As ondas destrutivas anticiência do governo Doria
O PL 529 foi enviado em regime de urgência à Assembleia Legislativa de SP pelo governo Doria em 13 de agosto; Executivo defende que proposta é pacote de ajuste fiscal para conter rombo de R$10,4 bilhões nas contas do estado. Governo do Estado de São Paulo
No Brasil, sem sair da primeira onda, instalou-se a segunda onda da pandemia. Os cientistas do estado de São Paulo, durante este flagelo, assistem a um paradoxo. Seu trabalho sobre Covid-19 é valorizado pelas revistas científicas internacionais e pelo governo do estado. Ao mesmo tempo, e repetidamente, o governo tenta remover a força vital da atividade científica: o investimento em pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
A primeira onda anticientífica veio em agosto, quando o governador João Doria (PSDB-SP) propôs, em seu projeto de lei 529, reter os fundos de reserva essenciais para a operação de universidades e da Fapesp. Após ampla manifestação de diversos setores da sociedade, essa proposta, que desrespeitava a autonomia legal dessas instituições, foi removida.
A segunda onda anticientífica já se instalava, avassaladora, mostrando que não havia motivos para celebrar. O projeto de lei 627, equivocadamente baseado na emenda constitucional 93/2016, propunha reduzir em 30% os recursos da Fapesp em 2021, buscando burlar a Constituição estadual por meio de lei ordinária.
Tal redução é temerária porque a Fapesp, além de ser gerida de maneira reconhecidamente impecável, investe em milhares de contratos de projetos de pesquisa em andamento, que somente podem ser honrados com recursos futuros. Uma diminuição de recursos dessa ordem inviabiliza a concessão de novos projetos.
O corte pode comprometer a realização de pesquisas em andamento, desperdiçando dinheiro do contribuinte. O crescimento do estado, que resulta da inovação decorrente da atividade científica e da formação de pessoal altamente qualificado, será comprometido. É mundialmente comprovado que o investimento em ciência e tecnologia gera, pelo menos, quatro vezes o investido.
Após nova e intensa mobilização, em 25 de novembro, numa cerimônia pública, o governador Doria anunciou que iria manter os recursos da Fapesp em 2021. É impossível não notar que esse anúncio veio apenas cinco dias antes das eleições municipais —e chamou atenção que o então candidato a prefeito pelo PSDB, Bruno Covas, tenha feito comentário em mídia social sobre a manutenção dos recursos da Fapesp, embora esta esteja fora da alçada municipal.
A segunda onda anticientífica mal passou e já emendou na terceira. Contrariando a promessa do governador, um parecer da Comissão de Finanças, Orçamento e Planejamento da Assembleia Legislativa de São Paulo rejeita as emendas que propõem suprimir o corte dos recursos destinados à Fapesp.
Seria ingênuo pressupor que o governador não soubesse deste parecer, publicado apenas dias antes da votação final prevista. Diz-se que agora se propôs à Fapesp que o projeto de lei votado manterá os cortes propostos, mas o governo pagará integralmente por decreto, esperando que a comunidade científica confiará ingenuamente nessa promessa. É cristalino, pelas repetidas investidas contra o financiamento e a autonomia da Fapesp, que o governo do estado pretende impor uma violação constitucional pela força e cansaço, irresponsavelmente gerando um apagão científico.
Enquanto o presidente da República é um negacionista científico escancarado, o governador paulista tem, maliciosamente, se mostrado pró-ciência em suas palavras, mas anticientífico em seus atos. É impossível esquecer do seu negacionismo quanto ao aumento de casos de Covid-19 antes das eleições municipais.
Embora a reputação no desenvolvimento de vacinas do Instituto Butantan seja irretocável, não cabe a esta instituição a gestão, distribuição e organização do sistema vacinal —nem o controle da doença no Estado. A gestão da crise sanitária atual não pode ser afogada pelas ondas anticiência do governo Doria.