Gradear o Masp?
José Guilherme Pereira Leite
Se o nosso objetivo é regredir à Idade Média, o jornal O Estado de S. Paulo nos deu ontem uma contribuição valiosa. Foi ao defender a instalação de grades no vão livre do Masp. A gente quase não acredita, mas eles fizeram isso.
São Paulo, modos de ver
Recentemente, participei de um trabalho no vão livre. Pois fui convidado a organizar um programa de filmes a ser exibido ali pela 37ª Mostra Internacional de Cinema, em parceria com a X Bienal de Arquitetura. Há dois ou três anos, o vão livre do museu recebe uma programação gratuita, todas as noites, durante a Mostra.
O trabalho que fizemos foi dos mais interessantes de que já participei. Optamos por filmes que falassem da nossa cidade, num momento em que ela fala de si mesma com tanta exasperação, radicalização e conflitividade. São Paulo é aquilo que sempre se diz: uma cidade múltipla e desigual, infernal e paradisíaca, frustrante e inspiradora, tudo ao mesmo tempo. É uma cidade que – como o próprio Brasil – nos desperta igualmente as maiores paixões e os sentimentos mais atônitos de choque e incredulidade.
Durante aqueles dias de Mostra, o mais legal de tudo foi ver o vão livre repleto de gente, de todos os tipos, cores e tamanhos. Entre o grupo dos espectadores fiéis, estava uma dupla de moradores de rua que rolava de rir. Às vezes ficavam juntos, às vezes se dividiam nas fileiras da platéia. Um deles fazia o estilo Bob Marley, o outro era mais esportivo. Demonstravam sobretudo uma enorme sensibilidade em relação aos filmes exibidos, reagindo às melhores passagens de cada obra.
O vão livre do museu esteve regularmente repleto. O público era sempre muito bom e, em duas ou três noites, chegou a nos impressionar pela quantidade. Na sessão de abertura, o espaço estava lotado e havia uma pequena manifestação em frente ao museu, com a qual convivemos normalmente. Quem também marcou presença foram, claro, a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana. Policiais de ambas as corporações davam até uma leve espiada nos filmes, como fazem muitas vezes nos jogos de futebol.
Foi muito emocionante presenciar o espaço público do Masp sendo usado por todos os tipos e figuras da cidade, de modo realmente aberto, livre, democrático. Todos saímos dali com a sensação de ter feito uma bela coisa, embora banal. Acreditamos ter conectado o dia-a-dia de São Paulo, a arte e a cultura locais, sob a guarda de uma obra radiante da nossa modernidade arquitetônica, um prédio celebrado em todo mundo como ponto alto da criatividade brasileira.
Pois bem.
Um vão... livre
É tão claro e evidente – para quem se dispõe a pensar – que a melhor maneira de se preservar um lugar… é usá-lo… Que a melhor maneira de se proteger um lugar… é usá-lo, é enchê-lo de gente, ocupá-lo para que realize seu uso.
O uso previsto para o vão livre do Masp tem uma história longa. Não dá para dar uma aula de arquitetura num blog, porém a arquiteta Lina Bo Bardi, que projetou o museu, tinha em mente que o térreo do prédio fosse assim, um plano contínuo em relação ao espaço da rua, porque isso, para ela, marcaria a relação entre o prédio e a cidade – a arte e a cidade! E, além do mais, daria aos seus habitantes um espaço generoso de convívio. Há quem diga que Bardi anteviu a corrosão urbanística da metrópole e tentou compensá-la naquele lugar, na avenida Paulista, indo assim na contramão do fechamento tendencial geral, do enclausuramento triste a que estamos nos condenando. Ponto alto do projeto é a vista que se tem para ambos os lados do Espigão, o parque do Trianon a Sudoeste, o vale da Nove da Julho a Nordeste.
O bom senso perdido
A proposta de se gradear um lugar como esse é uma coisa que a gente sequer acredita que seja possível, ainda mais se saída de um jornal importante. Em princípio, o desejo é sequer comentar. É um indício horroroso do que viramos. Uma cidade marcada pela violência e e pela desconfiança, em que a falsa solução para tudo é nos fecharmos ainda mais em casa, estragarmos deliberadamente as poucas aberturas e respiros que nos restam. É proposta que desafia o entendimento e, vale repetir, provoca sentimentos de choque e incredulidade.
Mas o Estadão – sinto muito – já havia se complicado, no último mês de junho, ao pedir numa bandeja a cabeça da moçada que se manifestava contra o aumento das passagens de ônibus. Deu no que deu. A cidade virou um campo de batalha desnecessário. Isso aconteceu porque hoje, em São Paulo, existem divergências ideológicas fortes a respeito da cidade que queremos.
Os jornais brasileiros, nesse sentido, estão perdendo a perspectiva histórica de sua missão cotidiana. Por mais que tenhamos um problema real no vão livre do Masp – e todos sabemos que o temos – gradear o museu só pode ser visto como solução se o nosso objetivo for de fato regredir à Idade Média, agravar as carências que fazem de São Paulo um lugar dos mais inóspitos e desagradáveis. Ou, pior, regredir às cavernas mesmo (na Idade Média, pelo menos havia Giotto, Dante, Petrarca...).
Cabe ainda lembrar que o problema maior do Masp é não a ocupação indesejada do vão livre por usuários de crack, mas lidar com a sua eventual irrelevância cultural para o futuro da cidade. Gradeá-lo seria apenas o chamado “tiro de misericórdia”, a ser portanto evitado.
Curiosamente, dentro do museu, está aberta uma exposição de arte que responde muito bem aos desejos manifestos pelo editorialista do Estadão. É a exposição "Modos de atravessar", que também faz parte da X Bienal de Arquitetura de São Paulo. Preto no branco: não às grades.
Link para a matéria original: http://br.noticias.yahoo.com/blogs/blog-ultrapop/gradear-o-masp-182246519.html