisa Keyna. “O MAM está cada vez mais aberto, entendendo as suas possibilidades de troca de experiências e a importância da atuação de novos públicos em seu interior. Procuramos outros problemas e vamos assistir isso transbordar em curto prazo.”
Lucimara, por sua vez, cita como exemplos já postos em prática o atual sistema de compra de ingressos on-line, cujo valor é definido pelo próprio visitante, e a criação de combos em que o museu pode ser acessado, com exclusividade, por grupos fechados. Também entra na lista a loja, remodelada pelos Irmãos Campana, que dão título a uma das mostras em cartaz, enquanto um novo projeto de parceria com empresas é implementado. “Estamos fazendo tudo isso a partir de uma visão de sustentabilidade econômica”, diz.
Nascida em Itajubá, no interior de Minas, ela conduz essas iniciativas com a experiência de quem tem um currículo vigoroso, com passagens por instituições como a Caixa Cultural, no Brasil, e o Guggenheim, nos Estados Unidos. Mas, assim como suas colegas, seu trabalho no MAM é embasado não só pela trajetória profissional, como pela própria história de vida. “Em Itajubá, meu avô, mulato, foi padeiro, acendedor de candeeiro, charreteiro e plantador de arroz. É uma cidade em que o passado colonial fala mais alto. Hoje, vejo o quanto os museus são fundamentais na criação de novas narrativas e representações das mais diversas culturas”, afirma.
É também do interior de Minas, mais precisamente de Barbacena, que vem Camilla. Assim como a colega, ela lança mão de sua própria trajetória, ao falar sobre a maneira como vem conduzindo os programas de residência. Mudou-se para o Rio para cursar Belas Artes e descobriu, aos poucos, que o acesso às instituições artísticas é restrito. “Quando vi, o livro de História me dizia que eu estava estudando para ser artista, mas não podia ser”, reflete. “Ao frequentar museus, também entendi que o meu corpo (de mulher negra) não estava ali. Estava numa situação marginal.”
Recentemente, uma convocatória coordenada por ela dentro do MAM, em parceria com o espaço cultural Capacete, possibilitou que 21 pessoas ingressassem num sistema de residência e bolsas de pesquisa, em campos como arte, educação e arquitetura. Com passagem pelo Parque Lage, além das universidades UFRJ, Uerj e UFF, ela conduziu o processo de modo que houvesse uma maior pluralidade entre os participantes. A ideia é que os trabalhos deixem um legado sobre o funcionamento do próprio museu, englobando, por exemplo, saberes indígenas e pesquisas afrodiaspóricas. “Podemos tornar esse lugar da arte um espaço pertencente a um outro tipo de corpo, que não somente o de um homem branco, que tem por volta de 40 anos, domina a língua inglesa, é cis e hétero”, diz ela, reiterando que essa pessoa não está excluída dos processos. “É uma abertura para corpos além desse. A ideia é operar para que todos recebam os mesmos privilégios.”
À frente dos projetos educativos, Gleyce se lembra com clareza da primeira vez em que botou os pés dentro de um museu. “Sou de uma família do subúrbio de Recife, e meus pais não eram frequentadores desse tipo de instituição. Isso só aconteceu na adolescência, numa visita organizada pela escola”, conta, ao rememorar a experiência vivenciada no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, na capital pernambucana. Foi lá também que ela fez o seu primeiro estágio, ao entrar para a faculdade de História. “Isso tem tudo a ver com o meu interesse pela democratização desses espaços.”
De lá para cá, Gleyce também estagiou no Museu do Louvre, em Paris, e participou da implementação da Escola do Olhar, programa de educação do Museu de Arte do Rio (MAR). Agora, assume o desafio de viabilizar o novo projeto do MAM dentro desse escopo. No último fim de semana, inaugurou os programas voltados à primeira infância, que precisaram se adaptar aos tempos de pandemia. Atividades como oficinas, nas quais a troca de materiais seria indispensável, precisaram sair de cena, enquanto entraram no radar a contação de história e os jogos feitos com distanciamento. “O projeto de requalificação do MAM é muito ambicioso, no sentido de como queremos ampliar a importância dele para a cidade”, avalia Gleyce.
Ela também anuncia, para o ano que vem, a retomada do projeto pedagógico do Bloco Escola, que foi interrompido na década de 1990. “Vamos atuar na formação continuada dos profissionais e públicos nos campos artístico e cultural, oferecendo cursos e seminários em temas como artes visuais, curadoria, gestão cultural e audiovisual.”
Ao refletir sobre todos esses trabalhos e esforços, Keyna considera a presença de tantas mulheres na linha frente um ineditismo para o museu, para o Rio e até mesmo para América Latina. “Isso é raro e, obviamente, mexe com dinâmicas internas e externas”, afirma a única carioca do grupo.
Nascida em Vila Isabel, ela é formada em Filosofia, mestre em História da Arte, atua como professora da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage e já assinou curadorias de exposições em diferentes cantos do mundo. “O meu currículo não é natural para mulheres e mulheres pretas, assim como estar no lugar onde estou”, diz ela, que opta por responder a qualquer estranhamento que isso posa causar em terceiros “com humor”. Enquanto isso, defende também um sistema de trabalho essencialmente pautado na coletividade. “Não acredito em dinâmica única, no grande herói que dá seu sangue e suor. Quero sair do MAM ainda mais nova e gata do que entrei.”