Camila Yunes Guarita entrevista o curador da 36ª Bienal de São Paulo
O curador ao centro, com a equipe conceitual da 36ª Bienal de São Paulo: da esq. para a dir., Thiago de Paula Souza, Alya Sebti, Keyna Eleison e Anna Rober ta Goetz. Foto: Romulo Fialdini. Reprodução: Numéro Brasil
Por Camila Yunes
Fonte: https://www.kuraarte.com.br/page/editorial/camila_bonaventure/?n=1
Na última quinta-feira (24), a 36ª Bienal de São Paulo revelou ao público o título e o conceito de sua nova edição: ‘Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática’. Sob a curadoria geral do Prof. Dr. Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, a mostra, inspirada em um poema de Conceição Evaristo, propõe uma abordagem inclusiva e profundamente sensível às múltiplas crises contemporâneas. Em uma conversa exclusiva para a revista Numéro Brasil, Camila Yunes Guarita, art advisor e fundadora da KURA, entrevistou Ndikung, que compartilhou suas perspectivas sobre o papel transformador da arte. A edição nº 5 da Numéro Brasil, com a entrevista na íntegra, já está disponível nas bancas.
1. Você tem doutorado em Biotecnologia Médica pela Heinrich-Heine-Universität Düsseldorf/TU Berlin e pós-doutorado em Biofísica pela Université de Montpellier, na França. O que o levou à arte?
“Venho de um lugar onde a arte é onipresente, então não consigo me lembrar do meu primeiro contato com ela, pois provavelmente foi muito inconsciente. Essa é uma pergunta muito interessante porque sempre me questionam sobre isso, mas acredito que a arte entrou na minha vida talvez pela música, pelo visual ou pela forma como as pessoas se vestem em Camarões. Também penso que é possível ter interesses múltiplos. Eu estava interessado na ciência, que parecia algo necessário para ganhar dinheiro, mas também na arte, pois através dela se pode ver muita coisa. É como James Baldwin escreveu em seus textos sobre o processo criativo: o papel do artista é fazer perguntas para as respostas que já existem. Não tenho certeza se todo mundo pode fazer isso, mas os artistas definitivamente podem.”
2.O amor é um sentimento que nem sempre está associado a exposições, a menos que as próprias obras o tragam como eixo temático. De que forma o amor permeia a organização desta Bienal?
“Acredito que o amor está em tudo o que faço, em toda a minha prática como curador. Na Haus der Kulturen der Welt, onde trabalho atualmente, tudo o que tentamos realizar é fundamentado no amor. Sem dúvida, esse sentimento desempenhará um papel muito importante na próxima Bienal de São Paulo.
É interessante refletir sobre isso, pois recentemente li um texto da escritora indiana Arundhati Roy, que começava assim: ‘Amar. Ser amado. Nunca esquecer sua própria insignificância. Nunca se acostumar com a violência indescritível e a disparidade vulgar da vida ao seu redor’. Para mim, isso é absolutamente lindo. Assim, posso afirmar que amor e alegria são dois sentimentos essenciais, que estão no cerne da minha prática. Se não for baseado no amor, não vale a pena. Eu, pelo menos, não quero me envolver em algo que não seja fundamentado nesse sentimento, pois a vida é muito curta para isso. O amor é um dos atos mais radicais. Odiar é fácil; amar, não.”
3. Você mencionou que a Bienal de São Paulo poderia ser um sismógrafo, não apenas para registrar os diferentes abalos que o mundo está vivenciando, mas para oferecer possibilidades de moldar um futuro humanitário para todos nós. Como você avalia o potencial transformador da arte hoje?
“Muitas das coisas que estão acontecendo no mundo atualmente, e que não são positivas, também acontecem por falta de amor. Perdemos o amor pelo outro e pela humanidade. A Bienal é um sismógrafo, sobretudo pela ênfase que coloca na pedagogia. E o fato de ser gratuita é algo raro, pois poucas bienais no mundo têm essa característica. Conheci inúmeras pessoas no Brasil que me disseram que seu primeiro contato com a arte foi na Bienal de São Paulo. Estar diante da arte, com a possibilidade de estar ali sozinho, mas principalmente coletivamente, em um espaço que nos obriga a refletir sobre a condição do mundo, tem um impacto muito forte. Isso representa uma oportunidade de mudança do mundo a partir do que vivenciamos na Bienal. Então, eu me sinto muito esperançoso. E além disso, não tenho o privilégio de me desesperar. Claro que você pode se desesperar, mas isso é uma escolha.”
4. Você já esteve envolvido em projetos no Brasil e fez extensas pesquisas sobre a obra de Abdias Nascimento. Que impacto o trabalho dele tem sobre você?
“Ele tem um grande impacto sobre mim e sobre muitas pessoas, especialmente na comunidade afro-brasileira, mas não só. Sua obra impacta pessoas ao redor do mundo. Fiz uma exposição sobre ele na Holanda intitulada Being an Event of Love (Sendo um Evento de Amor), o que é importante porque tem muito a ver com nossa conversa. Tirei esse título de um ensaio de Abdias Nascimento, em que ele começa dizendo que, sendo um ato de amor, a arte é isso, aquilo e aquilo. Veja o poder dessa ideia: a arte como um evento de amor. Tive o privilégio de ter acesso aos seus escritos, pinturas, filosofia, e sua relação com a espiritualidade e a política.”
5. Se fosse necessário definir a arte, como você mencionou acima, qual seria sua definição?
“Acredito que não estou interessado em definir a arte, pois não acho que ela precise de uma definição. Para mim, o que importa é o que a arte faz, e não o que ela é. Estou mais interessado na sua performance, no impacto que ela tem sobre mim e sobre o mundo, do que em tentar enquadrá-la em uma definição.”