Com o fim do Ministério da Cultura, produtores avaliam os caminhos para criar pontes com o novo governo a partir de 2019
Emiliano Urbim e Alessandro Giannini para O Globo, 3/11/2018.
Em maio de 2016, o fim do Ministério da Cultura via medida provisória na posse de Temer provocou intensa mobilização do setor. Em 21 capitais, o movimento Ocupa MinC se instalou em prédios ligados à pasta, com o Palácio Gustavo Capanema convertido em polo de manifestação no Centro do Rio. Resultado: nove dias depois de extinto, o órgão foi recriado.
Agora, o setor terá os próximos meses para se adaptar e discutir mudanças. O governo eleito, que toma posse em janeiro, cumpre a promessa de campanha e, no plano de enxugar a máquina, anuncia que a pasta será incorporada como secretaria do novo Ministério da Educação, Cultura e Esporte. Diante disso, representantes da Cultura perguntam: e agora?
Várias questões-chave, que dizem respeito às principais ações do ministério nas últimas décadas, precisam ser respondidas nessa transição. Por exemplo: como fica a situação dos órgãos vinculados ao MinC, como a Funarte e o Iphan? Como fica a tão criticada e nem sempre compreendida Lei Rouanet? (leia mais abaixo). E, por fim, como será o diálogo com um governo que não tinha incluído a Cultura em seu programa?
A empresária Paula Lavigne, à frente do grupo de artistas 342 Artes, comenta:
— Promessa feita, promessa cumprida. Não é surpresa que o presidente eleito ia acabar com o MinC. Acho uma pena e acho que, sim, vai ter uma piora muito grande em toda a indústria cultural, que gera tanto emprego. É uma pena as pessoas não saberem o que a cultura gera para o Brasil.
Marcelo Calero esteve no meio da morte anunciada do MinC em 2016: foi nomeado secretário da Cultura e assumiu como ministro de Temer, cargo que ocuparia por cerca de seis meses. Recém-eleito deputado federal pelo PPS-RJ, ele afirma que o momento não é de enfrentamento, mas de diálogo.
— Não podemos nos deixar contaminar por uma nuvem ideológica, achar que a cultura pertence a certa militância — diz Calero, que espera, em seu mandato, “criar pontes” com o novo governo. — O momento é de conciliação e convergência.
Calero também ressalta que as autarquias do ministério, que devem permanecer sob a futura secretaria (veja abaixo os números do MinC) , “precisam ter seu papel e corpo técnico assegurados”. São órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), a Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Fundação Nacional de Artes (Funarte) que executam, na prática, as políticas culturais do governo.
Diretor-executivo do Instituto Inhotim e ex-presidente da Funarte, Antonio Grassi diz estar preocupado com o destino que será dado à Cultura. Outra questão importante para Grassi é observar se os nomes indicados para cargos terão representatividade na área. Por isso, para ele, a principal pergunta no momento é “Com quem vamos dialogar?”.
Potencial econômico
Para o músico e produtor Guilherme Afif Domingos Filho, preocupante seria se Bolsonaro, prometendo reformas estruturais urgentes, priorizasse mudanças na Cultura, que representa 0,05% dos gastos federais. Mas pondera:
— O momento é de filtrar o alarmismo. As palavras de um candidato e de um presidente são diferentes. Acredito pouco na economia desta fusão dos três ministérios, mas simboliza uma busca de eficiência. Para além disso, não há como falar sobre decisões não anunciadas.
Vários no setor se ressentem que o “rebaixamento” de ministério para secretaria implique em perda de acesso ao centro do poder: na teoria, o ministro despacha direto com presidente, enquanto o secretário se reporta ao ministro. Para Luís Antonio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), que se apresenta como apartidária, o status da pasta não é o que está em jogo: “o que importa é orçamento e planejamento”.
— Se não quiserem olhar o lado social da Cultura, pelo menos vejam o potencial econômico: nossa presença em feiras internacionais gera US$ 1,5 milhão em divisas. — diz Torelli. — Espero que nos recebam, o importante é encarar a cultura com seriedade.
O futuro da Lei Rouanet
Quase três décadas após a aprovação da lei de incentivo à cultura que leva seu nome, o diplomata, filósofo e secretário de Cultura do governo Collor, Sérgio Paulo Rouanet, resume seu sentimento em relação ao mecanismo hoje em dia:
— Sei que o novo governo tem críticas à lei, mas ela é questionada desde que surgiu, e sempre sobreviveu.
Em vigor desde 23 de dezembro de 1991, a Lei Rouanet é um mecanismo de isenção fiscal para a cultura. Ela permite a pessoas físicas e jurídicas aplicarem parte do imposto devido (teto de 6% e 4%, respectivamente) em ações culturais. Essas ações são pré-autorizadas pelo governo a buscar financiamento. Segundo o Ministério da Cultura, em 2017 , R$ 1,156 bilhão foram garantidos com a lei. Para efeito e comparação: de acordo com a Receita Federal, os benefícios fiscais anuais para montadoras de carros giram em torno de R$ 8 bilhões anuais.
Mudanças necessárias
Em 2016, foi instaurada uma CPI da Lei Rouanet, que, no ano seguinte, sugeriu o indiciamento de 12 investigados por desvios. O texto também propunha a melhoria dos mecanismos de controle e medidas para descentralizar a aplicação dos recursos, concentrados no Sudeste.
No final do ano passado, o atual ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, anunciou mudanças na instrução normativa da lei. Em geral bem recebidas pela área cultural, diziam respeito principalmente à admissão de empreendedores culturais iniciantes e à desburocratização do processo de obtenção de patrocínio.
Ao longo dos anos, na esteira de casos polêmicos pontuais, setores passaram a associar a Lei Rouanet à ideia de sustento fácil para artistas, que estariam se aproveitando do dinheiro público. Durante a campanha presidencial, Bolsonaro e aliados prometeram rever a lei — é dado como certo que o teto da renúncia fiscal seja diminuído.
Apesar das críticas, especialistas afirmam que, se a Lei Rouanet acabasse hoje, a cultura brasileira sentiria um grande baque. Henilton Menezes, autor do livro “A Lei Rouanet muito além dos (f)atos” (2016), é enfático:
— Não há museu nesse país que não faça uso da Lei Rouanet. São seis mil projetos aprovados por ano. Se ela desaparecer, é um prejuízo irreparável.
Vale ressaltar que, originalmente, a Lei Roaunet seria parte de um tripé de financiamento, completado pelos menos lembrados Fundo Nacional de Cultura e os Fundos de Investimento Artístico e Cultural. Eduardo Saron, diretor do instituto Itaú Cultural, comenta:
— É preciso que ocorram os repasses de 3% da arrecadação das loterias da Caixa para o Fundo Nacional de Cultura, há anos contingenciados ilegalmente pelo Ministério do Planejamento. Esse recurso pode aliviar a demanda da Lei Rouanet, tornando possível diminuir as distorções.
Para o diretor-regional do Sesc-SP, a Lei Rouanet também tem importância fundamental e deve ser mantida. Mas defende que deve ser aperfeiçoada:
— A Lei Rouanet nos indicou um modo de agir. Ela não pode, claro, ser substituta do Estado na função de fomentar a cultura. Agora, ela tem necessidade de aperfeiçoamento. O que não quer dizer que temos de demonizá-la.
Diretor-executivo do Instituto Inhotim, Antonio Grassi concorda que a lei pode ser revista, mas não por se tratar de “benefício para artistas”:
— Se houve excessos, isso foi pontual. Merece reparos, mas isso está longe de dizer que é mal utilizada. Tem que discutir descentralização, é bom que seja reavaliada.