No último dia 14 de junho, a Folha de São Paulo publicou no Caderno Ilustrada que o Museu da Casa Brasileira (MCB) passará ao comando da Fundação Padre Anchieta (FPA), fundação de direito privado responsável pela TV Cultura e que, sendo a proprietária do Solar Fábio Prado (casarão que abriga o museu), solicitou ao estado a sua devolução.
A bem do interesse público e considerando a reconhecida qualidade das ações que vêm sendo desenvolvidas nesse edifício, por meio da parceria entre a Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo (SEC) e a organização social A CASA, é fundamental que qualquer alteração de destinação do imóvel esclareça previamente:
- Qual o interesse e a viabilidade dessa retomada pela Fundação Padre Anchieta no atual momento crítico, em que seguimos imersos em uma crise sanitária de proporções mundiais e com perspectivas nada alentadoras em relação à igualmente grave crise financeira que se abate sobre o estado e o país?
- O que ela pretende fazer com a edificação e como pretende manter preservado e divulgado esse patrimônio arquitetônico?
- Qual a proposta da Fundação e do estado para o Museu da Casa Brasileira, atualmente instalado no imóvel histórico reivindicado?
- No caso de se propor a saída do MCB do Solar Fábio Prado, qual a destinação definida, qual o estudo de viabilidade e adequação que respalda essa transferência e quais os recursos previstos para a mudança e nova implantação?
- No caso de permanecer no Solar, passando à gestão da FPA, o que justifica essa medida? Qual o sentido de a Fundação Padre Anchieta solicitar a devolução de um imóvel que lhe pertence e que está sendo utilizado para atividades de outra instituição se a intenção é manter no imóvel a instituição “inquilina”? O interesse no caso diz respeito aos recursos de gestão do Museu?
- A FPA passará a receber recursos do estado para a gestão do MCB?
- É legítima a alteração de uma gestão bem sucedida e bem avaliada, que atua em sua área de especialidade, por outra que tem outro foco prioritário e pouca ou nenhuma experiência nesse tipo de gerenciamento por motivações financeiras?
- Qual a vantagem dessa mudança de gestão para o interesse público e o bem comum? O que a justifica e em que medida ela permite comprovar ganho para as cidadãs e cidadãos?
- Ante a inexistência de expertise da FPA no setor museológico, como será garantida a continuidade e qualidade das ações desenvolvidas?
- Ante as dificuldades técnicas e financeiras da FPA na preservação e adequada divulgação de seu próprio acervo museológico, o que leva a crer que seu desempenho será diferente – melhor e mais econômica, social e culturalmente responsável – ao assumir o MCB?
- Considerando que o Museu da Casa Brasileira é um museu estadual vinculado à SEC, como será garantida a continuidade de sua integração à rede de museus da Secretaria?
- Uma vez que a FPA não é qualificada como organização social nos termos da legislação paulista, como ficará garantido o rigor técnico e administrativo-financeiro de planejamento, execução, acompanhamento, monitoramento e avaliação das ações e recursos que atualmente é mantido em relação à gestão do museu?
- Visto que o museu é do estado e não pode ser gerido sem as devidas garantias e comprovações de competência técnica específica e de lisura que lastreiam as parcerias do estado com o terceiro setor na gestão de seus próprios, a bem da isonomia, da continuidade das séries históricas disponíveis no portal da transparência da Secretaria para apoiar o controle social e do zelo pelo cumprimento dos princípios da Administração Pública, a SEC passará a exigir e a FPA passará a prestar contas detalhadamente do planejamento, das atividades e do orçamento do museu, como ocorre com as organizações sociais parceiras da Secretaria da Cultura?
- Eventual transferência de gestão do MCB à FPA utilizará que marco regulatório? A Fundação se qualificará como OS? Ou o estado pretende adotar o MROSC, que pressupõe menores exigências formais, administrativas e de governança e menos rigor no controle? Em ambos os casos, a escolha da FPA só poderia ser validada após processo de seleção pública nos termos da legislação correspondente. O estado não poderia simplesmente transferir ao privado essa gestão sem cumprir todas as etapas que evidenciem a tomada da decisão mais correta. Existe outra hipótese?
- Essa iniciativa assinala uma possível intenção do governo do estado de reduzir a utilização do modelo OS na cultura?
Num momento de recursos escassos, cultura sob ataque e sem espaço para sofrer (mais) efeitos de decisões mal-fundamentadas, essas são apenas algumas primeiras e singelas questões, para contribuir ao necessário e ampliado debate.
O momento pede foco na superação dos imensos desafios pandêmicos e pós-pandêmicos. E é justamente quando há tantos problemas a solucionar, que o que funciona bem não pode ser perdido ou prejudicado. Mesmo que todas as atenções estejam voltadas para as dificuldades, é necessário reconhecer que temos sim iniciativas públicas com bom desempenho, apesar dos percalços e que elas vêm contribuindo para que ultrapassemos a tormenta. No caso do setor cultural, ainda que a Secretaria da Cultura seja alvo de críticas por questões variadas, é inegável que a gestão dos museus estaduais tem se esmerado para garantir a preservação do patrimônio e a retomada das ações presenciais, mesmo com todos os cortes de recursos e as limitações sanitárias.
O planejamento de médio prazo e a transparente execução dos recursos orçamentários sob modelo OS na cultura paulista alcançou um nível de acompanhamento, monitoramento e avaliação rigoroso e transparente, sobretudo na área de museus – fruto da dedicação incansável das equipes da pasta e do empenho das organizações sociais parceiras. As parcerias com OS de museus são cuidadosamente planejadas e acompanhadas por uma pequena, qualificada e comprometida equipe de servidoras e servidores públicos. Há um esforço de envolvimento de todo setor museológico paulista na definição das políticas públicas para os museus do estado. O planejamento dos museus da SEC é integrado ao planejamento do Sistema de Museus do Estado, observa a Política Nacional de Museus e as principais recomendações das entidades internacionais do setor. As ações previstas são executadas por organizações sociais especializadas, experientes e vocacionadas aos temas museais com que atuam. Esse trabalho e monitorado e avaliado tanto pelo controle interno da Secretaria (Unidade de Monitoramento) quanto pelos órgãos de controle do poder executivo (Secretaria da Fazenda) e do poder legislativo (Tribunal de Contas do Estado).
Historicamente, a Unidade de Museus da SEC tem o maior número de contratos de gestão com organizações sociais e as melhores avaliações internas e externas, praticamente desde o início do modelo OS. Tudo isso é fruto de um trabalho de enorme dedicação, competência técnica e persistência no registro, pesquisa e análise dos dados, visando melhorias constantes nos processos e resultados.
É um compromisso que tem se mantido tanto na Secretaria quanto nas OSs parceiras e é a razão pela qual, apesar de todas as dificuldades da pandemia, os museus da SEC conseguiram receber 1.046.129 pessoas presencialmente em 2020 (26% do público total de 2019) e alcançar a marca de 12.904.452 de visitas no formato online – dado inédito e bastante expressivo quando se considera o contexto de isolamento, ausência de preparo, recursos técnicos e know how para a atuação virtual, ausência de tradição do próprio público para acesso a essas iniciativas e todos os cortes de recursos e de pessoal.
Esse registro é importante porque, ao mesmo tempo em que o modelo OS contribuiu para manter e aprimorar as ações dos museus ao longo dos últimos anos em SP, ele também criou uma sistemática de trabalho que se pauta por uma política de estado. Isso quer dizer que as ações têm consequências. Não se pode planejar algo e depois mudar de ideia; pactuar uma meta ou verba e depois não cumprir, porque fica tudo registrado e disponível para qualquer pessoa, com destaque para todas as pessoas envolvidas no processo de fiscalização. Isso não quer dizer que seja tudo enrigecido, como acontecia com convênios e licitações. Pelo contrário: há grande flexibilidade e espaço para a criatividade dentro do compromisso público assumido, e até margem para mudar ações e previsões orçamentárias. Entretanto, tudo precisa ser sempre claramente justificado antes e detalhadamente comprovado depois. Nesse sentido, não há “margem de manobra” ou de “encaixe” de nada que não possa ser republicanamente respondido e publicizado. Essa grande vantagem do modelo OS – que é a flexibilidade na execução associada ao rigor e transparência no planejamento e prestação de contas – tem funcionado muito bem na área paulista de museus. Não sem defeitos e contínua necessidade de correção e aprimoramento, mas indiscutivelmente sem nenhuma outra opção anterior ou paralela em uso no país que comprove resultados iguais ou melhores. Alterações nessa dinâmica de gestão precisam ser justificadas e, no mínimo, demonstrar que os potenciais benefícios previstos não acontecerão em detrimento da qualidade, do controle social e da transparência que têm sido assegurados.
A Fundação Padre Anchieta tem um respeitável histórico de realizações no campo da comunicação, da educação e da cultura, que incluiu, mais de uma vez, a gestão temporária de espaços e grupos artísticos do estado. Foram momentos difíceis, em que o recurso à FPA foi decisivo para evitar a paralisação ou mesmo encerramento de atividades de instituições históricas como a OSESP e a Jazz Sinfônica. Ainda que tenham sido efeito de conjunturas bastante complexas e adversas, os relevantes serviços prestados pela Fundação nesses períodos não podem ser esquecidos. Todavia, também é importante observar que essa instituição já tem imensos desafios e responsabilidades relacionados à sua finalidade de promover atividades educativas e culturais por meio do rádio, da televisão, da internet e de outras mídias que se revelem adequadas ao cumprimento de sua missão institucional, consubstanciada na produção e emissão de programação de caráter educativo, informativo e cultural. Ainda que a gestão de bens e equipamentos culturais possa integrar o rol de ações da FPA para alcançar esses objetivos, é essencial entender porque razão ela deveria fazer isso agora, assumindo a gestão do Museu da Casa Brasileira, que é um dos poucos museus brasileiros que conta com gestão eficiente e bons resultados há anos, apesar de todas as instabilidades tão conhecidas. Mais que isso, é vital compreender de que forma se garantirá que essa mudança em período tão delicado representará benefícios para o museu, para a própria Fundação e para o interesse público.
Isso tudo, claro, desde que a intenção real por detrás dessa solicitação de devolução do Solar Fábio Prado não represente a intenção de ocupá-lo de maneira diversa, retirando dali o Museu da Casa Brasileira. Se assim for, torna-se ainda mais urgente conhecer os planos da atual gestão pública estadual para assegurar que o patrimônio museológico da casa brasileira seja adequadamente transferido, com todos os recursos e requisitos necessários para garantir no mínimo, e logo, equivalente qualidade dos serviços culturais prestados.
Sem essas respostas, o que se vislumbra, infelizmente, é mais risco ao patrimônio histórico e cultural paulista e brasileiro. É necessário que o governo paulista, que tanto empenho tem dedicado a distanciar suas ações do danoso governo federal na gestão da saúde, também no campo da cultura reassuma um papel de liderança, responsabilidade e compromisso público.