Após holofotes, Regina Duarte vai pisar num terreno minado
Atriz enfrentará o desafio de trabalhar com um orçamento limitadíssimo numa pasta desestruturada
Têm sido tantos e tão atabalhoados os gestos do governo Jair Bolsonaro em relação à cultura que o alvoroço da imprensa e do meio cultural em torno do nome de Regina Duarte mais do que se justifica. Mas o que poderá a atriz de fato fazer no cargo para o qual, cercada por holofotes, ela disse sim no fim da tarde desta quarta-feira?
A secretaria muito dificilmente devolverá a Regina Duarte o papel de namoradinha do Brasil que ela teve um dia na televisão. Terminada a novela do convite-noivado-casamento, ela deve passar a habitar, em Brasília, um cenário de desolação.
A Secretaria Especial de Cultura, criada por Bolsonaro para substituir o Ministério da Cultura —que existiu entre 1985 e 2018, com duas breves extinções no meio—, é hoje uma casa vazia, habitada por novos moradores pouco afeitos a olhar para problemas estruturais. O telhado está caindo, mas eles só pensam em escolher o quadro a ser colocado na parede e a cor do sofá da sala de visitas.
O pouco de tecnicidade que restava nos cargos de comando da secretaria acabou na semana passada. Na mesma manhã em que a atriz Regina Duarte chegou a Brasília para conversar com o presidente Jair Bolsonaro, o secretário-adjunto da Secretaria Especial da Cultura, João Paulo Soares Martins, que deveria recebê-la para apresentar a pasta, e a chefe de gabinete, Ângela Inácio, foram exonerados. Ambos estavam no MinC antes de sua extinção por Bolsonaro e ambos eram considerados, pelo setor cultural, quadros técnicos e qualificados.
Com os dois nomes técnicos fora de cena, que tinham informações objetivas sobre a pasta, coube aos secretários e ministros bolsonaristas a apresentação da secretaria —por meio de um PowerPoint— e a definição das diretrizes do governo para Regina. Ao conversar com a atriz, Bolsonaro colocou novamente a questão dos “valores” assim como a ideia de que quem quiser fazer “filme gay” pode, desde que não com dinheiro público.
Regina, na semana de “noivado”, também conheceu o secretariado da Cultura, todo indicado —exceção feita a André Sturm, responsável pelo Audiovisual, mas ainda não nomeado— por Geralda Gonçalves, a Geigê, cujo marido, americano, ajudou a financiar a campanha de Bolsonaro.
Espera-se, além disso, que a recém-chegada tenha sido informada de que o orçamento do Fundo Nacional de Cultura, que concentra os recursos a serem investidos de forma direta pelo governo no setor, é de R$ 27 milhões. Esse valor, suficiente para se produzir um musical como “O Fantasma da Ópera”, seria quase todo consumido pelo programa lançado por seu antecessor, Roberto Alvim.
Desde já, é possível apontar três desafios que Regina Duarte terá pela frente: encarar as questões legais das leis de incentivo fiscal, que são a principal fonte de recursos do setor, mas que não comportam os “filtros” desejados por Bolsonaro; compor o próprio secretariado e formar uma equipe apta a ajudá-la a lidar com a avassaladora burocracia da máquina pública; e trabalhar com um orçamento limitadíssimo numa pasta desestruturada.
Não bastasse tudo isso, a nova ocupante da secretaria terá de enfrentar opositores e responder a questionamentos sobre suas falas e atos. No setor cultural, há quem veja nela uma boa opção não terraplanista dentro de um governo conservador, mas há também aqueles que não toleram seu posicionamento político. O que ninguém nega é seu desconhecimento da gestão pública e das especificidades da política cultural.
Já no governo, sua indicação desagradou, por exemplo, Fábio Wajngarten. O secretário de Comunicação teme que Regina, por ser conhecida e gozar de prestígio entre o eleitorado do presidente, ganhe espaço demais e afaste da cultura os delirantes que dela se apossaram. Além do próprio presidente, a atriz conta com o apadrinhamento do general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo.
Na secretaria real onde dará expediente a partir do primeiro dia de trabalho, a cultura não é apenas uma visão de mundo. É um setor imenso, que inclui desde uma instituição histórica como o Museu Nacional de Belas Artes até milhares de prestações de contas da Lei Rouanet —como a dela própria, cujo recurso ainda está sob análise— que, enquanto se fazem fotos e lives, vão ali se empilhando.
Ana Paula Sousa, jornalista, é doutora em Sociologia pela Unicamp