Como os super-ricos assumiram o controle do mundo dos museus
[RESUMO] Reforma recente do MoMA, em Nova York, exemplifica a dependência de grandes instituições do dinheiro de bilionários, cuja influência bloqueia a participação de outros agentes do meio da arte e tem sido alvo de protestos.
Com a recente inauguração de sua elegante sede nova, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) solidificou sua posição como um dos locais de exibição mais importantes para a alta cultura do planeta.
A renovação —projeto do escritório Diller Scofidio + Renfro, firma em destaque no setor— custou US$ 450 milhões [mais de R$ 1,8 bilhão], que vieram a se somar aos US$ 425 milhões [cerca de R$ 1,7 bilhão] que o museu havia investido em uma reforma anterior, em 2004.
A reforma da década passada sofreu fortes críticas, e uma nova reconstrução foi considerada necessária dez anos mais tarde. Em menos de 20 anos, o museu gastou quase US$ 1 bilhão [algo como R$ 4 bilhões] para se reinventar.
As vastas fortunas que permitem essas reconstruções despertam questões sobre a composição do conselho do MoMA, num momento em que quadros consultivos de instituições em geral vêm sofrendo mais escrutínio.
No começo de 2019, o Metropolitan e o Guggenheim anunciaram que deixariam de aceitar doações dos membros da família Sackler, vinculada ao poderoso analgésico Oxycontin, implicado na crise da dependência de opiáceos que vem atingindo os Estados Unidos.
Em julho do ano passado, Warren Kanders renunciou à vice-presidência do conselho do museu Whitney depois de enfrentar semanas de protestos por ser proprietário de uma companhia que produz cápsulas de gás lacrimogêneo usadas contra imigrantes na fronteira entre os Estados Unidos e o México.
Por fim, em 18 de outubro, três dias antes da reinauguração do MoMA, mais de cem ativistas fizeram piquete durante uma festa que mostraria a reforma a convidados seletos e interpelaram um dos conselheiros,
Laurence Fink, e sua companhia, o grupo BlackRock, para abandonar seus investimentos em empresas que administram presídios privados.
Casos individuais como esses refletem uma realidade mais fundamental sobre os museus: seu domínio pelos super-ricos numa era de crescente ira contra a desigualdade.
É fato amplamente noticiado que o MoMA e o Metropolitan solicitam aos conselheiros novatos que doem milhões de dólares às instituições como preço pela admissão —considerando que doações a museus são em geral dedutíveis de impostos, a generosidade dos doadores vem acompanhada por uma dose razoável de interesse pessoal.
A arte sempre dependeu de patronos ricos —vide os Médicis, Frick e Morgan. Em contraste com a Europa, onde os museus recebem verbas públicas significativas (embora venham decrescendo), a maioria dos museus americanos depende pesadamente de doadores privados.
Desde o final da década de 1990, quando o atual esforço de expansão do MoMA começou, os conselheiros do museu parecem ter sido selecionados principalmente pela riqueza, e a lista atual de integrantes do conselho parece um retrato do 0,01% mais rico da sociedade americana.
Para oferecer um exemplo aleatório: a presidente do MoMA, Ronnie Heyman, é presidente do conselho da GAF, uma fabricante de material para telhados que o marido dela, Samuel Heyman, adquiriu em uma tomada hostil de controle acionário.
Philip Niarchos é herdeiro da fortuna do magnata grego da navegação Stavros Niarchos. Jerry Speyer é presidente do conselho e sócio-fundador da Tishman Speyer, colosso do mercado imobiliário e dona do
Rockefeller Center. Marlene Hess é filha de Leon Hess, magnata do petróleo que era dono do New York Jets, um time de futebol americano. John Elkann é o herdeiro da família Agnelli, da Itália. Joel Ehrenkranz é sócio sênior em uma empresa de gestão de patrimônio. E Zhang Xin é uma empresária chinesa bilionária.
Muitos dos conselheiros do MoMA são devotados colecionadores de arte moderna e contemporânea, e o museu se beneficiou disso.
Uma conselheira veterana (e ex-presidente) da instituição, Agnes Gund, bancou a aquisição pelo museu —ou doou a seu acervo— mais de 800 obras. Em termos realistas, sem a generosidade de seus doadores, o MoMA teria dificuldades para manter as portas abertas.
Mas essa dependência da gentileza de bilionários tem um preço. O museu atual é altamente hierárquico, espelhando a desigualdade da sociedade em geral.
Em maio, o grupo ativista Art + Museum Transparency, buscando derrubar a “cultura do silêncio e medo” no setor, divulgou uma planilha mostrando salários, informados anonimamente por centenas de empregados do museu. Pela lista, os curadores do MoMA parecem muito bem pagos; já os trabalhadores em cargos menos importantes recebem bem menos.
Em 31 de maio de 2018, quando o MoMA realizou seu evento anual de arrecadação de fundos, Party in the Garden [festa no jardim], cerca de 250 trabalhadores sindicalizados do museu e seus simpatizantes se reuniram diante do local para protestar contra os baixos salários e o pagamento insuficiente por horas extras.
E isso em um momento em que a remuneração do diretor do MoMA, Glenn Lowry, vinha subindo constantemente. Ela agora fica perto de US$ 2,3 milhões ao ano [cerca de R$ 9,4 milhões], entre salários, bonificações e benefícios —um dos pacotes de remuneração mais generosos no mercado dos museus americanos.
Entre os principais perdedores, no sistema atual, estão os artistas.
Com a arte agora considerada uma categoria de ativo financeiro semelhante às ações e commodities, colecionadores estão sempre em busca de astros em ascensão cujos trabalhos possam ser comprados a baixo preço e revendidos por valores muito mais altos no momento em que a reputação do artista deslanchar. Muitas vezes, quando o mercado muda, carreiras terminam destruídas —exceto no caso dos poucos astros cujos trabalhos estão sempre em demanda.
Mesmo os artistas que continuam populares só costumam se beneficiar da venda inicial de seu trabalho; quando o valor sobe, os lucros ficam com colecionadores e casas de leilões. Os conselheiros de museus têm acesso fácil a curadores e donos de galerias, capazes de apontar artistas emergentes cujo trabalho possa ser adquirido no estágio inicial de suas carreiras, o que permite que o comprador se beneficie conforme a demanda cresce.
Como tantas pessoas ricas colecionam arte contemporânea e o interesse do público por esse tipo de arte continua a crescer, os museus muitas vezes buscam dedicar mais espaço a essa produção, a fim de manter os doadores interessados —e suas carteiras abertas.
O Metropolitan, por exemplo, pagou caro por esse tipo de expansão. Em 2011, o museu fechou acordo para alugar por oito anos a antiga sede do Whitney, na avenida Madison, em Manhattan, que o museu estava abandonando para se transferir ao seu novo e luxuoso prédio projetado por Renzo Piano no sudoeste da ilha. O objetivo do Met era ampliar o espaço que dedicava à arte moderna e contemporânea.
O museu teve de investir US$ 13 milhões [cerca de R$ 53 milhões] para reformar o edifício e gastar US$ 18 milhões [R$ 73 milhões] ao ano para operá-lo, o que contribuiu para seu déficit operacional de US$ 10 milhões [quase R$ 41 milhões] anuais.
A instituição se viu forçada a demitir cerca de cem trabalhadores, reduzir os benefícios dos curadores e restauradores, cortar o número de exposições que organiza a cada ano e criar um ingresso compulsório para todos os visitantes de fora do estado de Nova York.
Em setembro de 2018, o museu enfim conseguiu se livrar do problema ao anunciar que a Frick Collection passaria a ocupar a antiga sede do Whitney. Outra baixa dessa confusão toda foi Thomas Campbell, o diretor do museu, forçado a renunciar.
Talvez a mais grave preocupação causada pelos conselhos de barões sejam as restrições que possam impor ao que um museu pode exibir.
Com os mais de 3.500 m² adicionais de espaço para exposição que acaba de inaugurar, o MoMA quer inverter hierarquias, reconstruir o cânone e romper com sua longa tradição de domínio masculino, branco e eurocêntrico.
Em uma recente visita ao museu, vi muitas peças fascinantes e socialmente engajadas, como a épica série de Jacob Lawrence sobre a grande migração dos negros americanos do sul para o norte do país, os quadros de Michael Armitage sobre o desespero dos africanos e a assustadora “The Killing Machine”, de Janet Cardiff e George Bures Miller.
Em uma das muitas justaposições ousadas e elogiadas pelos críticos, o museu colocou “Les Demoiselles
d’Avignon”, de Picasso —com suas figuras primitivistas de cinco mulheres das ruas— ao lado de “American People Series #20: Die”, de Faith Ringgold, um painel frenético sobre um sangrento tumulto racial.
Não vi, contudo, muito sobre questões urgentes como a desigualdade de renda, desindustrialização ou a ascensão do populismo. Fiquei imaginando por que não havia mais trabalhos sobre o impacto de Wall Street na economia regular do país, ou sobre as consequências persistentes da crise financeira de 2008 —causa de tantas inquietações atuais do planeta.
Uma porta-voz do museu disse que os conselheiros não têm papel decisório quanto às exposições, cujos temas são determinados exclusivamente pela “forte equipe curatorial” da instituição, depois de consultas a artistas. Mas a influência de um conselho não precisa ser aberta para ser profunda; os curadores sem dúvida são antenados o bastante para saber até onde podem ir em seus desafios a um sistema do qual os conselheiros são um dos pilares.
Em última análise, é difícil medir o impacto da riqueza dos conselheiros sobre o conteúdo de um museu, e certamente haverá quem aponte para essa ou aquela exceção, mas é um tema que merece muito mais discussão do que a que vem tendo lugar.
Para as pessoas super-ricas, fazer parte do conselho de um museu traz grandes benefícios, o que inclui um incremento de seu status social, o acesso a outras pessoas poderosas e a melhoria de sua imagem.
Steven Cohen serve de exemplo.
Como presidente da SAC Capital, administradora de fundos que criou em 1992, Cohen acumulou uma fortuna de mais de US$ 9 bilhões [cerca de R$ 37 bilhões], mas também queria respeito e reconhecimento, e o mercado de arte certamente o ajudou com isso. Com o tempo, ele e sua mulher, Alexandra, montaram uma coleção de obras de Picasso, De Kooning, Pollock, Warhol, Koons e outros, que foi avaliada em US$ 1 bilhão [R$ 4,1 bilhões].
Cohen e sua empresa mais tarde foram investigados por possível uso indevido de informações privilegiadas. Um dos executivos da companhia foi condenado e sentenciado a nove anos de prisão, e a SAC pagou US$ 1,8 bilhão [R$ 7,3 bilhões] em multas. Cohen jamais enfrentou acusações criminais, mas, em janeiro de 2016, foi proibido de administrar dinheiro de investidores externos por dois anos.
No segundo trimestre daquele ano, Cohen se tornou conselheiro do MoMA. Em junho de 2017, o museu anunciou que ele e sua mulher doariam US$ 50 milhões à campanha de capitalização da instituição e que, em mostra do reconhecimento pela doação, a maior galeria contígua do museu receberia o nome de Centro Steven e Alexandra Cohen para Exposições Especiais.
Os Cohen, declarou Lowry, são “filantropos incríveis”, cuja “duradoura generosidade para com o museu exemplifica seu profundo comprometimento quanto a compartilhar a arte de nossa era com o maior público possível”. O valor de uma declaração como essa para a reputação de Cohen é inestimável.
Leon Black, o presidente do conselho do MoMA, também é um ávido colecionador de arte. Em 2012, ele adquiriu uma versão de “O Grito”, de Edvard Munch, por US$ 119,9 milhões [cerca de R$ 490 milhões], em um leilão —o preço mais alto pago em leilão por uma obra de arte até aquele momento.
O patrimônio líquido de Black é estimado em US$ 7 bilhões [R$ 28,5 bilhões], em sua maior parte derivado da Apollo Global Management, companhia de capital privado que ele comanda, cuja especialidade é adquirir empresas, reestruturá-las e vendê-las com lucro.
Há quem diga que os grupos de capital privado sobrecarregam as companhias de dívidas e as privam de seus ativos antes de vendê-las. Há quem diga que os grupos de capital privado investem nas empresas adquiridas para aumentar sua produtividade e torná-las mais lucrativas.
Os dois casos sem dúvida ocorrem, mas, na maioria das circunstâncias, segundo demonstram estudos, os benefícios cabem principalmente aos executivos e investidores, em detrimento dos trabalhadores.
Em novembro de 2018, o MoMA anunciou que Black e sua mulher estavam doando US$ 40 milhões [cerca de R$ 163 milhões] ao museu e que, em reconhecimento, a instituição criaria o Centro de Cinema Família Leon e Debra Black, ocupando dois andares do Ronald S. e Jo Carole Lauder Building (construído com dinheiro doado por Estée Lauder).
A doação foi anunciada em um evento beneficente de cinema e jantar de gala que o MoMA realiza anualmente. Patrocinada pela Chanel, a noitada incluiu uma exibição dos trabalhos do homenageado —Martin Scorsese— no Roy and Niuta Titus Theaters (construído com dinheiro de Helena Rubinstein). Os convidados em seguida jantaram no Donald B. and Catherine C. Marron Atrium (dinheiro da Paine Webber e do mercado de capital privado).
Eventos com celebridades como esses ajudam a desviar a atenção do papel desempenhado por Black na transferência continuada de renda da classe média para a elite endinheirada nos últimos 30 anos.
Existe alternativa ao sistema atual? A mais óbvia seria elevar substancialmente as verbas públicas para as artes em geral e, especialmente, os museus. O orçamento do National Endowment for the Arts (fundo nacional para as artes) não aumenta há praticamente 20 anos.
Em 2018, o MoMA recebeu míseros US$ 22 mil [R$ 89 mil] em verbas governamentais, vindas da Prefeitura de Nova York, ante os US$ 136 milhões [R$ 553 milhões] que obteve de fontes privadas. O MoMA não solicita nem recebe verbas federais ou estaduais. É uma posição compreensível, dada a indignação pública que surge periodicamente quanto a trabalhos provocativos, e pode até resultar em censura, como no infame cancelamento de uma exposição de fotos homoeróticas de Robert Mapplethorpe em 1989.
Mas o MoMA, na verdade, recebe apoio público substancial, se consideradas as deduções oferecidas aos seus doadores ricos no pagamento de impostos e o status do museu como instituição isenta de tributação. O público na verdade subsidia o museu sem exercer qualquer influência em sua governança.
Em troca da isenção de impostos, o governo poderia exigir que o MoMA e outros museus reservassem certo número de postos em seus conselhos para pessoas cujas vidas não sejam dedicadas a ganhar dinheiro. A presença de críticos de arte, historiadores, arquitetos e líderes de organizações sem fins lucrativos pode forçar os museus a considerar um leque mais amplo de pontos de vista (os conselhos já estão se diversificando em termos raciais).
Quanto a aumentar as verbas públicas, isso pode parecer difícil nos Estados Unidos de hoje, mas o clima político criou novas oportunidades.
Se os impostos dos ricos forem aumentados, proposta que tem o apoio da maioria dos candidatos democratas à Presidência, mais verbas públicas poderiam ser destinadas aos museus —e a bibliotecas, instituições de artes cênicas e outras entidades culturais. Elas são populares em comunidades de todo o país, e oferecer-lhes apoio pode se tornar uma causa eficiente.
O MoMA, o Met, o Whitney e os demais grandes museus são repositórios vitais e essenciais da cultura americana, mas seu domínio pelo 0,01% os torna altamente vulneráveis em um momento de grande fermentação social. Se eles não mudarem, os protestos só crescerão.
Michael Massing, escritor americano, é autor de "Fatal Discord: Erasmus, Luther and the Fight for the Western Mind" (Discórdia fatal: Erasmo, Lutero e a luta pela mente do Ocidente).
Tradução de Paulo Migliacci.