A fixação com o asseio é um degrau preocupante na atual distopia pátria
As hostes messiânicas passaram a cultivar e promover o asco dos que não compartilham das suas convicções
Em “Parasita”, filme do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, os membros de uma família miserável, moradores de um buraco podre da cidade, se empregam como domésticos na suntuosa residência de uma família abastada.
Na primeira vez em que a madame é conduzida pelo novo motorista, o pai do núcleo de necessitados, ela sente incômodo com o odor do serviçal. Discreta, a patroa abre a janela para arejar o veículo, enquanto o homem amarga a humilhação. No fim da película, o nojo involuntário dos ricos pelo cheiro dos pobres é o gatilho que detona a tragédia intransponível da desigualdade social.
Dia 1º de maio em Brasília. Mantendo o distanciamento necessário para evitar a contaminação pela Covid-19, enfermeiros e técnicos da área de saúde organizaram uma manifestação na praça dos Três Poderes, em favor do isolamento social e por melhores condições de trabalho.
O protesto dos profissionais que arriscam a vida na pandemia correu de maneira pacífica, até que um grupo de apoiadores do presidente, munidos de bandeiras e desprovidos de máscaras, se aproximou dos manifestantes para agredi-los verbal e fisicamente. Uma enfermeira sacou o celular e filmou, entre outras cenas chocantes, a investida de uma possessa.
“Eu sinto cheiro da sua pessoa”, diz a doida olhando a câmera, “que não toma banho direito, esse cheiro que não passa um perfume, a gente entende quem você é”. Mais tarde, a agressora justificaria a fala, afirmando que o fedor que sentira em um dos presentes era a prova de que havia moradores de rua infiltrados no protesto para fazer quórum.
Na sua lógica deformada, a repulsa olfativa a um suposto sem teto seria reação justificável.
Nessa semana, mais uma vez, os adoradores do mito exibiram a sua obsessão por limpeza, registrando o lixo deixado pelos jornalistas no Palácio do Planalto, para denunciar a imundícia da categoria.
A abjeta preocupação com o asseio é um degrau preocupante na atual distopia pátria. Não satisfeitas em difamar, xingar e ofender, as hostes messiânicas passaram a cultivar e promover o asco dos que não compartilham das suas convicções. Trata-se de uma prática largamente utilizada pelo nazi fascismo alemão para destituir e desumanizar o povo judeu. Deu no que deu.
A nova fixação me faz suspeitar que a encenação nazista, que custou a cadeira do último secretário da Cultura, não foi um delírio solitário de Roberto Alvim.
A escolha de Regina Duarte para assumir o lugar do Goebbels de botequim surgiu como um aceno de paz ao setor cultural, mas terminou em cizânia, depois da desastrosa entrevista à CNN concedida pela recém-empossada secretária.
Acuada pela virulência da ala ideológica do governo, Regina pretendia apresentar uma agenda positiva no canal de notícias. Imbuída de um otimismo movido a alienação, ela leu as anotações do seu dever de casa sem se preocupar em decorar o texto, e emendou um catastrófico improviso sobre a inevitabilidade da morte, da tortura e da truculência de Estado, afirmando-se leve, viva e saudosa da época do “Pra Frente Brasil”, quando se eternizou namoradinha do país.
A partida de Rubem Fonseca, Aldir Blanc, Moraes Moreira, Jesus Chediak, Daisy Lúcidi, Sérgio Sant’Anna e Abraham Palatnik não mereceram nenhuma menção pública de sua parte. Regina não quis sujar a pasta que comanda com a morbidez de um obituário. Para ela, a cultura deve ser tão perfumada quanto o pum de talco PomPom do palhaço do picadeiro.
Esse ufanismo asséptico assusta por revelar uma violência travestida de pureza e positividade. Os pais de família que educaram a juventude hitlerista também pregavam a beleza, a higiene e a grandeza da nação a custa do genocídio alheio.
Eu não assinei o abaixo-assinado em repúdio a Regina Duarte porque não considero o equívoco de sua gestão digno de um manifesto da classe. O setor é nada, é coisa nenhuma para um governo que dedicou ao setor uma secretaria fantasma num canto esquecido do Ministério do Turismo. Regina é um instrumento útil de um plano de terra arrasada e lamento a sua cegueira.
O que me assombra é o encantamento confesso do general Villas Bôas com as declarações da secretária. Prefiro pensar que ele escolheu ser gentil, do que concluir que um representante das Forças Armadas da sua dimensão acredite que basta ensaboar os desvalidos com Lux Luxo, passar um Lysoform nos mortos e seguir adiante, ao lado dos que se autoproclamam asseados cidadãos de bem.