Os retrógrados
Sobre o fechamento do vão livre do Masp
Abilio Guerra
Está cada vez mais difícil suportar com alguma serenidade a onda reacionária que invadiu as redes sociais e a mídia das grandes corporações, em especial os jornais e revistas impressos. Na série de fatos lamentáveis que deixam qualquer cidadão democrata sobressaltado – os black blocks encapuzados que anarquizam manifestações com técnicas inventadas por militantes fascistas e nazistas dos anos 1920; defensores da meritocracia transvestidos em paladinos na luta contra as cotas e a bolsa-família; antigos ídolos da música popular que querem proibir biografias de pessoas públicas (1); etc. –, eis que o jornal O Estado de S.Paulo defende em editorial o fechamento do vão livre do Masp! (2)
Segundo o autor anônimo do texto, é necessário aceitar a “nova realidade da cidade”, “cercar o Museu” e “recorrer à força policial para colocar cada um no seu devido lugar”. O articulista é muito específico sobre aqueles que devem ser banidos da fresca sombra projetada pelo majestoso edifício concebido pela arquiteta Lina Bo Bardi: os dependentes e traficantes de droga, e os manifestantes de qualquer credo ou ideologia (mas eu arriscaria dizer que o editorialista consideraria tolerável uma festiva manifestação de dondocas e reis dos camarotes exigindo o gradeamento do vão do Masp...).
Contudo, quando olhamos para os grupos que maculam o ambiente requintado cobrado pelos cultíssimos frequentadores do Masp – segundo o articulista sem nome, obviamente –, nos deparamos com um universo heterogêneo: usuários de drogas, que constituem problema social de enorme gravidade a ser enfrentado com estratégias que passam ao largo da detenção policial; traficantes e vendedores de drogas, que precisam de grades, mas obviamente onde eles estejam dentro e não fora; e manifestantes, que em uma sociedade democrática tem na polícia a instituição afiançadora do seu direito à manifestação pública de suas demandas. Não preciso ser médico da USP ou sociólogo da PUC para saber que o isolamento do vão livre do Masp não vai resolver nenhum desses problemas reais ou imaginários.
Como se a instalação de gradil no vão do museu fosse um consenso da sociedade paulistana, o editorial do Estadão aponta o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como o único obstáculo a esta decisão tão óbvia para salvar a instituição da degradação moral. Para fortalecer o argumento, é convocado Teixeira Coelho, atual curador do Masp, que considera "um atraso essa posição do Iphan, pois a São Paulo de hoje não é a mesma da época em que o Masp foi inaugurado". Qual seria este “atraso”? Ora, é a insistência do Iphan em manter “o projeto arquitetônico original do museu, que prevê acesso irrestrito ao vão livre”. Tento deixar mais claro: o atraso do Iphan – cuja razão de ser é preservar o patrimônio cultural – está no fato inaceitável de insistir em preservar o projeto arquitetônico original, ou seja, o patrimônio cultural!
Mas vamos ao que importa: não há consenso sobre a necessidade de se fechar o vão livre para se preservar o Masp. Ao contrário, se há algum consenso dentre os verdadeiros amantes do museu – seja do seu edifício símbolo da cidade, seja do seu acervo – é acerca da diminuição constante de sua importância na cena cultural paulista, brasileira e sul-americana. E, para além dos consensos, temos uma questão objetiva, como nos lembra a arquiteta Mônica Junqueira de Camargo: o Masp é um “bem tombado pelas três instâncias do poder público Iphan, Condephaat e Conpresp” (3). Ou seja, as agências oficiais dedicadas à preservação do patrimônio histórico, em todas as instâncias – municipal, estadual e federal – entendem que estamos diante de um bem maior, que não pode ser descaracterizado. No mesmo texto – na ocasião a autora se digladiava com as mesmas forças obscurantistas, que tentavam impor na marra um edifício de 125 metros de altura ao lado do museu –, Mônica Junqueira aponta para os méritos maiores do projeto, que justificam e impõem sua proteção: “projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi em 1958 e inaugurado em 1968, é uma obra revolucionária enquanto forma arquitetônica; cálculo estrutural; proposta museológica e espaço público” (4). São estas características essenciais, razão do seu tombamento, que precisam ser escrutinadas.
Em belo artigo de 2007, Alex Miyoshi menciona o quanto a forma arquitetônica e a estrutura do Masp estão umbilicalmente ligadas e o quanto é simbiótica as atuações da arquiteta Lina Bo Bardi e do engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz na realização do projeto e na construção da obra (5). Depois de apurada pesquisa documental, Miyoshi nos apresenta o desenrolar das discussões e ações frente a problemas graves de infiltração de água na estrutura do edifício e que culminaram no revestimento vermelho-bombeiro dos dois pórticos estruturais, que contou com o apoio dos autores dos projetos de arquitetura e de estrutura, e do próprio curador do Museu, Pietro Maria Bardi. No que diz respeito à integridade da obra arquitetônica, podemos dizer que se obteve neste episódio uma vitória importante.
O mesmo não pode ser dito a respeito da proposta museológica, infelizmente. O arquiteto Renato Anelli já teve oportunidade em demonstrar o quanto o projeto expositivo proposto por Lina Bo Bardi para a pinacoteca do museu estava em sintonia com a própria arquitetura do edifício. Trata-se, segundo Anelli, de uma “concepção de dessacralização da obra de arte” (6) em sintonia com o projeto ideológico e cultural proposto pelo casal Bardi para a cidade de adoção e para o próprio país. Assim, tanto a caixa de concreto com faces transparentes apresentando o acervo para a cidade, como os suportes de vidro temperado colocando lado a lado, em convivência, quadros de escolas e autores distintos, fazem parte da mesma operação intelectual de criação de um novo espaço sócio-cultural:
“embalados no florescimento da cultura moderna brasileira, os Bardi pretendem que essa fosse uma oportunidade de apropriação daquele patrimônio, gerando uma cultura própria, com novas possibilidades de hierarquia de valores. O Masp se implanta, portanto, como um museu de caráter formativo, onde a explicação didática não significa uma doutrinação, mas sim uma formação de sujeitos capazes de elaborar um juízo de valor estético e cultural” (7).
Como frequentador assíduo do Masp que fui, me recordo muito bem do choque que sofri ao ver a magnífica pinacoteca banhada de luz convertida em cubo branco tão ao gosto da tradição museológica mais conservadora (que tem todo o direito de existir, mas não no Masp!). Recordo-me também dos responsáveis pela descaracterização: o arquiteto Júlio Neves e o professor de história da arte Luiz Marques, na ocasião presidente e curador do museu, respectivamente. Não me recordava da data, mas Renato Anelli me informa: foi em 1996, quando se iniciou uma longa obra de manutenção e ampliação da reserva técnica. Com motivos mais nobres, as persianas das fachadas passaram a ficar permanentemente fechadas, evitando-se assim a incidência excessiva de luz, que colocava em risco as pinturas. Contudo, o desenvolvimento técnico formidável das películas protetoras de vidro tornaram este argumento obsoleto. Não há mais nenhum motivo técnico ou cultural que impeçam a reconversão do Masp às suas condições expositivas originais, que são sua própria razão de ser e um dos aspectos mais importantes para seu tombamento.
Chegamos então à última característica que, segundo Mônica Junqueira, justifica o tombamento do Masp: o espaço público onde estão fincados os quatro pilares bojudos de sua estrutura, justamente o espaço que o Estadão e o curador atual gostariam de ver fechado. O terreno onde está implantado hoje o museu abrigava originalmente o belvedere Trianon, ponto de encontro da elite que se mudou para o espigão da Avenida Paulista após sua fundação no início do século 20. Em 1951, o mirante projetado por Ramos de Azevedo foi demolido e no local foi instalado um pavilhão provisório, projetado pelo arquiteto Luís Saia, para abrigar a primeira edição da Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Estas ocupações anteriores obedeceram à exigência de Joaquim Eugênio de Lima, urbanista e empreendedor responsável pela construção da avenida, ao doar o terreno à prefeitura: a vista para o centro da cidade não poderia ser obstaculizada ou impedida (8).
Lina Bo Bardi, ciente desta imposição, pensou inicialmente em uma pirâmide de vidro com parte grande do programa encravado no subsolo (similar à solução para o Louvre, desenvolvida por I. M. Pei muitos anos depois), para depois se fixar no edifício suspenso, derivado diretamente de sua proposta não construída para o Museu do Oceano (9). Na primeira hipótese, as pessoas precisariam contornar a edificação para chegar ao mirante; na segunda, que foi desenvolvida e construída, a relação com a vista para o centro se dá de forma direta, além de propiciar à cidade uma magnífica área sombreada que possibilitaria as mais variadas formas de ocupação, virtualidade que se materializou com a prática coletiva cotidiana ao longo dos anos: festas, shows, assembleias, pronunciamentos, feiras e um sem número de encontros coletivos que alimentam a vocação cidadã do espaço.
O edifício do Masp, uma instituição privada de interesse público, foi construído sobre um terreno público. Até onde eu sei, o terreno continua público até hoje. Sendo assim, a população de São Paulo, através dos poderes constituídos, autorizou o Masp usar um espaço urbano pertencente à cidade para construir seu edifício e tem autorizado, ao longo dos anos, que a instituição ali desenvolva suas atividades. Por má fé ou ignorância, o editorialista e curador escamoteiam a situação, dando a entender que o Masp tem feito uma gentileza para a cidade ao abrir seu terreno para uso coletivo. Ao invés de agradecer a cidade e a sociedade por esta concessão, a direção do Masp, na figura do seu curador, tenta denegrir a imagem de uma instituição séria como o Iphan e manifesta o desejo de fechar o vão livre do edifício, decisão à qual não tem direito moral ou legal (10).
As mazelas reais e imaginárias apontadas pelo Estadão e por Teixeira Coelho como motivos para o fechamento do espaço público são, na verdade, argumentos falaciosos sob os ângulos mais importantes da questão. Do ponto de vista cultural, a edificação está protegida por leis de tombamento em todos os três níveis governamentais existentes no país e é vital a manutenção de suas características fundamentais, que lhe dão substâncias cultural, artística e social. Do ponto de vista da sociedade, o direito coletivo ao espaço público se sobrepõe aos interesses específicos de curadores, donos de jornais e frequentadores chics do museu, que parecem não entender que a vitalidade de uma cidade está na sua capacidade em promover a convivência – se não harmoniosa, ao menos tolerante – entre cidadãos diferentes, tanto nos espaços públicos como nos espaços de acesso coletivo franqueado. O que está em jogo é uma cidade que possa ter suas ruas, calçadas, largos, parques, praças e mirantes ocupados indistintamente por crianças, pobres, homens, ciclistas, brancos, homossexuais, atletas, negros, prostitutas, idosos, índios, ricos, mulheres, deficientes físicos, mendigos, skatistas, dependentes químicos e até mesmo dondocas e reis do camarote.
notas
NA Este artigo só foi escrito por insistência da minha filha Helena Guerra, a quem dedico esta minha pequena contribuição ao debate.
1 Tratei recentemente do tema das biografias: GUERRA, Abilio. Os babacas. A desconstrução dos ídolos da música popular brasileira. Drops, São Paulo, ano 14, n. 073.05, Vitruvius, out. 2013 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.073/4909>.
2 É preciso preservar o Masp. Editorial. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 20 nov. 2013 <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,e-preciso-preservar-o-masp-,1098579,0.htm>.
3 CAMARGO, Mônica Junqueira de. A torre do Masp na Avenida Paulista. Minha Cidade, São Paulo, ano 06, n. 064.02, Vitruvius, nov. 2005 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/06.064/1961>.
4 Idem, ibidem.
5 MIYOSHI, Alex. O edifício do MASP como sujeito de estudo. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 084.02, Vitruvius, maio 2007 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.084/245>.
6 ANELLI, Renato Luiz Sobral. O Museu de Arte de São Paulo: o museu transparente e a dessacralização da arte. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 112.01, Vitruvius, set. 2009 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.112/22>.
7 Idem, ibidem. Neste mesmo artigo, Anelli demonstra o vínculo histórico dos suportes de vidro e concreto desenhados por Lina Bo Bardi com a tradição expositiva italiana, que remonta pelo menos aos anos 1930.
8 Cf. BARDI, Pietro Maria. Museu de Arte de São Paulo. Série Enciclopédia dos Museus, vol. XI. São Paulo, Cia. Melhoramentos, 1978.
9 Ver OLIVEIRA, Olivia de. Lina Bo Bardi. Sutis substâncias da arquitetura. São Paulo, Romano Guerra/Gustavo Gili, 2006.
10 Sobre a vocação pública do vão livre do Masp, ver: PERROTTA-BOSCH, Francesco. A arquitetura dos intervalos. Serrote, n.15, São Paulo, IMS, p. 6-23.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto, professor da graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.
Link para a matéria original: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.160/4961