Cultura perde metade de seu orçamento federal na última década e segue em queda
Fábrica de Cultura em Sapopemba, na zona leste da capital paulista, adotou medidas de prevenção contra a Covid-19. Rubens Cavallari/Folhapress
Redução vem desde o governo Dilma e hoje convive com ataques da gestão Mario Frias ao setor artístico
Em dez anos, o orçamento destinado à área da cultura pelo governo federal caiu quase pela metade.
Em 2011, quando a pasta ainda tinha status de ministério, o valor autorizado para a cultura foi de R$ 3,34 bilhões. Já neste 2021, quando a Cultura já havia sido rebaixada para o status de secretaria especial, dentro do Ministério do Turismo, o valor previsto pela Lei Orçamentária Anual foi de R$ 1,77 bilhão. Os valores foram corrigidos com base no IPCA, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, que mede a inflação no país.
Os dados estão disponíveis no Siga Brasil, plataforma de informações sobre o orçamento público federal, disponível gratuitamente. O Orçamento autorizado —que é o valor previsto na Lei Orçamentária Anual e nas emendas que a complementam— chegou ao seu ápice em 2013, quando foram previstos R$ 5,57 bilhões para a Cultura.
Mas a tendência de crescimento foi revertida já no governo Dilma Rousseff, que em 2014 autorizou R$ 4,6 bilhões, uma queda de quase 17%.
Já os valores empenhados, que são aqueles recursos que foram formalmente reservados, garantidos para determinado fim, foram R$ 2,6 bilhões em 2010. Em 2020, o valor foi de R$ 1,3 bilhão, ou seja, o empenho caiu pela metade em dez anos. Os números também foram corrigidos para valores atuais.
Em 2021, o valor empenhado é de R$ 657 mil —mas a comparação deste com outros anos por enquanto é incerta, uma vez que muitos recursos costumam ser empenhados nos últimos meses do ano e ainda estamos em setembro.
Segundo Célio Turino, ex-secretário da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura de 2004 a 2010, "houve uma desimportância da cultura a partir de 2011, sendo sincero". "Ela perdeu um papel estratégico que ela teve no governo Lula, inegavelmente."
Segundo ele, no governo Dilma, "houve um tropeço, uma diminuição do entendimento do papel da cultura e isso se refletiu também no orçamento, mas se manteve num patamar razoável". No governo Temer houve "uma quebra significativa, por conta das políticas de austeridade e do teto de gastos".
Já no governo Bolsonaro, "entramos no contexto da chamada guerra cultural". "Eles fizeram muito pelo ataque a artes e cultura. É uma arquitetura da destruição. Aí não tem padrão comparativo." "Eu considero que o governo Bolsonaro está tendo muito êxito na proposta de cultura deles. Porque a proposta deles é de destruição", diz Turino.
Mário Frias, o secretário especial da Cultura do governo Jair Bolsonaro, estrelou 'Um Povo Heroico', campanha voltada ao reconhecimento de grandes figuras nacionais, conhecidas ou anônimas.Reprodução/SecomVc no Twitter
"Acho que é coerente com algo que vem ocorrendo desde o governo Temer que Bolsonaro só fez agudizar. Esse governo, cada vez mais isolado, precisa comprar o seu apoio no Congresso —a aliança com o centrão custa caro e vai custar cada vez mais. Por outro lado, o desprezo, o ódio, a ignorância e o ressentimento com tudo que signifique cultura é patente nesse governo", diz Roberto Gervitz, cineasta e coordenador do SOS Cinemateca.
"O governo Dilma sentiu os efeitos da crise que havia começado em 2008 que no Brasil vinha sendo enfrentada com política econômica anticíclica até quando foi possível", continua. "A questão não é só de renda, é de política cultural, que mudou radicalmente. Mas é fato que, a partir de um certo momento, após as eleições de 2014, Dilma fez uma inflexão a uma política econômica ortodoxa sob forte pressão do mercado."
"É mais do que triste olhar essa redução drástica de investimentos em cultura nos últimos anos, é a constatação de um enorme equívoco de gestão que reduz as possibilidades de crescimento do Brasil. A cultura é o único setor econômico que impacta em todos os outros, alavancando negócios e gerando renda nas mais diversas áreas, muito além do âmbito artístico. Isso significa que todos os setores sofrem impactos com a redução do investimento na cultura!", diz Daniele Torres, sócia-diretora da plataforma Cultura e Mercado.
"Deveríamos fazer o inverso, investir cada vez mais em cultura. Um país que não entende a cultura como prioridade estará sempre subdesenvolvido."
Mário Frias (dir.) fez aula de tiro no Bope com Eduardo Bolsonaro (centro), que disse que 'arma também é cultura'. Reprodução/Twitter
"O governo federal acabou com o Ministério da Cultura", diz Eduardo Barata, presidente da Associação dos Produtores de Teatro, a APTR. "A secretaria de Cultura, mesmo existindo, é como se não existisse. Mas, na verdade, o que eles pretendem da cultura é a dominação ideológica. Sinto em dizer que não conseguirão."
Enquanto isso, o setor cultural vê lentidão em mecanismos de fomento como a Lei Rouanet e editais da Ancine, a Agência Nacional do Cinema. Mario Frias até hoje não lançou novo edital após o fim do mandato dos membros da Cnic, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, colegiado que decide sobre aprovação de projetos da Lei Rouanet —a Cnic se reuniu pela última vez em abril.
Com isso, as decisões anteriormente atribuídas à Cnic são hoje centralizadas nas mãos do capitão da PM baiana André Porciuncula, secretário de Fomento da pasta.
Além da lentidão, não raro o setor sofre ataques por parte do governo Bolsonaro. Em julho, este jornal mostrou que um festival de jazz na Bahia, que se declara antifascista, recebeu sinal vermelho para captar recursos via Lei Rouanet pela gestão Mario Frias. O processo foi analisado dentro do âmbito da Fundação Nacional das Artes, a Funarte, num documento carregado de referências religiosas.
O secretário Porciuncula se posicionou no Twitter. "Quer brincar de fazer evento político-ideológico? Então faça com dinheiro privado. A cultura não ficará mais refém de palanque político-partidário, ela será devolvida ao homem comum. A lei é muito clara, dinheiro para cultura não pode financiar nada além das ações culturais."
Ato em apoio à Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Thea Severino/Folhapress
A gestão do ex-galã de “Malhação” ainda foi responsável recentemente por um expurgo de livros entendidos pelo governo como problemáticos da Fundação Cultural Palmares —parte do material foi dividido em grupos como “iconografia delinquencial”, “sexualização de crianças” e “livros de e sobre Karl Marx”.
Quando uma live de temática LGBTQIA+ foi cancelada na véspera pela prefeitura de Itajaí, em Santa Catarina, Frias comemorou. Por outro lado, Frias e Porciuncula promoveram, mais de uma vez, lives com artistas gospel, no intuito de orientar sobre como emplacar projetos de arte cristã no mecanismo da Lei Rouanet.
No final de julho, um incêndio que atingiu o depósito da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, incinerou quatro toneladas de documentos sobre políticas públicas de cinema do Brasil, praticamente extinguindo a memória das instituições e programas audiovisuais brasileiros.
Principal instituição de preservação do audiovisual brasileiro, a Cinemateca está no meio de um imbróglio envolvendo o governo federal que se arrasta há anos e que se agravou nos últimos meses.
O contrato que o governo tinha com uma entidade privada para administrar o local se encerrou em 2019 e, depois disso, funcionários foram demitidos e contas ficaram em atraso —incluindo aí as de prestadoras de serviços de segurança e de manutenção do imóvel. O governo Bolsonaro só lançou um novo edital para a gestão da Cinemateca depois do incêndio.