Carta aberta à Fundação Bienal de São Paulo,
Nós, os artistas abaixo assinados participantes da 31 Bienal fomos confrontados, às vésperas da abertura da exposição, com o fato de que a Fundação Bienal de São Paulo aceitou dinheiro do Estado de Israel e o logo do Consulado de Israel aparece no pavilhão da Bienal, em suas publicações e em seu website.
Numa época em em que o povo de Gaza volta para os escombros de suas casas, destruídas pelo exército israelense, não sentimos que seja aceitável receber patrocínio cultural israelense. Ao aceitar esse financiamento, o nosso trabalho artístico exibido na exposição é prejudicado e, implicitamente, usado para legitimar agressões e violação do direito internacional e dos direitos humanos em curso em Israel. Rejeitamos a tentativa de Israel de se normalizar dentro do contexto de um grande evento cultural internacional no Brasil.
Com essa declaração, nós apelamos à Fundação Bienal de São Paulo para recusar esse financiamento e agir sobre esse assunto antes da abertura da exposição.
A fundação, por fim, dissociou os artistas do financiamento israelense. O logotipo do governo de Israel, até então vinculado a toda comunicação da Bienal, está presente apenas nas comunicações relacionadas aos artistas israelenses apoiados.
Inferno
Por coincidência, a obra que possivelmente será a mais comentada na Bienal de São Paulo é um filme israelense, Inferno, da artista Yael Bartana, uma das signatárias da carta de repúdio. O enredo de Inferno é a demolição do Templo de Salomão, no Brás.
A intenção da artista é repetir a História, como se a ruína do templo fosse uma profecia. Inferno começa com três helicópteros sobrevoando São Paulo. Eles transportam, entre outros símbolos sagrados, uma Menorah gigantesca e uma réplica da arca da aliança. Pagãos seguem em procissão para um ritual celebrado por um sacerdote andrógino. Os fiéis formam um bando de sibaritas reunidos num templo muito parecido com o de Salomão, que foi destruído pelas invasões babilônicas em 584 a.C.
Um segundo templo foi erigido por Herodes em 64 d.C., também destruído pelos romanos. Dele sobrou o Muro das Lamentações. O foco da realizadora israelense, no entanto, é este terceiro templo — o último, segundo as profecias. Tudo vai pelos ares no epílogo de sua ficção sobre a Nova Jerusalém paulistana. Não sobra nada da utopia messiânica. O que se vê nos 22 minutos de Inferno é o templo consumido por chamas e escombros que dão lugar a um paredão onde as pessoas vão rezar.
A construção de um templo bíblico de arquitetura retrô numa megalópole secular seria, segundo a cineasta, "uma das estratégias da indústria da fé na luta por capital simbólico". Para fazer o filme, Bartana visitou as obras em 2013 e, no galpão de uma escola de samba, reproduziu seu interior em detalhes. Finalizou sua história com efeitos visuais feitos em computador.
Devido ao conteúdo, a obra foi alvo de denúncia ao Ministério Público por incitar o preconceito religioso. O caso, contudo, foi arquivado.
Errar de Deus
Além de Inferno, outra obra confronta religiões. Errar de Deus, criado pelo coletivo argentino Etcétera, é uma revisita à obra do herege León Ferrari (1920-2013), Palabras Ajenas (1967). Trata-se de um manifesto surrealista do movimento criado pelo grupo, o Internacional Errorista, que elege o erro como experiência fundamental.
Ferrari criou um clube de ímpios, hereges e blasfemos em 1998, que chegou a pedir a extinção do inferno ao papa João Paulo II. O Vaticano negou o pedido. No último dia 3, os integrantes do Etcétera entregaram uma nova carta à Santa Sé, pedindo o mesmo ao conterrâneo papa Francisco.
Em 2004, quando Jorge Mario Bergoglio era então cardeal de Buenos Aires, a obra foi classificada como blasfêmia. Agora, algumas das peças dessa exposição estão na Bienal. Enquanto o papa decide se acaba ou não com o inferno, ele vai continuar funcionando no pavilhão do Ibirapuera.