Proposta de coletivo de curadores da Bienal é incompreensível e esquece arte
Membros da documenta retirando a obra 'People's Justice', acusada de antissemitismo, em Kassel (Alemanha) - Uwe Zucchi - 16.jul.22/AFP
Proposta curatorial do coletivo a cargo da 35ª edição da Bienal de São Paulo, como a de exposições internacionais de tendência semelhante, exclui a palavra arte, sobrepõe a política à estética, troca a obra artística por processos sem resultado e mais parece uma reunião de ONG, avalia curadora .
O projeto curatorial do "coletivo de curadores" da 35ª edição da Bienal de São Paulo chegou por email. Deixei-o dormindo quatro dias para ver se acordava melhor. Acordou pior. Obrigar a ler e reler 85 linhas, com o esforço de perscrutar o insondável para explicar o inexplicável é, convenhamos, bastante inelegante e arrogante da parte de quem "inescreveu".
Ao tentar analisar em um artigo em meu blog, em 3/9, os "principais conceitos e movimentos da próxima Bienal de São Paulo, que acontece no segundo semestre de 2023", comecei pedindo aos leitores para que não confundissem "coletivo de curadores" com "veículo para transporte coletivo de curadores". Elucidei que, como a moda é "coletivo de artistas", curadores têm que correr atrás. Só isso.
Alguns acharam que foi preconceito. Como qualificar, então, o fato de que, neste ano, a documenta 15 (com "d" minúsculo mesmo) —exposição que se dava a cada quatro anos (e agora a cada cinco), em Kassel, na Alemanha, desde 1955—, praticamente só apresentou "coletivos" porque rejeita artistas-estrelas e o mercado? De que estes coletivos deram lugar apenas aos diálogos Sul-Sul porque não querem conversa com outras direções? De que um dos coletivos, entre dezenas de outros identitaristas, provocou a demissão da diretora por causa de uma obra antissemita? Preconceituosa, eu?
Também, como qualificar uma exposição em que o social e a política se superpõem à arte, a ética se sobrepõe à estética, mais parecendo, segundo opiniões, "um encontro de ONG"?
Mostra onde combate-se o colonialismo, o eurocentrismo, a instituição, os recursos financeiros, o material especializado, e apologiza-se as condições precárias, a equanimidade —tudo isso estando exatamente no centro da Europa, usando a estrutura, a infraestrutura, os privilégios, recursos milionários, o material e as ferramentas da própria instituição alemã.
Nada contra minorias em luta, intenções contestatárias e revolucionárias. Já foi assim na célebre documenta 5, em 1972, aquela de Beuys et Kienholz, e na maioria das que vieram depois.
Em Kassel, a crítica do sistema é uma tradição. No entanto, pode uma bienal condensar um planeta em luta, como é "tendência" dos novos curadores? Mobilizações e experiências, externas à arte, não provaram na história que foram sempre catastróficas para o processo estético, ou é preciso lembrar a Rússia soviética?
O imenso orçamento global veio de instituições públicas alemãs, em parte de mecenas, sendo que os principais são grupos financeiros e a Volkswagen. O coletivo indonésio de curadores desta edição da documenta, chamado ruangrupa, único expert da cena asiática, tão ferventemente anticapitalista e ecológico, não reclamou. Acomodou-se com facilidade à contingência.
E isso para praticar todo tipo de resistência social e política, dançando, andando de skate, imprimindo panfletos e militando, "segundo o princípio do lumbung, o espaço comunitário das recoltas".
Nas fotos do nosso tão querido e emblemático Fridericianum, vê-se que o museu em Kassel ficou repleto de esboços, flechas, bolhas, diatribes, batatas e dinâmicas exaltadas que revelam as entranhas dessas cooperativas tipo colcozes, quero dizer, desses "coletivos" de todos os gêneros.
Um crítico francês escreveu que "o efeito avalanche de coletivos convidando outros coletivos que, por sua vez, convidavam outros coletivos às vezes dava certo, mas geralmente ficava caótico". Disse que, "em vez de processo, teria preferido ver o resultado".
A cereja do bolo foi a palestra recheada de dogmas, ideologias e clichês do ruangrupa que, durante quatro horas, atacou as documentas anteriores. Sobretudo Marina Abramovic, "a colonialista que contribuiu com a destruição da Amazônia levando pedras semipreciosas à documenta 9, do ‘curador-estrela-individual-fascista’ Jan Hoet, que teve a infelicidade de não estar ‘coletivo’, em 1992".
Foi no Pará que a artista buscou as pedras. Eu mesma, enquanto curadora que a tinha convidado à 18ª Bienal, com Ulay, e depois amiga, lhe ofereci o que ela precisou para, corajosamente, enfrentar Serra Pelada.
Muito pior que preconceito, fundamentalismo artístico liberticida é, sem exagero, o primeiro passo para o terrorismo. Uma ameaça à democracia.
Tanto quanto os críticos da "tendência" e "artsy", o coletivo indonésio parece pensar que, até hoje, nenhum artista branco ou "não branco" teve voz dentro da "verticalidade" da documenta, que, aliás, sempre foi o contrário desse suprassumo atual do neo-obscurantismo e ultrarreacionarismo que acredita ser "progressista" e parte, como o calvinismo, da consciência da existência de injustiças sociais e raciais, querendo agir "radicalmente" para eliminá-las.
No caso brasileiro, contei 34 logotipos de patrocínio master, patrocínio, apoio, parceria cultural, parceria institucional e realização. Espero que, no ano que vem, não seja necessário oferecer as nossas condolências aos benévolos, assim como muitos já fizeram com os magnânimos de Kassel que pagaram 42 milhões de euros para o público apreciar 15 obras importantes e gastar pernas e sapatos para visitar, por mais vibrante ou interessante que pudesse ter sido, uma constelação infinita de "processos" espalhados por quilômetros.
Depois, no artigo em meu blog, tive que esclarecer o título da 35ª Bienal, edição que, talvez por espírito de imitação, periclita: "Coreografias do impossível".
Leitores são inteligentes. Sabem que coreografia é a arte de inventar passos e movimentos para compor uma dança e que, por maior que seja a licença poética, o que não pode ser, existir ou acontecer, simplesmente não é. Nem curadoria surrealista é capaz de fazer nascer um cavalo de uma galinha.
No entanto, o "coletivo" explica que "se trata de um convite às imaginações radicais a respeito do desconhecido, ou mesmo do que se figura no marco das im/possibilidades". Não entendi, e duvido que alguém tenha entendido.
Mais adiante, afirma-se: "Nossa prática tem como princípio a tentativa de romper hierarquias, procedimentos éticos e normativos que encenam estruturas verticais de poder, valor e violência dos dispositivos institucionais —as quais, ‘todas’ sabemos, o mundo já não sustenta".
Eu me pergunto o que "todas" (mulheres e homens inclusive) estão fazendo em uma instituição bienal de artes plásticas onde, como na organização das nações, a "horizontalidade" só pode acontecer quando há democracia, representatividade, hierarquia e verticalidade.
Horizontalidade que tem como objetivo a horizontalidade só pode gerar o caos. O que o mundo (e o público) não sustenta, ao contrário, é a desordem. Que não se confunda liberdade com pandemônio. Arte precisa de muito conhecimento, estruturação, planejamento e didática.
De "todas" em diante, o texto passa a ignorar o gramatical masculino: "[...] diálogos que vimos realizando com outras pensadoras, artistas, pesquisadoras, ativistas, curadoras e poetas". Uma das moças, universitária feminista radical, talvez anticolonialista e woke, ao ser entrevistada para o Instagram da Bienal, comete um lapso, declarando "somos um grupo muito interessadas e comprometidas [...]".
Pode ser que ela tenha engolido palavras, mas não deixa de ser uma falha. Lacan explica. Só não se entende por que ainda não mudaram a designação "coletivo de curadores" para "coletiva".
E conclui em estilo poético-hermético: "É este movimento espiralar que propomos, o desenvolvimento do caráter performativo e processual dos processos curatoriais e artísticos. Digamos que esta é uma Bienal sobre a criação do possível, num mundo governado de impossibilidades".
Bingo! Descobri. Vai ser uma nova documenta 15: ajuntamento infinito de "processos sem resultado", espalhados por quilômetros dentro e fora do Ibirapuera.
Por fim, procurei, mas não achei. A palavra "arte" não aparece nunca, em nenhum momento, nesse texto absconso que não diz absolutamente nada. Desisti do artigo, mas não desisti de amar a Bienal!