Descolonização de obras em museus questiona a quem pertence a história
A saída da Grã-Bretanha da União Europeia, finalizada em janeiro de 2020, reacendeu uma polêmica cultural que há décadas coloca duas grandes nações em disputa. Em uma reviravolta inesperada, o Brexit pode fazer os britânicos finalmente perderem a briga com a Grécia pela posse dos Mármores de Elgin.
Esse conjunto de esculturas representa um dos casos mais debatidos de repatriação de patrimônio histórico. O centro da controvérsia são peças de mármore de 2.500 anos, retiradas do Parthenon, em Atenas, e levadas à Inglaterra em 1801. Os britânicos afirmam que o processo foi legal, mas a Grécia contesta. Em meio à polêmica, elas seguem expostas no Museu Britânico, em Londres.
Agora começa um novo capítulo dessa discussão. Em fevereiro, a União Europeia incluiu na proposta de acordos comerciais pós-Brexit uma cláusula que exige que os britânicos abordem questões relacionadas à devolução de objetos culturais removidos ilegalmente de seu país de origem. O texto foi interpretado como uma jogada astuciosa do governo grego — e os ânimos se acenderam.
A restituição de peças arqueológicas, etnográficas ou artísticas para seus países e povos de origem é apenas um dos aspectos de uma discussão mais ampla que tem ganhado força em todo o mundo: a descolonização dos museus. Trata-se de um processo que busca repensar a estrutura dessas instituições, sua ética, seu propósito e como suas exposições devem ser elaboradas, deixando para trás uma atitude colonial ou predominantemente europeia (ou eurocêntrica). É uma ideia ainda em construção, mas que começa a aparecer em experiências e novas práticas, inclusive no Brasil.
Museus são coloniais?
O museu como conhecemos hoje surgiu no século 18 nos grandes países colonizadores. "A concepção do museu é muito ligada a experiências coloniais", diz Amanda Carneiro, curadora assistente do MASP (Museu de Arte de São Paulo). "Sua origem está baseada em um processo bastante controverso de catalogação, exibição e acúmulo de peças que, muitas vezes, dizem respeito a público e povos de outros lugares."
O Museu Britânico, aberto em 1759, guarda hoje oito milhões de peças, enquanto o Louvre, aberto em Paris em 1793, reúne cerca de 450 mil. Em suas salas, é possível acompanhar o curso da civilização pela exibição de artefatos de sociedades de todos os continentes. A possibilidade de ver essa evolução em um único lugar e o papel dos museus na preservação desses objetos são fortes argumentos em defesa dessas instituições.
No entanto, público e acadêmicos passaram a se incomodar com a história desses itens, que em muitos casos são resultado de invasões, saques ou relações de poder desiguais. "São objetos que foram apropriados para construir uma ideia de nação forte, tão poderosa que domina o patrimônio do outro", diz Marilia Xavier Cury, pesquisadora em museologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (Universidade de São Paulo).
Os museus são também criticados por perpetuarem uma visão única do mundo. Ao selecionar o que será exposto e como, eles se tornam autores da história de outros povos. Com o tempo, a lógica de apropriação, acúmulo e exibição foi reproduzida em todo o mundo — inclusive nos países colonizados. Segundo Cury, as instituições brasileiras até hoje reproduzem internamente um pensamento autoritário em relação à posse de artefatos.
Para a curadora do MASP, não é um problema em si exibir objetos de outros povos, mas é preciso pensar na participação que essas outras realidades têm na reflexão sobre como serão exibidos. Ou, em uma palavra, descolonizar.
O que é descolonizar?
"Descolonizar é trazer para os museus perspectivas diferentes de mundo", define Cury. "É questionar o que se entende por conhecimento e colocar lado a lado o pensamento acadêmico e outros saberes, outras visões de mundo". Esse processo passa por uma reelaboração do que pode ser um museu — e deve exigir mudanças na forma de se organizar como instituição, na relação com a comunidade, na formação de seu acervo e na curadoria de exposições. Para a curadora, o que os museus têm feito agora é resultado de uma mobilização da sociedade civil, grupos organizados, de movimentos sociais por maior reconhecimento de si próprios dentro desses espaços.
"Cada lugar descoloniza os seus museus de acordo com seu próprio contexto. Não existe uma fórmula e não é a direção do museu que decide o que fazer. As pessoas da sociedade devem estar engajadas, junto com o museu, em descobrir quais são os passos que a instituição deve tomar para descolonizar seus acervos."
Amanda Carneiro, curadora assistente do Museu de Arte de São Paulo (MASP)
Como começar a descolonizar?
Uma das propostas para promover a descolonização é a colaboração. "É pensar no que o museu pode fazer conjuntamente com os grupos culturais e em como trazer essas coleções para hoje, a antropologia de agora e a realidade atual daquele grupo", opina Marilia Cury.
Em 2019, O MAE-USP convidou representantes dos grupos indígenas Kaingang, Guarani Nhandewa e Terena para realizar a curadoria de uma exposição com as peças dessas etnias. Todos os objetos foram selecionados pelos indígenas e a história é contada em suas próprias palavras.
Para a pesquisadora, trazer os indígenas para trabalhar com os museus em pé de igualdade é também um processo de conciliação, após séculos de exploração e desconfiança. "Existem sentimentos que precisam ser colocados na mesa".
A colaboração resolve o problema?
Nem sempre a curadoria em conjunto é suficiente. Em muitos casos, os povos de origem querem seus artefatos de volta para ter completa autonomia sobre eles — seja para devolvê-los a sua função original, expô-los em seu próprio território ou, no caso de restos humanos, realizar um funeral de acordo com seus costumes. Entra em cena a repatriação.
Os pedidos de restituição têm crescido em todo o mundo e especialistas acreditam que estamos apenas no começo de um grande movimento de descolonização. Nesse cenário, nem todos os países se mantém na defensiva: em 2018, o presidente Emmanuel Macron encomendou um relatório detalhado sobre o patrimônio cultural africano espoliado pela França e propôs uma ação ampla de devolução nos próximos anos.
América, Canadá e Estados Unidos tratam internamente dessas questões há algumas décadas. Nos EUA, o Instituto Smithsonian trabalha ativamente junto aos povos nativos para a devolução de itens. Já no Canadá, parte significativa do trabalho tem sido feito pelo Museu de Antropologia da Universidade da Columbia Britânica (MOA).
Susan Rowley, curadora do MOA, conta que a mudança começou por pressão das comunidades indígenas e que o processo trouxe importantes lições sobre a necessidade de criar relações e demonstrar respeito. "Para o museu, às vezes, a restituição é considerada uma perda. Mas na realidade é um ganho — um relacionamento é construído, o conhecimento é compartilhado e todos somos enriquecidos."
E no Brasil?
Por aqui, os exemplos de restituição ainda são raros. O primeiro caso emblemático aconteceu nos 1980, quando os índios krahó reivindicaram a posse de um machado cerimonial que estava no Museu Paulista. O debate levou anos, mas o artefato retornou ao povo de origem e voltou a ser usado regularmente em seus rituais.
Apenas no ano 2000 o tema voltou à tona quando herdeiros dos povos tupinambás reivindicaram um manto de penas vermelhas que está sob a guarda do Nationalmuseet, da Dinamarca. O debate não avançou. Para iniciar um processo de repatriação, o governo do país precisa fazer um pedido oficial. "Envolve diplomacia e interesses políticos, não apenas o desejo dos índios ou do museu", explica Marilia Cury, do MAE-USP. Atualmente existem apenas seis mantos tupinambás no mundo — todos expostos em museus europeus sem registros de como chegaram lá.
Final feliz à vista?
Uma frente ativa atualmente é a que demanda a guarda de objetos das religiões de matriz africana confiscadas pela polícia. A coleção de mais de 500 peças foi formada por apreensões na primeira metade do século passado e permanece guardada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Pela campanha Liberte Nosso Sagrado, lideranças da umbanda e do candomblé se mobilizaram para exigir a realocação desses objetos a um espaço adequado. O resultado foi positivo: um acordo foi feito em 2018 para a transferência da coleção para o Museu da República, no Rio de Janeiro, e o espaço espera receber o acervo ainda este mês.
Mario Chagas, diretor do museu, afirma que, ali, o acervo terá uma gestão compartilhada com representantes religiosos em todas as etapas — da higienização até a elaboração de exposições. Ele ressalta que é fundamental colaborar para que cada item seja tratado adequadamente e receba o nome e o contexto corretos. "Nós temos o conhecimento técnico, mas o entendimento específico é deles."
Museus devem ensinar. Mas o quê?
Um medo que cresce com o fortalecimento do debate sobre descolonização e repatriação é a possibilidade de esvaziamento dos museus e a perda de seu caráter educacional. Em uma mudança ainda em curso, sem modelos ou caminhos claros, a dúvida sobre o futuro desses espaços é grande.
Para Susan Rowley, do MOA, o que deve ser questionado é como os museus podem continuar a funcionar sem respeitar as culturas das quais essas coleções foram retiradas. "O que estamos ensinando às gerações futuras se nos recusarmos a construir relacionamentos, promover a auto-representação e trabalhar com as comunidades?"
Marília Cury, do MAE-USP, destaca que manter os museus como são hoje pressupõe que essa visão de educação é mais relevante que outras, retirando dos povos de origem o direito à sua própria pedagogia. Para ela, tolerância, respeito e ética são fundamentos de um museu antropológico — e é essencial educar para esses valores.