'Queermuseu', a exposição mais debatida e menos vista dos últimos tempos, reabre no Rio
Quando as portas das Cavalariças da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio de Janeiro, se abrirem no próximo sábado, o público carioca poderá visitar a exposição mais debatida e menos vista dos últimos tempos.
Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi cercada de polêmica após seu fechamento às pressas, em setembro do ano passado, pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, respondendo a fortes críticas de grupos que viram nas obras apologia a pedofilia, zoofilia e blasfêmia.
Um mês depois, a Queermuseu foi vetada pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella, que gravou um vídeo afirmando que os planos de levar a exposição "de pedofilia e zoofilia" para o Museu de Arte do Rio (MAR) não iriam adiante. "Só se for no fundo do mar", afirmou à época.
A remontagem da exposição na EAV foi possibilitada pela maior campanha de financiamento coletivo do país, idealizada pelo diretor da instituição, Fabio Szwarcwald. O crowdfunding captou mais de R$ 1 milhão de quase 1,7 mil pessoas e contou com a venda de obras de arte doadas por 70 artistas e show de Caetano Veloso para levantar recursos.
Foram "11 meses de tormenta", diz o curador Gaudêncio Fidelis à BBC News Brasil, até que a exposição pudesse ser de fato exposta ao público.
"Isso que a gente chama de polêmica é o resultado de uma investida muito específica que começou com o MBL (Movimento Brasil Livre) e criou uma narrativa falsa para a exposição", diz o curador gaúcho.
Agora, afirma, caberá à sociedade julgar o mérito artístico da Queermuseu. "Com a exposição aberta, essa discussão poderá ser reinstituída", afirma.
Para Fidelis, o processo foi uma batalha em favor de liberdades individuais e contra "investidas obscurantistas".
"Grandes parcelas da sociedade entenderam que é possível empreender e vencer uma luta pelos valores democráticos. Acho que esse é o principal legado que a exposição deixa hoje", diz Fidelis.
Um dos líderes do MBL, Kim Kataguiri, afirma à BBC News Brasil que o grupo defende a liberdade de expressão e protestou contra a Queermuseu pelo mau uso de dinheiro público, via isenção fiscal, para algo "que não representa a maior parte dos valores da sociedade" e porque crianças estavam sendo levadas para a exposição por escolas "sem a anuência dos pais".
Onda de protestos fez exposição ser fechada às pressas
Originalmente aberta no dia 15 de agosto do ano passado no Santander Cultural, na capital gaúcha, a Queermuseu ficaria em cartaz até 8 de outubro.
Recebera R$ 800 mil de financiamento por isenção fiscal, via Lei Rouanet. Acabou sendo fechada às pressas quase um mês antes do previsto - nas contas de Fidelis, dois dias e quatro horas depois do início da onda de protestos nas redes sociais.
Com o MBL na dianteira, críticos denunciaram obras da exposição, clamando pelo seu encerramento e por um boicote ao Santander.
Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva (1996), do gaúcho Fernando Baril, que retrata Jesus crucificado com os múltiplos braços da deusa do hinduísmo, foi considerada uma ofensa ao cristianismo. Travesti da lambada e deusa das águas(2013), da cearense Bia Leite, faria apologia à pedofilia. De maneira geral, muitos se posicionaram contra a presença não regulada de crianças na exposição.
Ao justificar o fechamento, o Santander disse entender que "algumas obras desrespeitam símbolos, crenças e pessoas", o que não estaria em linha com sua visão de mundo.
Dias depois, entretanto, o Ministério Público do Rio Grande do Sul concluiu que as obras da Queermuseu não faziam "nenhuma apologia ou incentivo à pedofilia" e recomendou a reabertura da exposição pelo banco, o que não foi feito.
O êxito das investidas e o encerramento precipitado geraram uma nova onda de revolta na internet, desta vez, denunciando censura e defendendo a liberdade de expressão.
Kataguiri afirma à BBC News Brasil que o movimento não defendeu censura. "Foi um mero boicote. Em nenhum momento, pedimos ação do governo para censurar a exposição", afirma.
"Boicotes são uma ação voluntária que existe em toda democracia saudável, e o banco atendeu por livre e espontânea vontade, para preservar sua imagem.
Para o crítico de arte e professor da PUC-Rio Sérgio Bruno Martins, é sintomático que o caso tenha ocorrido em um centro cultural do setor privado, gerido pelo departamento de marketing cultural de um banco.
"Se uma instituição faz a avaliação de que o seu público está pautado por valores mais conservadores, vai tentar atendê-los. Podem ter algum compromisso com a arte, mas o primeiro compromisso é com a imagem da marca", diz o professor da PUC-Rio.
Para ele, associar obras de arte a pedofilia ou zoofilia passam por uma noção ingênua e moralizante da representação, como se as obras tivessem adesão moral àquilo que representam. "Eles viram no meio da arte a chance de inflamar uma espécie de guerra cultural, jogando com um plano moral, no qual uma retórica da escandalização tem um apelo muito fácil, especialmente nesse ecossistema de redes sociais", afirma.
O que é a Queermuseu
A Queermuseu abrange 223 obras de 84 artistas, como Adriana Varejão, Volpi, Lygia Clark e Leonilson, datadas dos anos 1950 até os dias de hoje.
É a maior exposição sob a alcunha queer no Brasil. A expressão da língua inglesa significa estranho, excêntrico, e era usada pejorativamente para se referir a homossexuais - mas foi reivindicada por movimentos LGBTI, passando a designar comportamentos que não se encaixam em padrões normativos de gênero.
Segundo o curador, a exposição busca investigar, e não "ilustrar", a questão - refletindo, por exemplo, sobre como a ideia do estranhamento e do fora da norma pode contribuir para pensar a arte.
"Para tratar do impacto cultural conceitual, artístico e histórico da palavra queer, trago obras que não são queer. Que são formalistas, que não têm nenhuma relação com questões de gênero e sexualidade", afirma Gaudêncio Fidelis.
"Tanto que a narrativa difamatória em torno da exposição foi criada a partir de cinco obras, não mais do que isso."
As obras que estiveram no centro dos ataques estarão na remontagem. A polêmica fez com que o curador fosse chamado a se explicar no Senado, convocado para depor na CPI dos Maus Tratos Infantis pelo senador Magno Malta (PR).
Lá, afirmou que as obras haviam sido "recortadas, editadas e descontextualizadas para criar uma narrativa falsa e contrária à sua natureza", com fins difamatórios.
"A minha preocupação é que essas obras não passem por um processo difamatório pela segunda vez", diz Fidelis.
"É preciso restituir seu lugar na história da arte brasileira, que foi roubado com o fechamento da exposição e com a criação de uma narrativa difamatória que não tem nada a ver com a sua realidade."
Recomendação de idade
As Cavalariças da EAV, que pertenciam à antiga fazenda que deu origem ao Parque Lage, aos pés do Corcovado e da Floresta da Tijuca, foram reformadas com a verba do financiamento coletivo realizado para receber a Queermuseu.
Mesmo na reta final da montagem, surgiram contestações. Na semana passada, o pastor Silas Malafaia, da Associação Vitória em Cristo, pediu que o Ministério Público do Rio impusesse uma classificação indicativa para que a exposição não fosse recomendada a menores de 18 anos.
Os organizadores acabaram aceitando o meio termo sugerido pelo MP. Um aviso na entrada da exposição informará que a exposição não é recomendada a menores de 14 anos desacompanhados dos pais ou responsáveis.
Gaudêncio Fidelis diz acreditar que a exposição será a mais visitada no país na última década. "Não pela polêmica, mas porque as pessoas se deram conta de que algo foi roubado delas", afirma.