Idas e vindas da pasta da Cultura no governo Bolsonaro aniquilam cem anos de história
Ao apresentar a Getúlio Vargas o projeto de criação do Ministério da Educação, o político mineiro Gustavo Capanema (1900-1985) vaticinou: “[Esse será] o Ministério do Homem, destinado a preparar, compor e afeiçoar o homem ao Brasil”. Para tentar cumprir o destino da pasta que nasceu em 1930 e que trouxe em seu bojo a modernização da cultura no Brasil, Capanema chamou para perto si Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Oscar Niemeyer e Heitor Villa-Lobos.
Capanema era, nas palavras do biógrafo Murilo Badaró, um humanista movido pelo sonho de transformação do Brasil. Foi ele quem criou, no início dos anos 1930, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), marco da institucionalização da cultura no país, a Casa de Rui Barbosa e o Museu Nacional de Belas Artes.
Todos esses órgãos foram agora colocados, ao lado de muitos outros, sob a tutela do Ministério do Turismo e sob a batuta de Roberto Alvim, o novo Secretário Especial da Cultura. Alvim é o diretor teatral que estava na Funarte e que, há pouco mais de um mês, chamou a atriz Fernanda Montenegro de sórdida.
A mudança estabelecida pelo decreto presidencial publicado na quarta-feira (6) desconstrói não apenas um edifício institucional —que já vem ruindo— como todo um sentido. Um sentido que está no princípio de tudo. A cultura pode ser entendida, do ponto de vista antropológico, como um conjunto de valores, memórias e experiências partilhadas. Ela é, além disso, um conjunto de bens simbólicos, aí incluídos filmes, livros e obras musicais. O que depreender então da transferência desse universo para o âmbito do turismo?
Não se pode, de cara, negar que cultura e turismo têm alguma conexão. Em alguns países, como China e Turquia, as duas áreas habitam um só ministério. Mesmo aqui, são comuns, em municípios menores, as secretarias que colocam, sob o mesmo chapéu, cultura, esporte e turismo.
Pode então a mudança proposta pelo presidente Jair Bolsonaro ter algum sentido positivo? Não. E a razão para isso é simples: a mudança não faz parte de um projeto de construção, mas sim de um projeto de solapar um setor que tem feito uma oposição barulhenta ao governo. Da extinção do Ministério da Cultura (MinC) ao cancelamento de apoios financeiros e de projetos em curso, tudo, desde janeiro, tem sido feito de forma a desarticular aqueles que trabalham na área cultural.
As mudanças institucionais vão se configurando, nesse sentido, como uma forma de dificultar a reação. Como reagir a um decreto? Como confrontar uma reordenação ministerial? E assim o aparato que servia de apoio à produção cultural vai sendo desmontado.
Historicamente, a gestão pública da cultura, no Brasil, sempre esteve sujeita a solavancos e retrocessos.
O primeiro Departamento de Cultura e Recreação do país, criado por Mário de Andrade em 1935 —que acabou por originar a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo— foi esvaziado pouco depois de ter nascido. A criação do MinC, em 1985, pelo ex-presidente José Sarney, se deveu muito mais à necessidade de acomodação de um aliado político do que a um projeto cultural. A chegada das leis de incentivo, entre os anos 1980 e 1990, fez com que o Estado lavasse as mãos em relação às suas responsabilidades. Fernando Collor, com uma canetada, extinguiu todos os órgãos do setor.
Mas talvez nunca o desmonte institucional da cultura, da parte do governo federal, tenha sido tão nonsense. Ou, talvez, nunca tenha tido tanto sentido, como ensina Capanema.
Há 90 anos, o país tentava entrar na modernidade e, para isso, começou a erguer instituições culturais —algo que não teria sentido numa sociedade arcaica. Um ministério que assuma verdadeiramente a cultura, tenha ele que nome tiver, deverá ser sempre voltado à evolução do homem e ao exercício da cidadania. Provavelmente por isso, a pasta da Cultura, neste momento, não cabe mesmo em nenhum lugar.
Ana Paula Sousa é jornalista, doutora em Sociologia da Cultura pela Unicamp.