COMO APARECEM AS NARRATIVAS DOS MUSEUS... E DESAPARECEM AS DOS PÚBLICOS
Relato por Diogo de Moraes
O II Seminário Diálogos em Educação e Museu teve sua pauta norteada pelo entendimento dos “museus como espaços de convivência”. Neste sentido, privilegiou experiências ligadas ao “acesso à cultura e ao patrimônio como direito de todos”, com ênfase nos processos de “construção coletiva de significados”, de acordo com Mila Chiovatto, coordenadora do Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca.
A conferência de abertura do seminário ficou a cargo da educadora norte-americana Lisa Roberts. Além de educadora, Lisa é escritora, curadora, gestora de projetos culturais e consultora. PHD pela University of Chicago, foi diretora do Lincoln Park Conservatory e do Garfield Park, ambos em Chicago. Atualmente, desenvolve consultoria para museus, parques e outras organizações sem fins lucrativos. É professora adjunta da Johns Hopkins University.
Sua conferência Do conhecimento à narrativa e à ação: construindo narrativas nos museus de hoje, objeto deste relato, foi composta por dois momentos distintos. No primeiro, a educadora desenvolveu uma reflexão aproximando, de um lado, o trabalho de educação em museus e, de outro, a dimensão narrativa inerente às ações museológicas. O segundo momento da exposição teve como foco um conjunto de referências coligidas por Lisa sob a designação de “exemplares de uma colecionadora de museus e programas institucionais”, personagem incorporada por ela própria em sua trajetória profissional.
Opto por trabalhar especificamente com a primeira parte da conferência, visto que nela aparecem os aspectos mais relevantes para o exercício crítico que se pretende realizar aqui. Afora isso, o segundo momento de sua apresentação esteve em larga medida baseado na apresentação de registros fotográficos e em descrições panorâmicas de diversos museus e programas institucionais espalhados pelo mundo, mostrando-se pouco compatíveis com o formato e com os propósitos da análise a seguir.
Lisa inicia sua fala abordando o trabalho de educação em museus, chamando atenção para o que ela enxerga como sua dimensão radical e transformadora, apta a exercer influência nos âmbitos pessoal e social. Tal capacidade se daria, segundo a educadora, como um desdobramento natural do papel desempenhado pelos museus na vida social, no tocante à deflagração de alterações em suas dinâmicas, ou mesmo à possibilidade de “mudar o mundo”.
É possível notar em seus apontamentos iniciais um tipo de positividade assentada na pressuposição de efeitos transformadores, que operariam em realidades apresentadas por ela de maneira problematicamente genérica, o que nos sugere, por outro lado, a observância de alguns aspectos específicos de tal empreitada. Logo, não pretendo com este relato produzir um reflexo de sua conferência, mas um exercício de suspeição em torno de certos posicionamentos de Lisa.
Quanto à extensão defendida por ela entre a) o estatuto socialmente comprometido dos museus e b) a radicalidade pedagógica praticada por seus educadores, esta viria sendo obliterada por relações de poder estáticas, cultivadas pelas instituições mediante estruturas hierarquizadas. Destoando desse cenário, Lisa nos conta – de forma vaga e generalizante – que os educadores “antigamente eram os revolucionários”, e que caberia a eles, hoje, assumir novamente esta posição, em favor do enfrentamento das dificuldades e urgências da atualidade.
Entretanto, nos parece necessário desnaturalizar a extensão propalada por Lisa, de modo a complexificar as relações, ou mesmo os desencontros e embates, entre os discursos institucionais e curatoriais difundidos pelos museus e as discursividades surgidas das interlocuções dos seus educadores com os públicos das exposições.
Na medida em que os diálogos com os públicos tenderiam a favorecer a emergência de discursividades imprevistas, frequentemente desviantes dos enunciados apresentados pelas instituições e pelos curadores por elas respaldados, não faria sentido supor essa extensão em chave automática e unidirecional, já que provavelmente ela funcionaria em assimetria e sobreposição diante daquilo que tem a dizer os públicos acerca do que lhes é apresentado, mas também acerca do que não é exibido, relativizando as suas respostas e formulações, privilegiando os discursos publicizados por quem está autorizado a enunciar no interior dos museus: os curadores e, em menor medida, os educadores.
Por outro lado, Lisa faz uma série de ponderações acerca do que considera uma forma análoga – porém variante – à do discurso proposto pela curadoria no interior dos museus: a narrativa. Embora análoga, esta narratividade nos permitiria abordar o discurso em bases abertas e não definitivas. Um aspecto distintivo, neste caso, seria o fato da narrativa se distinguir da noção stricto sensu do conhecimento, em particular daquele tipo de Conhecimento grafado com ‘C’ maiúsculo.
Neste ponto, a educadora assinala uma mudança ocorrida ao longo dos últimos cinquenta anos nos regimes epistemológicos de instituições comprometidas com o conhecimento, tais como os museus e as universidades. Um dos índices dessa alteração residiria na passagem do modelo de produção de conhecimento para o da construção de narrativas. Haveria nisso a redefinição da própria noção de conhecimento e da posição de autoridade a ele vinculada. Concebido como narrativa, o conhecimento assumiria a forma de uma abordagem, entre tantas outras, de fatos verificáveis, tornando patente a sua condição de construto social, passível de contraposições e, portanto, de versões alternativas.
Porém, nos parece que esta mudança na estruturação dos modos de saber só poderia ultrapassar os limites do retórico caso estivéssemos realmente dispostos a produzir, nos contextos museológicos, situações narrativas plurais, em que as enunciações dos educadores e, tanto quanto elas, as dos públicos perpassassem e repusessem os debates trazidos pelos curadores a partir das coleções. Lisa notará, no entanto, que historicamente a interpretação dos acervos, desdobrada em recortes expositivos, tem correspondido a uma prerrogativa dos curadores, aos quais competiria gerar conhecimento mediante o estudo e a reunião das obras, disseminando-o para o público.
Ainda assim, ela acredita que a ampliação do papel da educação nos museus, por meio dos seus programas pedagógicos, teria favorecido o surgimento de abordagens inéditas das coleções, inaugurando uma nova frente capaz de relativizar a hegemonia dos curadores no trato com os significados denotados pelas obras e seus arranjos.
Mas é justamente nessa abertura, por onde os interesses, os repertórios e as falas dos públicos poderiam não só adentrar os ambientes expositivos, como também ali repercutir produzindo ecos e problemáticas imprevisíveis, que Lisa postará a figura do educador como um “representante das perspectivas dos visitantes”, tutelando-os. Estes representantes do público atuariam, segundo ela, como profissionais versados nas práticas do ensino-aprendizagem e da comunicação, como “especialistas em visitantes”, conhecedores (sic) dos seus interesses, valores e saberes.
A dimensão emergente da iniciativa tomada por qualquer pessoa, quando disposta a fazer-se público de um discurso (ou narratividade), é reduzida por Lisa à constatação, típica do ferramental publicitário, de que “há uma ampla gama de públicos, que têm os seus diferentes estilos culturais”. Nas ações educativas dos museus, este truísmo servirá de mote para o exercício de uma gestão dupla: 1) dos discursos e 2) dos públicos. Ele estimulará os educadores a planejarem as diferentes formas de “como comunicam as coleções dos museus” a cada seguimento do público, sendo este definido de modo apriorístico, com base em critérios abstratos e organizacionais: público escolar, público familiar, público da terceira idade, público socialmente vulnerável, público com necessidades especiais etc.
O risco do efeito meramente retórico da transição entre ‘discurso’ e ‘narrativa’ reaparece aqui sob o signo do eufemismo: comprometidos que estão os educadores com a construção de narrativas, eles trariam perspectivas e formas diferentes de contar histórias a partir das coleções dos museus, de acordo com os diferentes visitantes, respeitando seus níveis de desenvolvimento cultural e intelectual. Apesar da ginástica em torno do estatuto do conhecimento, oscilante entre as categorias do ‘discurso’ e da ‘narrativa’, nota-se que a lógica de endereçamento de quem sabe para quem não sabe continua intacta.
O espaço “conquistado” pela educação nos museus, deste modo, daria vazão e legitimidade à capacidade de tradução dos discursos curatoriais e das obras pelos educadores, que por sua vez facilitariam seus sentidos para os públicos, mediante narrativas moduladas conforme a capacidade de compreensão dos visitantes.
Lisa repetirá que “os educadores são os verdadeiros revolucionários dos museus”, acrescentando que eles “estão mudando o status quo, mudando a forma como falamos das coleções”. Mas afinal, quem “falamos” (sic)? Transparece aí, novamente, a condição por ela concebida para os públicos: a da figura social tutelada. Ao falar em nome de todos – com as devidas modulações de linguagem e imaginário, é claro –, os educadores seriam os responsáveis por “tornar os museus significativos para os visitantes”, de um jeito que nos faz lembrar o pai que, para convencer o filho de ir para o seu quarto escuro dormir, se imbui de lhe contar uma, duas ou três historias ao pé da cama – a depender do tempo que a criança demore a cair no sono.
O “educador revolucionário” de Lisa seria, no máximo, um intermediário bem-intencionado, um zeloso mediador entre os saberes implicados nas obras e curadorias e o não saber dos públicos. Enquanto o critério do trabalho pedagógico em museus for esse, seguiremos desaparecendo com aquilo que os públicos dizem e, ao dizer, narram diante daquilo que lhes é apresentado.