34ª Bienal: correspondência #1
Li num livro sobre a história da pintura de paisagem que Petrarca foi o primeiro homem moderno, por ter sido pioneiro em escalar uma montanha pelo prazer da subida ou para ver o mundo de cima e afastar o horizonte. Ou para saber como se via o mundo sem ele, separado dele, como um espaço em que esse homem não se insere, do qual não participa. Parece mesmo haver uma certa coincidência entre a invenção da era moderna e esse ponto de vista elevado ou à distância, objetivo, como se prefere chamar; porque tudo que não é o homem moderno passa, então, a ser objeto. Da torre da catedral, que se estica buscando o céu, à torre do castelo, onde o rei sobe para dizer ao primogênito: “Um dia, meu filho, tudo isto será seu, até onde a vista alcança”.
É o homem moderno que desenvolve a perspectiva na pintura, constrói miradouros e inventa o balão de ar quente. Belvederes, como se belo fosse ver o mundo de longe, as coisas menores do que são quando estamos com elas. Como se belo fosse ver que tudo se apequena diante desse sujeito, e que, assim diminuto, se apresenta para ele como amostra. É essa posição de sujeito que autoriza o homem a escrever enciclopédias e a fundar museus.
Curioso que os povos das selvas nunca tenham querido construir mirantes (e, portanto, nem museus). Ou não. A selva não se vê, de cima, mais que como um mar de verde. O mar aqui entendido como quem o vê do barco, claro; como uma massa contínua, quase sólida, que de perto não é. A selva é o oposto da vista panorâmica, do olhar em perspectiva. Na selva tudo se vê de perto e tudo é trama. As copas das árvores se fundem, as folhas de uma escondendo as de outra escondendo as de uma. E o que está sob os pés repete o que está no alto, as folhas que caem cobrindo outras folhas cobrindo outras folhas cobrindo outras folhas. Troncos e ramos e galhos e cipós e cobras e folhagens. Por todos os lados. Não há lugar de onde olhar a salvo como se vê a selva sem nós. Não há panorama possível, não há belvedere. A selva não se apequena nem se apresenta. Nem se traça o caminho a seguir. A trilha se faz abrindo o mato a facão, na medida do alcance do corpo, na força do braço, de um passo a outro passo.
Pero Vaz de Caminha escreveu que a culpa foi só das ondas; que o mar estava mexido e o som que não dava trégua não deixou que se entendessem os que desceram do barco e os habitantes da terra. A manhã fosse de calmaria e a história seria outra. Oswald de Andrade escreveu que o contratempo foi a chuva, que o clima de tempestade convenceu quem estava nu a passar a andar vestido. Fosse um dia de sol e a história seria outra. Talvez a falha tenha sido o encontro ocorrer na praia. O tempo que se passou entre o grito de terra à vista e o desembarque na areia. O tempo que se passou entre as velas pontuando o horizonte e o desembarque na areia. Talvez o problema tenha sido a altura da gávea e o mesmo olhar à distância, as conclusões que se foram tecendo enquanto se via o mar de cima e a terra firme adiante, e a pequenez dos vultos recortados sobre a areia que aumentados na luneta pareciam caber na mão.
Tivesse sido um encontro na selva era uns respirando no cangote e outros pisando nos calcanhares, todos diante dos narizes de todos diante dos narizes. Troncos e ramos e galhos e cipós e corpos e folhagens. Todos por todos os lados. E um só vê o outro aos poucos, meio encoberto, meio escondido e só quando já é muito tarde e já está muito perto, quando o ar que se respira é o mesmo e se sente mais quente ao sair dos pulmões. Tivesse sido um encontro na selva e a história seria outra.