O Estado da arte
Galeristas e colecionadores veem o decreto como agressão ao direito privado
Antonio Gonçalves Filho e Jotabê Medeiros
Um decreto publicado no Diário Oficial da União pela presidente Dilma Rousseff no último dia 18 muda consideravelmente os conceitos de coleções pública e privada de arte, além de modificar as noções de posse, de mercado internacional, de comercialização e, possivelmente, também de apreçamento de obras.
Pelo decreto (que regulamenta a Lei 11.904, de 14 de janeiro de 2009, que cria o Estatuto de Museus do País), de agora em diante, podem ser declarados de interesse público os bens que atualmente estão em museus (musealizados) públicos e privados e também os que ainda não estão em museus, mas em coleções particulares. Enquadram-se na lei todos os objetos de arte “cuja proteção e valorização, pesquisa e acesso à sociedade representarem valor cultural de destacada importância para o País, respeitada a diversidade cultural, regional, étnica e linguística”.
Em resumo: caso seja definido como “de interesse para o País”, uma tela, uma escultura ou outros bens poderão começar a ser monitorados pelo Estado brasileiro, por meio do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram, órgão do Ministério da Cultura). A venda das obras terá de ser aprovada pelo governo. Mas o nó górdio da coisa toda, o que está causando maior polêmica, é o seguinte trecho do decreto: o proprietário da obra de arte “não procederá à saída permanente do bem do país, exceto por curto período, para fins de intercâmbio cultural, com a prévia autorização do Conselho Consultivo do Patrimônio Museológico ou, caso se destine a transferência de domínio, desde que comprovada a observância do direito de preferência do Ibram”.
O texto colocou em polvorosa colecionadores, museólogos, leiloeiros e outros profissionais da área de artes visuais. O proprietário ou responsável pelo bem cultural declarado de interesse público, após ser notificado de que sua coleção é agora protegida, não poderá vender, restaurar ou emprestar sem comunicar o Ibram. E deverá manter informado o Estado sobre a condição da peça, sob o risco de ser responsabilizado nas esferas administrativa, civil e penal pelos prejuízos causados. A edição do decreto levou 4 anos de estudo, segundo o governo, que informou que não se trata de exercer preferência, mas de “salvaguardar determinados bens”.
De todos os artigos do decreto que regulamentou a lei 11.904, o que mais agitou o mercado diz respeito à manutenção de um cadastro específico dos bens declarados de interesse público que poderá, segundo o dispositivo legal, fazer parte de outros instrumentos da política nacional de museus. Embora exista quem considere o cadastro positivo - principalmente para monitorar obras desaparecidas -, que outros instrumentos da política de museus poderiam ser acionados para monitorar peças de arte? Essa é a pergunta de galeristas, marchands, colecionadores e até diretores de museus consultados pelo Caderno 2, apreensivos diante dos amplos poderes concedidos ao Ibram por um cadastro desse tipo.
Segundo a lei, ele será usado "para fins de documentação, monitoramento, promoção e fiscalização" desses bens. Qualquer interessado, além do proprietário de uma obra de arte, poderá requerer ao Ibram a instauração de um processo administrativo para declarar de interesse público um bem cultural. No momento em que o mercado internacional disputa obras de artistas brasileiros em leilões e feiras de arte, aqui e lá fora, é natural que artistas e donos de galeria vejam o decreto como uma intervenção negativa do governo na esfera privada - o artigo 39 da referida lei permite ao Ibram, por exemplo, realizar "inspeção administrativa" no local onde se encontre o bem cultural.
"Isso me parece invasão da privacidade", diz a galerista Marília Razuk, argumentando que a exportação de obras de arte não deve ser vista como danosa para o País. Ela lembra que obras iconográficas como Abaporu, tela de Tarsila do Amaral, ou a coleção de arte concreta de Adolpho Leirner, foram oferecidas a museus brasileiros antes de serem vendidas para museus estrangeiros. "A venda de obras brasileiras a colecionadores e instituições estrangeiras agrega valor", observa a galerista. "Acho que todo mundo vai mandar suas coleções para Miami com esse decreto."
Fato semelhante aconteceu durante o governo Hugo Chávez, que buscou atingir colecionadores milionários resistentes à política do líder venezuelano, expropriando seus acervos. Grandes coleções privadas da Venezuela foram enviadas aos EUA antes do decreto chavista. Até hoje, colecionadores venezuelanos cedem obras para exposições internacionais na esperança de vender seu patrimônio fora do país.
O advogado Saulo Kibrit, diretor da Bienal de São Paulo e também colecionador, avalia que o decreto configura uma "desapropriação indireta" das obras de arte privadas. "Restringe o direito da propriedade e pode gerar indenização", afirma Kibrit, que prevê uma "briga danada" pela frente. "Quem é que vai querer comprar algo que é restrito? A lei restringe o seu direito".
"O irônico é que as peças que estão na mão do governo estão em péssimo estado. Basta ver o que acontece com os Profetas de Pedra lá de Congonhas do Campo", afirmou o empresário Renato Whitaker, que era o maior colecionador privado de obras do Aleijadinho até anos atrás, com 52 peças. "Me desfiz de quase toda a minha coleção. Aqui, o colecionador é um fora da lei, jogam sobre ele essas leis todas para tirar aquilo que ele encontrou e preservou. Obras que estão nas mãos de particulares estão bem melhor do que nas mãos do governo", afirmou Whitaker.
O advogado Pedro Mastrobuono, cuja família é conhecida colecionadora das obras de Volpi, considera positiva a ideia do banco de dados do Ibram, mas prevê uma enxurrada de ações legais no Judiciário contra o decreto, pois "ele cria um atrito com dispositivos legais superiores que preservam a propriedade privada". Outro item criticado por ele diz respeito ao direito de imagem. "Ele continua sendo do autor e da família, no caso de sua morte, por 70 anos, e a reprodução das obras seria uma usurpação desse poder."
O curador-chefe do Masp, Teixeira Coelho, implica com a "fúria legislativa" do Brasil e o decreto, que obriga proprietários de obras a notificar as que, eventualmente, sejam de interesse público. "Se um colecionador não quer publicidade, é um direito dele." No momento em que uma obra se insere nesse escopo, qualquer curador, diz ele, terá dificuldades para organizar exposições, pois os colecionadores vão naturalmente se retrair e deixarão de emprestar obras aos museus.
PRINCIPAIS PONTOS
Início
Após processo administrativo, o dono do bem é
notificado da declaração de interesse público
A cobrança
Após homologação pelo Ministro da Cultura, começa
a cumprir as condições (e ser fiscalizado)
As restrições
Obra não pode ser restaurada ou vendida sem consulta prévia
As penalidades
Caso não cumpra lei, dono é responsabilizado civil e penalmente
Link para a matéria original: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-estado-da-arte-,1091691,0.htm