Bienal de São Paulo 32ª Bienal de São Paulo: modos de estar junto com a arte Edição do evento
Paulo Miyada, Especial para O Estado de S.Paulo 04 Outubro 2016 | 10h51
Pouca gente começa um livro, prepara-se para um show ou chega ao pavilhão da Bienal de São Paulo prioritariamente preocupado em distinguir se o que se vai encontrar é arte boa ou ruim. Ainda bem. Arte boa é arte, arte ruim também, assim como emoção ruim é emoção. Acredito que, em primeira e última instância, o que faz da arte importante em seu tempo e além dele é tudo aquilo – de emoções a conceitos – que acessamos de forma específica e intensa quando estamos juntos dela. Interessados e interesseiros, prezamos as experiências estéticas que servem como dobradiça para algo que não alcançaríamos por outros meios.
O discurso curatorial da 32.ª Bienal, capitaneado por Jochen Volz, enfatiza o interesse por saberes que transbordam o campo específico da arte, tendo a ecologia como fundamento. A mostra parece propor que, estando juntos da arte, podemos estar mais próximos de cosmogonias, saberes e discursos minoritários em um mundo regido pelo progresso, saturado por estatísticas financeiras e pelo ódio à diferença. Em seus momentos de singelo encanto, apresenta obras que exercitam a convergência de saberes ancestrais, mensagens do passado ou indefinições epistemológicas.
Nesse sentido, destacam-se as obras de Mariana Castillo Deball, Ana Mazzei, Iza Tarasewicz, Wlademir Dias-Pino, Anawaha Haloba e Sonia Andrade. Esta última comparece com uma sala tomada de “hydragrammas”, inusitadas montagens de objetos cotidianos que, articulados, assemelham-se a símbolos sem tradução conhecida; em um espaço reservado, reproduções fotográficas são acompanhadas de palavras que, ao invés de decifrá-las, ampliam os enigmas, que podem ser adotados como efígies de ideias inomináveis. Já Castillo Deball apresenta uma instalação que parodia poeticamente as tentativas das ciências naturais de catalogar o passado e o presente, substituindo a assertividade dos registros técnicos pelos rastros delicados de frotagens em papel de arroz.
Mas nem só de abordagens leves e abertas se faz a relação da arte com as ideias que a extravasam. Muitas obras almejam estar junto a conceitos muito específicos e, vez e outra, a imersão de artistas que exercitam processos de cientistas e ativistas pode se provar demasiado breve, redundando em obras que pouco acrescentam a seus objetos de estudo, como a horta de plantas comestíveis “daninhas” de Carla Filipe, apenas um pouco mais elegante que seu possível equivalente pedagógico. Noutros casos, há obras-processos cujos principais efeitos práticos e poéticos se darão em uma temporalidade muito mais estendida do que a duração da mostra, como a tradução para o libanês da novela Um Copo de Cólera, promovida pelo artista Rayyane Tabet.
Há um caso que, apesar de discreto, pode constituir a mais ambiciosa das obras dessa Bienal. Trata-se da reinvenção do restaurante como a obra Restauro, de Jorge Menna Barreto. Ao invés de simplesmente ilustrar ou referendar uma pesquisa, o artista mobiliza uma impressionante quantidade de profissionais, colaboradores e agentes para oferecer um dos espaços mais verdadeiramente convidativos que já encontrei em uma exposição de arte, fornecendo alimentos que exercitam soluções específicas e desenhadas coletivamente, abrangendo desde o plantio dos ingredientes até o sabor dos pratos, passando pelas relações de trabalho implicadas. Não é forma “sobre” algo, é “junto com”: junto com as agroflorestas e o que elas atualizam de ideias dadas como ultrapassadas e antecipam de práticas vitais para que exista futuro.
Desde que deixou de receber representações nacionais preparadas pelos países convidados, em 2006, a Bienal lida com uma condição desafiadora: o pavilhão converteu-se em uma imensa exposição sob responsabilidade de uma só equipe, como se fosse uma enorme mostra curada. O problema é que abordagens curatoriais que funcionariam muito bem em outras escalas perdem suas virtudes quando tão dilatadas. Coesão vira monotonia e abundância redunda em ruído. Pode ser salutar então esperar das Bienais que sejam menos uma gigantesca amarração curatorial e mais uma plataforma permeável de embates junto ao que possa ser a arte hoje.
Essa edição assume alguns riscos que colaboram para tanto. Com o menor número de artistas na história do evento, a curadoria apostou em ter mais diálogo e espaço para a elaboração da significativa proporção de obras comissionadas e, assim, propiciar aos visitantes uma experiência em tudo diferente da que se tem nas feiras de arte. Além disso, manteve uma abordagem elástica do mote discursivo da Incerteza Viva, a ponto de abranger poéticas contrastantes, deixando espaço para as deambulações do olhar e da reflexão.
Ainda que existam pontos menos convincentes, herméticos apesar de supostamente dialógicos, como a Oficina de Imaginação Política, há espaço para obras que fogem do ambiente “pés descalços no chão” que predomina no pavilhão. É nelas que comparecem isopores, chapas de compensado, pixels, samples musicais, efeitos digitais e recursos típicos do mundo artificial e espetacular em que vivemos. Às vezes, isso transparece como ruído ou descaso, noutras, porém, mora a capacidade da arte em ir além do que se explicita nos discursos que a cercam. As obras de Rachel Rose (no piso térreo), Hito Steyerl, Luiz Roque e Bárbara Wagner, por exemplo, são feitas com a própria substância do espetáculo contínuo que nos anestesia e, não obstante, são fortes convites para abrirmos bem os olhos para as miragens e falsos consensos que abundam em nosso tempo.