Sobre quando as pessoas transformam a vida dos museus.
Relato por: Andiara Ruas Simão
Dando sequência ao II Seminário Diálogos em Educação e Museu, no dia 29/10/2015, penúltimo dia do evento, a Pinacoteca recebeu como palestrante Eithne Nightigale, ex-chefe do departamento de igualdade e diversidade do Victoria and Albert Museum em Londres. Eithne é coeditora com Richard Sandell do livro “Museums, equality and social justice” – Museus, Igualdade e justiça Social, que foi editado em 2012. Ela é formada em História e Fotografia e especializou-se em estudos museográficos, atualmente prepara sua tese de doutorado sobre “Crianças, migração e diásporas” na Queen Mary University de Londres, ligada ao Victoria and Albert Museum of Childhood.
Durante a palestra, de título “Os museus podem contribuir para a igualdade e mudar a vida das pessoas?”, além de relatar sua experiência com igualdade e diversidade durante os 15 anos de atuação no Victoria and Albert Museum (V&A), Eithne também demonstra aspectos de sua pesquisa e dos estudos sobre migração de crianças, que realiza em diversos museus pelo mundo.
Entre as várias experiências vividas por Eithne, o que considero mais interessante, e que pretendo destacar neste relato, é a construção e o trabalho em projetos e ações que privilegiam a visão do espectador, não só em suas interpretações sobre o que já está posto pelo museu, sobre as peças de suas coleções e como são mostradas ao público, mas principalmente consultando-os, ouvindo os visitantes, oportunizando o protagonismo, trocando conhecimentos, incentivando-os a pensar curadorias, oferecendo capacitação, solicitando que indiquem peças para aquisição, permitindo que contem suas histórias e proporcionando que vejam a realização desses trabalhos expostos em galerias e espaços dos museus, de forma profissional.
Na primeira parte da comunicação, Eithne inicia sua apresentação falando de seu primeiro trabalho no museu V&A, que foi desenvolver programas com base nas galerias chinesas e indianas. Ela detalha a experiência da exposição temporária “A Arte dos Reinos Sikh” e nos conta que entre os 120 mil visitantes, a maioria eram de origem Sikh, da etnia Sikh indiana e paquistanesa. Onde, 60% destes nunca tinham ido ao museu V&A antes e muitos nunca tinham ido a nenhum museu na vida.
Ela nos conta que a ideia da exposição veio de membros da própria comunidade Sikh. Foram treinados 20 voluntários da comunidade para dar palestras sobre a exposição a outras pessoas da mesma etnia no país. Muitos membros da comunidade Sikh conheciam os objetos das coleções, até mais do que os próprios historiadores, eles falavam ao museu sobre as armas e sobre como mostrar textos sagrados, mas ela destaca que eles não tinham algumas habilidades, por exemplo, sobre a conservação dos objetos. Pensaram então, que se o museu oportunizasse a construção dessas habilidades, em troca eles poderiam ajudar a construir o conhecimento e o entendimento do museu sobre aquela coleção. Foi aí então, que surgiu o interesse em como esses projetos de capacitação poderiam transformar o museu.
Eithne aponta para várias questões que surgiram durante os três meses de duração da exposição, em suas palavras, “a parceria desenvolvida com as organizações Sikh era muito boa, mas como manter essa ligação? Será que a comunidade Sikh estava interessada apenas em exposições relacionadas a sua etnia? Existem elos entre essas comunidades e as coleções? E no futuro, como manter esse relacionamento com as comunidades depois de uma exposição como esta?”.
Após um breve momento de reflexão, ela diz que entre as 600 pessoas que trabalhavam no museu, apenas 20 trabalharam nessa exposição, mas a comunicadora acredita que a responsabilidade de responder essas questões deveria ser compartilhada com todos. Ela questiona, por exemplo, por qual motivo comunidades bastante significativas no Reino Unido, como é o caso da comunidade africana, não eram representadas nos públicos do museu? Com financiamento do fundo Lottery, para um projeto chamado “Construção da Capacidade e Titularidade Cultural”, foi possível testar, por meio de pesquisas e avaliações, se o museu realmente não tinha nenhuma coleção africana e, também, explorar o elo entre uma cultura viva e as coleções.
Eithne relembra que realizar as pesquisas sobre os objetos relacionados a uma possível coleção africana não foi um processo fácil, já que muitas vezes os objetos e as documentações não eram classificados como arte africana. Mas apesar desses problemas, na primeira parte do projeto, foram descobertos mais de 4.000 objetos relacionados à diáspora africana e o museu não poderia mais dizer que não havia uma coleção sobre a África. A partir dessas pesquisas, foram feitos diversos programas, muitas vezes relacionados a esses objetos encontrados. Muitos desses programas e atividades foram ilustrados com fotos e vídeos durante toda a palestra.
A segunda parte do projeto foca no “Interculturalismo e diferentes crenças”, sobre como o museu de arte reconhece o relacionamento entre obras de arte e religião. Alguns grupos religiosos disseram que “a documentação do museu estava errada ou era ofensiva”. A comunidade judaica, por exemplo, disse que o termo “muro das lamentações” não era mais aceitável. Eithne diz “alguns curadores ouviram e mudaram a documentação, mas outros não... eu vi os conservadores e restauradores abertos a discussão com o público, por exemplo, sobre o significado das peças sagradas. Eles ouvem a comunidade judaica, por exemplo, sobre como conservar a Torá, a comunidade Sikh sobre como mostrar os textos sagrados deles e eles ouvem as comunidades Jaine, indianas, sobre o fato que eles não gostam de matar animais, então eles tiveram que usar um tipo especial de cola, já que não podia ser uma cola de origem animal”.
Durante “A semana dos refugiados”, o museu treinou refugiados para fazer visitas pelo museu. Marie Lysa, uma refugiada de Ruanda, usou as coleções do museu para falar da sua experiência de fuga de Ruanda durante o genocídio que ocorreu naquele país. Eithne nota que esse programa teve impacto tanto nos refugiados, quanto nos visitantes. No museu da criança, na galeria chamada “East End”, foi colocado em exposição um cobertor onde a mãe de Marie Lysa teve seus filhos. Era um tecido que havia sido carregado por ela durante o trajeto e Lysa conta que “a minha mãe levou meus irmãos nesse cobertor, e enquanto as bombas caíam, a minha mãe segurou as crianças apertadas nesse cobertor”. Essa personalização de objetos funcionou muito bem, diz Eithne.
Estas experiências, são algumas entre as que foram relatadas por Eithne e descrevem apenas alguns dos projetos realizados no museu e, a partir dessa breve leitura, é importante considerar a integração da diversidade nas prioridades políticas dos museus. Ela nos conta também, que o museu V&A faz pesquisas com os visitantes para ver quem está indo às exposições, com relação ao gênero, etnia, classe e idade. Após estudo de uma das pesquisas realizadas pela instituição, o avaliador recomenda “a adoção de uma abordagem do museu onde a diversidade deve ser integrada às prioridades políticas e isso deve ser dito também do aprendizado, não é só uma responsabilidade do departamento de aprendizagem ou das pessoas que tem um trabalho com a diversidade e igualdade, é responsabilidade de todos”.
Diante das recomendações apontadas na avaliação, Eithne esclarece que “A gente desenvolveu uma política de inclusão e acesso a todos. Acesso queremos dizer superar todas as barreiras, físicas, intelectuais, culturais, de atitude, financeira, e inclusão a gente quis dizer empoderar as comunidades, eliminar as desvantagens e contribuir para a mudança social. E diversidade queremos dizer abraçar e refletir sobre todos os aspectos da diversidade... Como vocês podem ver da política atualizada do museu, o compromisso é de integrar a igualdade e a diversidade em tudo que o museu faz, o pessoal que trabalha, as coleções, os públicos, os programas e os eventos”.
Ainda sobre acessibilidade a comunicadora destaca que “os designers sempre têm que ser lembrados que a legibilidade é tão importante quanto o estilo e há orientações sobre os textos que são publicados. Há um editor interno no museu, que se certifica que o texto seja compreensível por todos, talvez alguém escreva algo muito acadêmico e nem todo mundo pode entender aquele texto”.
A comunicadora destaca também a importância das exposições temporárias para trazer públicos diferentes ao museu, mas que por serem um museu de arte e design deve haver um equilíbrio nas mostras. Que o marketing e a imprensa são a chave para trazer públicos diversificados e lembrou que é preciso estabelecer metas para as exposições e os programas, e que é possível alcançar essas metas quando se tem um objetivo.
Eithne conclui a primeira parte de sua apresentação com a fala “você precisa construir oportunidades de diversidade e qualidade em todas as funções do museu. É preciso estabelecer objetivos mensuráveis, você precisa construir relacionamentos e parcerias sólidas e precisa ouvir os marginalizados internamente e externamente, você precisa desenvolver uma cultura de ouvir os outros, você precisa de liderança em todos os níveis, não poderíamos ter mudado a política em termos de África, se não tivéssemos tido aquele apoio, é preciso também correr riscos, as vezes você vai fazer coisas que você não tem certeza que vão dar certo, mas você precisa tentar”.
Como disse no início deste relato, apontei aqui alguns tópicos entre os projetos apresentados na comunicação, que considero importantes para o pensamento de um museu na contemporaneidade. E concordo com a palestrante quando ela diz que um museu deve considerar as vozes do entorno, consultando as comunidades ao fazer aquisições de obras de arte, que ao organizar suas mostras e exposições o conteúdo deve ser interessante para expectador, que as atividades sejam diversificadas e promovam educação e formação, que o museu seja acessível numa visão mais ampla, que cative e promova uma constante renovação dos públicos e que as coleções sejam um reflexo da diversidade do patrimônio econômico, social e cultural das pessoas envolvidas em todo o processo, em todas as instâncias.
Na segunda parte da apresentação, Eithne retoma sua fala com uma reflexão muito interessante e pertinente ao momento histórico atual, no que diz respeito às relações internacionais e aos movimentos de imigração pelo mundo. Os museus estariam mesmo mudando as vidas das pessoas? Onde estariam as provas disso? É verdade que os museus estão mudando a vida dos refugiados, se muitos deles estão afundando no mar mediterrâneo neste momento? Será que os museus têm alguma influência em mudar as atitudes negativas das pessoas e dos governos em relação aos imigrantes e refugiados? Ela pergunta em tom angustiado.
Na sequência ela dá início a uma série de exemplos de como a imigração é representada nos museus pelo mundo, a partir de experiências vividas em algumas exposições visitadas por ela, em função de sua pesquisa sobre as migrações. São diversos relatos, narrativas de histórias, filmes, imagens de pessoas e objetos, descrições de acervos e atividades em lugares como, por exemplo, Austrália, Nova Zelândia, Gênova, Paris, Antuérpia entre outros.
Entre os exemplos trazidos pela autora, descrevo aqui, como última parte deste relato, o exemplo do “Coletivo dos pés descalços”, em Lampedusa. Eithne nos mostra imagens de alguns barcos atracados onde as pessoas coletaram objetos que haviam sido deixados pelos imigrantes. Esses objetos, expostos de maneira crua, sem interferências ou legendas, causam um impacto muito grande, já que não se sabe o que aconteceu com essas pessoas, com seus donos. São objetos que carregam consigo uma força e um poder descritivo enorme. Ao mostrar esses objetos, eles estão criando um espaço de diálogo com todas as pessoas da ilha, não apenas com seus moradores habituais, mas também, com aqueles que estão chegando.
O panorama apresentado por Eithne é bastante contemporâneo e rico em detalhes. Vale muito parar alguns minutos e assistir na íntegra o registro em vídeo desta comunicação. Considero uma excelente oportunidade!