Prêmio das Artes, anunciado por ex-secretário que citou Goebbels, é passadista e dirigista
Bolsonaro faz live com ministro da Educação Abraham Weintraub (esq.) e Roberto Alvim (dir.), ex-secretário especial da Cultura - Divulgação
O vídeo em que o recém-destituído secretário especial da Cultura parafraseia o ideólogo nazista Goebbels é uma peça de propaganda tão desconcertante que, depois de vê-la, é até difícil falar sobre a iniciativa governamental que a originou: o Prêmio Nacional das Artes.
Mas o edital, primeira ação propositiva do governo para a cultura, sobreviverá à demissão de Roberto Alvim —motivada, provavelmente, menos pelo conteúdo e mais pela repercussão negativa de sua fala. O discurso, afinal de contas, apenas ecoou o que ele próprio e Jair Bolsonaro disseram na live em que se anunciou o prêmio.
O objetivo do edital de R$ 20 milhões é, de acordo com a Secretaria Especial da Cultura, promover o “renascimento das artes”. Para isso, seus formuladores dividiram o prêmio em sete categorias: óperas, espetáculos teatrais, exposições individuais de pintura e escultura, contos, CDs e histórias em quadrinhos.
Voltamos assim à era em que os governos, quase sempre movidos pelo nacionalismo, definiam o que devia ser financiado e gostavam de subsidiar, sobretudo, o que era considerado “alta cultura”. Essa expressão foi tirada das catacumbas por Alvim.
A ideia de “alta cultura” em oposição à “cultura popular” —que remete aos termos em inglês, "high culture" e "low culture"— determinava as ações dos governos na área cultural até as décadas de 1940 e 1950. Os primeiros a enfrentar, teoricamente, o elitismo da arte e valorizar a cultura que brotava de ambientes socialmente marginalizados foram os ingleses Richard Hoggart (1919-2014) e Raymond Williams (1921-1988).
Se cabe, 62 anos após a publicação de "Cultura e Sociedade", livro-farol de Williams, voltar a esse assunto meio velho é porque o Prêmio nos devolve a uma visão da cultura que, já na década de 1960, era entendida como ultrapassada.
Williams definia a busca por uma cultura que refletia apenas “as ideias acabadas e estabelecidas de determinada classe” como “produto do primitivismo”. Com a evolução do olhar sobre o que é cultura e o que tem “valor” —outro termo démodé empregado por Alvim— chegamos, nos anos 1980, à diferenciação entre democratização da cultura e democracia cultural.
A democratização da cultura parte da ideia de que existe uma cultura estabelecida e superior, que deve ser difundida entre aqueles que, por falta de acesso e formação, dela não desfrutam. É o que o Prêmio faz ao estabelecer linhas estanques e enfatizar acesso gratuito às obras premiadas.
A democracia cultural, por outro lado, leva em conta que todos, ou muitos, produzem arte. Uma política de cultura, portanto, em vez de apenas tentar levar o morador da periferia a uma ópera num teatro de colunas renascentistas, deve também incentivar a cultura que sua comunidade produz ou aprecia.
Jair Bolsonaro disse, na live, que, finalmente, será produzida uma cultura que interessa à maioria da população. Maioria? Ópera. Pintura. Escultura. Nesses três casos, é indisfarçável o impulso dirigista: o governo define gênero artístico e suporte.
Isso sem mencionar a desvinculação com o século 21. Falar exclusivamente em pintura e escultura, por exemplo, é desconsiderar a realidade das artes visuais. Em 1951, a 1ª Bienal de São Paulo expunha uma obra de Abraham Palatinik que tinha de ser ligada na tomada.
Em tempos de consumo (e produção) digital a referência a CDs chega a ser engraçada.
Ideologicamente relevante e perturbador, isso tudo tem, na prática, um quê de ridículo. Os R$ 20 milhões destinados ao conjunto de projetos do “renascimento” não bancariam nem um musical como “O Fantasma da Ópera” e correspondem a 30% da verba que o governo do Estado de São Paulo destinou a editais em 2019.
Se existirá, como desejava Alvim, algo de “heroico” nas manifestações culturais brasileiras é que elas continuarão a existir e resistir. Porque a cultura é ativa e não passiva, como também ensinou Williams. E não há de ser um edital que arrancará os artistas da contemporaneidade.
Ana Paula Sousa, jornalista, é doutora em Sociologia pela Unicamp