Entre mediar, relatar e esculpir: uma colagem de falas
Relato da mesa “Plástica social como forma de esculpir o mundo”
As idéias de Joseph Beuys sobre ‘plástica e escultura social’ foram abordadas a partir da atuação de três artistas bem distintos: Cássio Santiago, Ayrson Heráclito, e Rubens Espírito Santo.
O performer e ator Cássio Santiago abriu a conferência apresentando a essência do trabalho do grupo de teatro Ueinzz do qual é diretor há 4 anos. Fez da sua fala uma tentativa de aproximação entre a experiência do grupo e as idéias de Joseph Beuys sobretudo no que diz respeito à prática da performance. Em sua densa explanação, que durou por volta de 45 min, seguimos o balanço constante das idéias que perpassam a atuação do Ueinzz e as premissas de arte de Beuys.
Segundo Santiago, tanto para o artista alemão quanto para o grupo, o encontro e o convívio social seriam o ponto condensado da matéria artística. Em dado momento perguntou à platéia o que nos vinha à mente quando pensávamos no termo ‘escultura social’. Do que se trataria esse esculpir o mundo e suas relações? E ressaltou: “a arte pode ser um reflexo dessas coisas, mas pode ser também as próprias coisas - a própria relação entre as coisas”. Realizar uma performance seria um pretexto para proporcionar o encontro de subjetividades, de diferenças. Sim, disse Santiago: todo mundo é artista, o Ueinzz pratica essa frase como Beuys também o fez. “Mas artista não é um estilo”, ele lembra, é antes de tudo aquilo do qual um certo ser não pode prescindir: seu corpo, sua subjetividade, seus fantasmas. Considerando que o teatro e a performance tem como principal suporte o ser humano, o Ueinzz acredita, novamente em consonância com a prática de Beuys, que é preciso fazer desse suporte uma presença (voltou a pulsar aqui a revolução individual defendida e exercitada pelo artista alemão que estava a serviço de um questionamento radical da própria noção de indivíduo).
Após um breve passeio por esses conceitos, Santiago esboçou mais objetivamente o que seria uma espécie de método de criação dos trabalhos do grupo que dirige. Não existe, por exemplo, separação entre pausa e momento de trabalho; e qualquer detalhe do convívio entre os membros do grupo pode servir para o que ele chama de “dispositivos de composição”. Aliás ele definiu o processo criativo do grupo como uma mistura entre compor e expressar. O entendimento do que seja composição apareceu no seu relato sobre a mudança que o grupo processou há quatro anos quando ele passou a dirigí-lo.
Incluindo o espetáculo Finnegans Ueinzz no conceito de plástica social, Santiago afirmou ver uma estreita relação na aposta por decifração presente no livro de James Joyce (Finnegans Wake), e no papel do observador nas performances de Beuys. O encontro entre esses dois artistas teria aberto um espaço para o grupo de teatro. Este espaço foi definido por Santiago como o da “liberdade que coloca regras”. Para que uma nova língua nasça aos olhos do leitor - como o que acontece no livro de Joyce - aquilo que estava na sombra da linguagem precisa aparecer. É o que o diretor do Ueinzz vê também na forma com que Beuys dispõe os materiais de suas performances no espaço. Segundo Cássio, trazendo-os das sombras, mais do desenhando, expondo suas forças para que uma forma seja gerada no contato entre as tensões criadas no espaço e a subjetividade do observador. Processo semelhante, portanto, à atribuição de sentidos às palavras antes inexistentes e postas para o jogo da leitura de Joyce.
Numa mudança de clima, a projeção de uma das tabuletas negras escritas à giz por Beuys: Kunst = Kapital ( Arte = Capital) se sucedeu às imagens do espetáculo Finnegans Ueinzz. E com esta obra ao fundo, Cássio partiu para algumas considerações sobre a natureza da linguagem da performance. Afirmando que performance é quase toda atividade humana, disse que a imprecisão é uma qualidade fundamental a ser explorada. Depois concluiu dizendo que os conceitos de arte de Joseph Beuys o ajudaram a conceber a proposta cênica do Ueinzz e fazer uma distinção entre teatro e performance que, para ele, é mais aberta às experimentações e às imprecisões caras ao grupo.
O xamanismo, que teria sido o início do processo artístico de Beuys, foi trazido por Santiago como chave para o entendimento da plástica e escultura social por facilitar o reconhecimento dos talentos individuais ao evocar energias primitivas na solução de problemas reais. Essa motivação por solucionar necessidades ou problemas reais é o que torna o trabalho do grupo Ueinzz possível, ressaltou Santiago - só assim o grupo é capaz de conjugar sua constelação de forças e energias. Para falar dessa constelação de forças construída sem hierarquias, Cássio Santiago aproveitou e trouxe para a discussão a idéia de colagem no trabalho do grupo. Utilizou-se para isso das considerações do artista suíço Thomas Hirschhorn. Para Hirschhorn, a colagem em seu conceito ampliado, se alimenta de todo tipo de material a começar pelos vizinhos, as casas vizinhas, o entorno de sua casa e todo tipo de atravessamento urbano na sua experiência cotidiana.
Na finalização de sua fala, o performer e diretor afirmou que Beuys o ajudou a “não ser cínico”, o ajudou a fazer da atividade artística uma atividade digna apesar da voracidade competitiva do meio. Falou também do aprendizado que teve sobre a sua atuação como professor, dizendo que a obra de Beuys o fez acreditar numa educação a favor das tendências individuais de cada um e o tornou um artista mais responsável. Em suas considerações finais, fez uma espécie de declaração, quase um voto de filiação ao relembrar a primeira vez que viu uma obra do artista alemão por ocasião da bienal de 1989. Segundo ele, aquela liberação de energia causada pela obra nas pessoas ainda estava viva em sua memória. Isso porque ele teria encontrado ali um refúgio para criar suas próprias proposições de sentido.
A segunda fala do dia foi então iniciada por Ayrson Heráclito que aproveitou a oportunidade para registrar aquela data - o dia internacional do grito contra a fome. Para o artista, nada melhor do que gritar contra a fome como forma de abrir uma conversa sobre a plástica social de Beuys (o público entendeu esta fala como um chamado e surgiram alguns gritos breves espalhados pela platéia).
A apresentação de Heráclito partiu de uma introdução sobre suas origens, a Bahia da caatinga, seca, mais rígida, bem diferente daquela mais conhecida e celebrada na obra de Jorge Amado. O artista aproveitou experiências pessoais, como o acidente em que foi picado por um escorpião, para falar do despertar dos sentidos que para ele é a grande questão de Joseph Beuys.
Da mesma forma que Cássio Santiago, Heráclito também faz um exercício de memória para nos trazer o impacto do seu primeiro contato com a obra de Beuys. Isto se deu através de um fascículo que o artista encontrou por acaso em uma banca de jornal na cidade de Vitória da Conquista, onde vivia, aos 13 anos de idade. O grande espanto naquele primeiro contato foi ler que, aquilo que ele nunca ouvira falar, e que se chamava performance, poderia ser comparado a uma obra da magnitude como a Monalisa de Leonardo. Esse era o teor do texto que o espantara naquele momento e que o motivou a tentar apreender aquela obra. O Instituto Goethe de Salvador foi, para essa fase inicial de interesse, o seu ponto grande lugar de referência sobretudo por promover um contato com uma obra original do artista por ocasião de uma mostra de colagens. O trabalho apresentado nesta mostra foi a série de radiografias da instalação “Mostre suas chagas”.
Ao tornar-se artista, já em sua pesquisa sistematizada em arte, Heráclito redescobriu a obra de Beuys no interior do seu próprio trabalho quando ele o tomou como pesquisa de mestrado. Nela, o artista elegeu três materiais: a carne, o açúcar e o azeite de dendê como elementos intermediários de acesso ao conhecimento, instrumentos de pesquisa para se pensar principalmente a constituição da cultura brasileira onde ele próprio se inseria.
A idéia de que o artista é aquele que deve dar-se a consumir como um alimento é apresentada como um dos leitmotiv da obra de Heráclito. Os materiais eleitos por ele como estratégias de leitura da sua realidade sócio cultural são, além de orgânicos, comestíveis, e após a citação de um poema árabe do séc. XIII, Heráclito começou a nos apresentar as imagens dos seus trabalhos.
Segundo Heráclito, a idéia de retorno aos sentidos primitivos proclamado pelo artista alemão o motivou a tomar a história como objeto de investigação artística. Assim ele introduziu a instalação que realizou apresentando peças como a proa de um navio e outros elementos constitutivos das forças em jogo no período colonial brasileiro - mais especificamente aquele dedicado à extração do açúcar. Heráclito se deteve sobre a escultura de açúcar localizada no centro da instalação que reproduz a forma do chamado ‘pão de açúcar’. Neste objeto ele percebe uma relação entre as camadas de pureza do material e a estrutura social daquele período. Do grão mais fino e branco, que serviria para a exportação; àquele mais escuro e grosso reservado ao consumo da colônia; passando ainda pelo grão médio de cor marrom claro. A palavra usada para o refino do açúcar, ‘purgação’, também ganha um conteúdo sociopolítico a partir da citação de um pensador importante da época, o padre jesuíta Antonil, para quem o Brasil era o purgatório dos brancos, o paraíso dos mulatos e o inferno dos negros.
O segundo material eleito por Heráclito foi a carne de charque. Ele disse que este período em que trabalhou com o charque foi especialmente doloroso porque o forçou a conviver com alguns registros de atrocidades cometidas contra os negros. Esta convivência trouxe aos seus olhos a imagem de um verdadeiro holocausto - “o nosso holocausto”. Heráclito contou que passou a refletir sobre o corpo cultural que ainda sofre com a dissimulação do racismo no Brasil principalmente a partir da leitura de um documento que registrava o processo de julgamento de Garcia Dávila, senhor de escravo, frente ao Santo Ofício. Deste estudo nasceram algumas performances que depois se desdobraram em outras formas de atuação como a associação com o programa de doação de alimentos do sociólogo Betinho, e desfiles em eventos de moda cujas vestimentas de carne de charque foram criadas para mobilizar a sociedade nas campanhas contra a fome. Por isso Heráclito tende a chamar estes trabalhos de esculturas sociais.
Ao mesmo tempo, de forma análoga à estratégia adotada por Beuys em seus cartazes e múltiplos, Heráclito passou a realizar performances que pudessem existir integralmente em vídeos. “Transmutação da carne” é o título da performance em vídeo que Heráclito nos apresentou. No performance, assistimos homens negros, vestidos com carne de charque, ora andando sobre algo que se assemelha a brasas, ora tendo uma insigna gravada com ferro quente em suas vestimentas. Assistimos a essas cenas enquanto ouvimos descrições detalhadas de uma espécie de ritual sádico, com requintes de violência. O texto que serviu de áudio à performance são os ítens do processo de julgamento do senhor de escravos citado anteriormente.
Na terceira série de trabalhos, cujo elemento de base é o azeite de dendê, Heráclito trata da arte enquanto devir ritual. Isto ficou mais claro na série “Banhistas”- fotografias de pessoas banhando-se com o azeite. O artista introduziu este conjunto de trabalhos falando que o azeite de dendê é atualmente o material que ele tem mais apreço e enumera alguns de seus vocativos: sangue de exu, sangue ancestral, esperma dourado de exu. Com o dendê, Heráclito realizou alguns ornamentos que se assemelham a pérolas. As obras propriamente ditas são as fotografias, vídeos e performances em que pessoas negras vestem esses ornamentos de várias maneiras. Segundo ele, o dendê fez vir à tona no seu trabalho as imagens do barroco.
Propositadamente mais breve na apresentação desta série de trabalhos, Heráclito passou rapidamente por alguns projetos de instalação em que o dendê banha paredes de igrejas e outras imagens de trabalhos que podem ser vistos no site do videobrasil. Seu interesse voltou-se para nos mostrar seu trabalho mais recente - “Bori” (palavra que é a fusão de “ebó” com “ori”, e que respectivamente significam oferenda e cabeça em iorubá). Heráclito chamou atenção da relação deste trabalho e a idéia, trazida do candomblé, de que os alimentos não servem apenas para alimentar o corpo, mas também a alma. Esta aproximação com o candomblé se originou na sua vontade de promover novos cruzamentos entre a performance arte e a performance feita com intuitos não artísticos, pelo povo.
“Bori” é uma performance de 2 horas, em que doze pessoas escolhidas previamente se deitaram no chão e tiveram suas cabeças ornadas com comidas sacrificiais específicas para cada orixá. A importância dada à cabeça na cultura iorubá, segundo Heráclio, está no fato de que é nela que reside o destino e o princípio individual de cada um. Enquanto projetava as imagens de “Bori”, o artista foi finalizando a sua fala, reiterando que só foi capaz de perceber a riqueza daquelas manifestações culturais porque antes tomou contato com a obra de Joseph Beuys.
Rubens Espírito Santo, que encerrou o seminário daquele dia, sentou-se à mesa e antes de qualquer introdução da sua fala, pediu à organizadora do evento autorização para propor uma desconfiguração daquele formato mesa, palco, platéia. Montou-se então um novo arranjo para o encontro, semelhante ao que o artista costuma se utilizar nas experiências que promove. Fomos convidados a nos reunir em roda e sentarmos sobre o palco. Nesse novo ambiente, Rubens anunciou: “minha fala será brevíssima”. Na verdade, o que tivemos foram as palavras do próprio Beuys. Numa leitura bastante contundente, ouvimos trechos da entrevista que o artista alemão concedeu ao artista e matemático brasileiro Enéas do Valle. Na entrevista Beuys defende uma mudança estrutural na relação que temos com a economia, expondo suas idéias a partir de perguntas sobre o que se deve ensinar nas academias de arte; se faria sentido ou não a doação de uma obra sua para um museu no Brasil; ou ainda por que artistas são tão menosprezados pela sociedade. A partir de algumas poucas deixas, ouvimos Beuys sob a voz de Espírito Santo, discorrer sobre as relações humanas contaminadas pelo sistema econômico, sobre a miopia dos artistas que se preocupam apenas com sua própria liberdade em detrimento da liberdade dos outros, e sobre o único problema que deveria interessar aos brasileiros que é a ecologia. Breve como anunciara, Rubens não teceu qualquer comentário sobre o que acabara de ler e concluiu a sua apresentação pedindo que o restante do que seria a sua fala fosse completada pela nossa participação. Numa das primeiras intervenções, ouvimos uma artista que se apresentou como alguém que estuda a obra de Beuys desde o seu mestrado e que tem no artista uma referência crucial para o seu agir como ser humano, artista e educadora. Disse que desconfiava de qualquer discurso retilíneo e que sua participação seria a de advogar pelo diabo pois achava problemático o fato daquela entrevista não ter sido devidamente contextualizada, especialmente porque algumas afirmações feitas por Beuys soavam extremamente autoritárias hoje em dia. Como foi o caso das participações anteriores, esta também não gerou comentários de outras pessoas ou réplica por parte de Rubens Espírito Santo. Seguimos para a próxima, um jovem rapaz que gostaria de ouvir do Rubens algum comentário sobre a afirmação, que ele teria ouvido em um culto religioso, em que se dizia ser ultrapassado desejar fazer aquilo que se gosta, já que o importante era gostar daquilo que se faz. “Como responder àquilo?”- Rubens perguntou-se em voz alta. Na sequência fez uma pequena digressão sobre a sua incapacidade, cada vez mais constante, de dar respostas. Acrescentou ainda que sua incapacidade de dar respostas é especialmente maior em se tratando de questões relativas à arte que, em suas palavras, é algo que o desinteressa profundamente. A partir desse momento as participações começaram a girar em torno do sentido que se dá à palavra arte. Várias pessoas se pronunciaram espontaneamente com variações reflexivas sobre as possíveis funções da arte. E, conforme as pessoas se pronunciavam, foi ficando evidente uma polarização entre aqueles que se afinavam com a abordagem do assunto dada por Rubens e o restante que tomou para si a exigência feita inicialmente pela pesquisadora da obra de Beuys que questionou a ausência de contextualização da entrevista trazida por Espírito Santo. Essa polaridade movimentou o grupo até o final do encontro. Muitas pessoas participaram e realmente contribuíram para a discussão. Além de suas contribuições particulares foi interessante que essa abertura da roda de conversa pôde nos informar os interesses e atuações do público que havia participado daquele dia de seminário. A presença de atrizes e atores já se fazia notar, mas nessa última mesa apareceram também os educadores. Aliás foi de uma arte educadora que trabalhava junto ao público da exposição de Beuys uma das considerações finais do encontro. Ela viu na espécie de trincheira representada pela postura de Rubens Espírito Santo que, segundo ela, ao invés de posicionar-se sobre as questões levantadas, manteve-se citando referências de outros autores, algo que a incomoda em sua rotina de mediação entre o público e a obra de Beuys. Em sua opinião, há uma tendência de se formar meros reprodutores de tudo que o artista dizia sem que se reconheça a importância de uma apropriação daquelas experiências. A discussão se desdobraria ainda por um tempo imprevisível não fosse a intervenção da organizadora do evento Valquíria Prates que gentilmente ofereceu um outro espaço para quem quisesse continuar o debate. Não fui checar se algum grupo se formou em nas dependências do SESC, mas certamente o incômodo gerador da discussão continuou.
Relato por Débora Bolsoni