Joan Jonas, Vento [Wind], 1968. Still de filme, 16mm. Cortesia da artista
Ao longo do processo de construção da 34ª Bienal de São Paulo, sua equipe curatorial, artistas participantes e autores, através de cartas como esta, refletem direta e indiretamente sobre o desenvolvimento da exposição. Esta décima segunda correspondência foi escrita pelo curador geral da edição, Jacopo Crivelli Visconti.
Daqui a alguns dias, o prédio da Bienal voltará a receber pessoas e obras de arte. Sons e imagens ocuparão o Pavilhão Ciccillo Matarazzo num diálogo espaçado e ritmado, feito também, ou principalmente, de vazios e de silêncios. Édouard Glissant escreveu alguma vez que “não há começo absoluto. Os começos fluem de todo lado, como rios em errância”.¹ Essas palavras se adaptam perfeitamente a uma mostra como Vento, que funciona como um ponto de inflexão na trajetória da 34ª Bienal, ao sinalizar um necessário ajuste de rumo, não uma interrupção do movimento, um fim ou um começo. Glissant também falava de eco-mundos: mundos feitos de ecos que, como quase tudo em sua poética, estão em constante transformação, até não sabermos mais onde cada palavra se originou, num processo incessante de crioulização e fertilização. O vento carrega o eco, que é ao mesmo tempo a lembrança do que foi dito e sua reverberação futuro adentro. Vento, analogamente, funciona como o índice desta edição da Bienal, no sentido de que aponta alguns dos temas que voltarão expandidos na exposição de setembro do ano que vem, e ao mesmo tempo se refere ao que já aconteceu, assim como o índice constitui, em semiótica, o rastro.
A distância entre as obras, muitas delas feitas apenas de som, é a característica mais marcante desta etapa da exposição, e representa um convite a prestar atenção em coisas que não conseguimos ver ou segurar nas mãos, mas que influenciam profundamente nossas vidas, hoje mais do que nunca. Trata-se, de certa forma, de um gesto experimental, da concretização do desejo de se tornar tangível o que por sua própria natureza não o é: o espaço entre as coisas, o vazio que, como um molde em constante transformação, reflete e espelha a forma do mundo. Cabe imaginar que o vento também é moldado pelo que encontra em seu caminho, e é com esse espírito de abertura e permeabilidade ao que nos rodeia, mas também com o desejo de influenciar de volta o mundo, que a mostra foi pensada e construída. Em conversa recente com Carmela Gross, falando sobre o título da 34ª Bienal – Faz escuro mas eu canto – ela disse algo que ficou comigo: “o faz escuro é uma coisa que é dada, mas o cantar é do nosso controle. O eu canto simboliza um esforço que passa pela nossa ação”. Alguns dias antes, em outra conversa, Neo Muyanga havia perguntado, sem realmente esperar que alguém tivesse uma resposta, qual seria a “nova imagem da solidariedade”. Estamos acostumados a associar a ideia de solidariedade à de uma reunião de pessoas, possivelmente em movimento, os corpos próximos uns dos outros, tão perto que se tornam, física e conceitualmente, um só. Hoje, porém, é preciso manter distância, e não por razões políticas, mas humanas: por solidariedade. Nesse contexto, a pergunta do Neo é pertinente e instigante. E a resposta, talvez, passe mesmo pelo canto.
Faz quase sempre escuro quando os Tikmũ’ũn começam a cantar. Seus cantos, alguns dos quais imantam a exposição, convocam os espíritos de cada coisa que compõe o mundo, fundem o que vemos e o que não podemos ver. Os Tikmũ’ũn, ou Maxakali, são um povo indígena originário de uma região compreendida entre os atuais estados de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo. Após inúmeros episódios de violências e abusos, recorrentes desde a época colonial, os Tikmũ’ũn chegaram a beirar a extinção nos anos 1940 e, forçados a abandonar suas terras ancestrais para sobreviver, estão hoje divididos em aldeias distribuídas no Vale do Mucuri. Os cantos organizam a vida nas aldeias, envolvendo sua rica cosmologia e constituindo quase um índice de todos os elementos que estão presentes em suas vidas, como plantas, animais, lugares e objetos. Grande parte desses cantos é executada coletivamente, e muitas vezes eles são destinados à cura. O ato de cantar se torna, entre os Tikmũ’ũn, parte integral da vida, porque é através do canto que se preservam as memórias e se constitui a comunidade. Cada membro da comunidade é depositário de uma parte dos cantos, que por sua vez é de propriedade de um espírito (Yãmĩy) que é convocado e alimentado durante o canto ritual. Todos os cantos, juntos, compõem o universo tikmũ’ũn, que é constituído por tudo que esse povo vê, sente e com o que interage, mas também pela memória de plantas e animais que não existem mais, ou que ficaram nos lugares de onde os Tikmũ’ũn tiveram que fugir para sobreviver. Como comunidade, vivem na língua que ainda praticam e defendem vigorosamente. Cantando.
É difícil imaginar uma metáfora mais poética, coerente e convincente para a solidariedade nos tempos atuais: uma comunidade em perigo, na qual cada um depende do conhecimento e da memória dos outros para seguir adiante, para que o mundo de todos continue existindo. O esforço comunitário é constantemente renovado para nomear e construir coletivamente um universo: cada conjunto de cantos é indispensável para que a totalidade seja sempre reavivada e reafirmada. Nenhum dos entes desse abundante cosmos pode ficar para trás, a não ser ao custo de perder algo insubstituível – num mundo doente, no qual a necropolítica impera e consolida a indiferença e o descaso como instrumentos de governo, essa lição ressoa de maneira ainda mais potente. Ela nos lembra que cada membro de uma sociedade está entrelaçado com o outro, e todas as coisas que cada um de nós sabe e diz são igualmente importantes para os objetivos comuns que estabelecemos para nós mesmos. E, acima de tudo, mesmo nos tempos dramáticos, desafiadores e ameaçadores que os Tikmũ’ũn e tantos outros grupos têm atravessado e seguem atravessando, nos lembra da importância de não perder a vontade de cantar. Isto é, de não perder a coragem simples de reconhecer e cantar, mesmo em tempos dramáticos, desafiadores e ameaçadores, a beleza do mundo, do animal pequenino ao grande, da grama rasteira à árvore frondosa, do rio mais poderoso à névoa quase imaterial, do sol à lua e às estrelas e de volta à terra em que afundamos os pés, e ao vento.
¹ Édouard Glissant, O pensamento do tremor [La Cohée du Lamentin]. Trad. Enilce Albergaria Rocha; Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard / Editora UFJF, 2014, p. 44.