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Participação como imaginação transformadora?

Relato crítico da palestra Museus participativos e relacionais com a comunidade e seu território por Silvia Alderoqui (Argentina). II Seminário Internacional Diálogos em Educação e Museu - Núcleo de Ação Educativa (NAE) da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Relato por: Auana Diniz

 

O último dia do II Seminário Internacional Diálogos em Educação e Museu - Núcleo de Ação Educativa (NAE) foi aberto pela coordenadora do Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca, Mila Chiovatto, que reafirmou a ideia do museu como espaço de convivência delineando o seminário e as práticas desenvolvidas na Ação Educativa da Pinacoteca, e conectando à defesa de “um museu cada vez mais engajado na sua função social”.

Em seguida a coordenadora apresentou a palestrante, Silvia Alderoqui, que é diretora do Museo de Las Escuelas, em Buenos Aires, Argentina, e desenvolve trabalhos na área de educação em museus, curadoria educativa e planejamento e design e é autora e editora de livros relacionados a este campo de conhecimento.  Alderoqui atua também nos programas de pós-graduação e mestrado sobre Educação e Museus da Universidad Nacional de Tucumán, Universidad Nacional de Buenos Aires e Universidad Nacional de Córdoba (todas na Argentina) e na Universidad de Murcia (Espanha).

A palestrante iniciou sua comunicação assinalando que os temas presentes nas palestras anteriores, como memória, narrativas e migrações poderiam se entrecruzar com as ideias e autores com quais ela trabalharia durante a fala. Também fez uma breve apresentação do Museo de Las Escuelas a partir de imagens do museu e sua coleção, definindo-o como “um museu de muitas escolas” e destacando determinados recortes do acervo como as vitrines com os objetos “proibidos” no ambiente escolar.

O Museo de Las Escuelas expõem objetos dos diversos contextos escolares argentinos em diferentes épocas e também configura salas de aula nas quais os públicos são convidados a performar épocas distintas da história da educação no país, como numa sala que se refere ao sistema lancasteriano. O método, conhecido como Sistema de Alfabetização Mutua foi um método inglês trazido para América Latina no início do século XX, com foco na alfabetização, organizava salas que reuniam de 500 a 1000 alunos conduzidos por um monitor.

Na fala sobre Museo de Las Escuelas destacou também algumas plataformas para participação direta e indireta dos públicos como um quadro negro que coleta as formas pelas quais os professores pediam silêncio para os alunos em sala de aula ou uma foto com pensamentos escritos em balões que se alteram a partir de falas e relatos dos visitantes. Abordando esses e outros processos de curadoria com os públicos do museu, pontuou a necessidade constante de contextualizar a coleção e torná-la mais contemporânea.

Após a apresentação do seu local de atuação, deu sequência a comunicação traçando um breve histórico sobre a definição dos museus, se baseando numa publicação que reuniu conferências de ICOFOM - International Committee for Museology. Seu breve histórico citou o conceito dos museus como edifícios que abrigam coleções, predominante até os anos 1970, sendo alterado em 1974 quando se adicionou a ideia “a serviço da sociedade e seu desenvolvimento”. Já nos anos 1980 os conceitos imateriais como lugar de encontro, território e comunidade começam a ser incorporados a esses discursos.

No entanto pontua que a definição corrente, publicada pelo ICOM em 2007, ainda reserva ao público o lugar de destinatário. Em contraposição a essa definição afirmou a importância da influência da comunidade nas políticas de coleção, exposição e interpretação.

“Para quem e com quem os museus?” a partir desta pergunta apresentou a seguinte vocação para os espaços museológicos: O museu para a consciência crítica, a imaginação transformadora e a comunidade participante.  Os três conceitos foram apresentados como fios condutores da comunicação.

Outro fio condutor da comunicação foi o trabalho da artista norte-americana Candy Chang com intuito de pensar sobre os lugares de participação dos públicos. A primeira referência ao trabalho da artista expôs uma intervenção na qual Chang convidou o público a escrever a partir da frase “Antes de morrer...” utilizando um muro pintado com tinta de quadro negro instalado num local de circulação pública como suporte. Ao comentar sobre este trabalho a palestrante pontua a importância dos processos de edição de conteúdo (considerando o uso de palavras ofensivas) para construção de pensamentos coletivos.

Desdobrando o problema da participação nos museus e levantando as possibilidades e situações de interação com os públicos contestou à ideia de cultura sábia ou ignorante, fazendo referência a imagem do mestre ignorante em Jacques Rancière, defendendo que todos podem ser produtores de conteúdos capazes de interessar a outros visitantes. Nesse ponto fez também referência ao pensamento de Paulo Freire e sua utilização atual nos discursos que questionam o lugar da cultura erudita. Mais uma vez remetendo-se ao Rancière a palestrante trouxe a concepção de que “o poder comum da igualdade das inteligências é o que liga os indivíduos” e, nesse sentido, especialistas e visitantes poderiam ser entendidos como comunidades interpretativas com relações de horizontalidade.

Considerando esses conteúdos provenientes das ações que convocam os públicos a expressar seus desejos, pensamentos, posicionamentos chamou a atenção para o caráter político da participação nos museus, que traz desafios culturais e éticos para além do pensamento técnico.

“O que é a comunidade no museu?” com esta indagação passou a definição aberta de comunidade, enumerando diversos significados, a partir da etimologia da palavra comune, do latim. Em sua reflexão sobre a etimologia da palavra Alderoqui destaca algumas palavras que podem se relacionar ao contexto dos museus como conjuntamente, em comum, coresponsável, cooperante, serviçal, tarefas públicas, entre outros. Rejeitando o simples uso corrente da palavra comunidade, utilizada para nomear minorias sociais. Segundo essa definição comunidade pode ser definida a partir de uma localidade geográfica, valores compartilhados, categorias socioeconômicas, profissionais de uma determinada área, entre outros.

Ainda sobre o conceito de comunidade cita uma fala do argentino Sergio Raimondi, fundador do Museo del Puerto, “Dizer que se trabalha com a comunidade é um dizer...é algo da ordem da complexidade, não é homogêneo”. E a partir dessa fala defende a que representação de uma dada comunidade pode se dar através de um grupo de pessoas ou de um indivíduo.

Articulando estas ideias sobre comunidade com os processos de participação a palestrante desdobrou alguns pontos sobre o compromisso institucional com os participantes, defendendo a importância de assegurar os espaços de participação e representação desses processos no interior das instituições e visar à democratização temática dos discursos vinculados pelas coleções trazendo para esses lugares de participação comunidades que sejam pouco representativas, a fim de refletir a diversidade dos territórios.

Ainda sobre as formas de expor os conteúdos da participação como um desafio para os museus e faz referência a outro trabalho da artista Candy Chang que convida os públicos a escrever confissões em cabines reservadas. A partir dessas confissões a artista expõem as confissões fazendo referência a uma tradição chinesa de expor desejos.

No entanto, defendeu que nesses processos de colaboração com as comunidades as coleções seguem como o eixo do trabalho, entendidas de forma flexível e agregando materialmente os resultados destes processos. Ou seja, trata-se de “abrir o lugar e produzir modificações no interior das exposições”, sem abdicar das funções curatoriais, que tem a dupla função de dar forma a estes conteúdos e ampliar as vozes presentes naquela determinada coleção.

Ao considerar a defesa da participação e colaboração nas coleções a palestrante lança algumas perguntas – “Porque há tanta resistência às práticas de participação? ...Qual o papel dos curadores especialistas nesse formato?” E afirmou que a ideia não é tornar obsoleto o saber do especialista, mas desconstruir a sua posição de superioridade em relação ao público, representante de uma cultura superior. E, em última instância, explicitar “a ilusão que o museu tem a última palavra na interpretação da história”.

Nesse contexto, Alderoqui defende a prática reflexiva como uma metodologia chave para embasar as ações do “museu transformador”, ou seja, criar conceitos e conclusões a partir da reflexão da própria prática. A prática reflexiva, utilizada tanto pelos profissionais quanto pelos visitantes, para instaurar processos coletivos que possam gerar valores e conhecimentos colaborativamente e alterar a qualidade das relações entre os sujeitos. E desse modo propõe a constituição de comunidades práticas desde as quais sejam compartilhados códigos, estilos, valores.

Esses processos de colaboração, articulados à nova museologia servem também, para a palestrante, a constituição de territórios materiais e imateriais de colaboração que reúnem essas comunidades práticas, como a comunidade dos educadores/professores. Nesse ponto expõe alguns processos desenvolvidos no Museo de Las Escuelas como a investigação crítica dos passados históricos na Argentina e a recontextualização das minorias étnicas e, outro projeto desenvolvido atualmente, para pensar os contextos de ensino a partir da pergunta “como será a escola do futuro?”. Com essas considerações tornam-se mais claros os compromissos culturais e éticos aos quais se referia quando explicitou suas ideias sobre participação. No entanto, aqui também defende, no caso das minorias étnicas, o uso da história oral não como em quantidade e sim em qualidade, remetendo-se novamente a noção de representatividade que é definida pelos especialistas.

Ao final da comunicação convocou a plateia para inventar, no futuro, uma definição de museu que não se iniciasse com “o museu.......”, porque nesse caso novamente se começaria por museu e depois viria a comunidade, remetendo se inclusive a ideia de edifício indiretamente e “por isso esses pontos para que todos vocês preencham..........”.

Na extensão da comunicação Silvia Alderoqui diversas questões assumiram um caráter aberto. Essas questões foram, de certo modo, respondidas a partir dos trabalhos da artista Candy Chang e das práticas participativas no Museo de Las Escuelas explicitando alguns posicionamentos da palestrante. Alderoqui descreveu práticas não visam eliminar o trabalho do especialista, reservando a ele o papel de editar e dar forma aos conteúdos oriundos dos processos participativos com as comunidades e delegando a esses profissionais uma responsabilidade política considerando as escolhas que envolvem esse trabalho.

O caráter político da participação nos espaços museológicos coloca, no entanto, alguns desafios para um horizonte de ampliação desses processos: o papel do especialista; os desafios que implicam desconstruir status quo institucional; o questionamento radical da contraposição entre cultura sábia e cultura ignorante e como isso pode alterar os modos de expor e colecionar; até que ponto o compromisso com as comunidades práticas pode esbarrar nos limites institucionais dos museus, entre outros.