Sem margem de negociação. Demitir educadores durante a quarentena expõe a hipocrisia das instituições culturais
Notícias sobre cortes e demissões no meio da arte têm se multiplicado nas últimas semanas. Com museus e instituições fechados ao redor do mundo devido à pandemia de Covid-19, estima-se que os déficits orçamentários ao longo dos próximos meses sejam inéditos e extraordinários.
No dia 13/3, a Fundação Serralves, do Porto, dispensou toda a equipe de 23 educadores contratados. Paralelamente, na primeira semana de abril, foi a vez do MoMA de Nova York repetir a mesma forma de proceder com 85 educadores. A justificativa era a de que, com os museus fechados, não haveria mais atividades com visitantes, tornando o papel desse setor desnecessário. Entretanto, tarefas que já estavam sendo preparadas para abril, como elaboração de visitas educativas e redação de relatórios, entre outros trabalhos administrativos, não foram devidamente remuneradas.
Os dois casos vêm sendo muito divulgados, mas eles não são os únicos. Os cortes, aliás, já chegaram nas instituições brasileiras. São demissões, reduções de salários e licenças não remuneradas, sobretudo entre os trabalhadores mais precarizados: os freelancers e terceirizados. Sendo os primeiros a sofrerem cortes, esses funcionários não têm margem de negociação com as instituições, muito menos direito a auxílio desemprego e outros benefícios. Neste cenário radical de pandemia, sua condição precarizada fica ainda mais exposta.
Mas nada disso é novidade. Trata-se de uma prática recorrente: nos últimos anos, educativos e outros setores de museus operam cada vez mais com funcionários temporários, sem vínculo empregatício. Além de não conseguir desenvolver pesquisas e atividades a longo prazo, esses trabalhadores são submetidos a conjunturas vulneráveis e desiguais, contribuindo de modo limitado ao papel da instituição. Segundo a lógica do trabalho contemporâneo, nunca foi tão fácil se desfazer de pessoas, funcionários e colaboradores. Curiosamente, entre as estratégias de redução de custos, os salários de cargos de direção, bem mais elevados que os demais, não são mexidos. Dos casos internacionais já divulgados, apenas o New Museum, de Nova York, fez cortes em salários mais altos, embora também tenha demitido funcionários.
Educativo digital
Se são os educadores que estabelecem diálogo direto com o público, promovendo estratégias de crítica, provocação e aproximação das discussões promovidas pela instituição, a quarentena seria o momento ideal de se aliarem às equipes que estão produzindo conteúdo digital. Com o exemplo do MoMA e de Serralves, no entanto, percebemos que as instituições têm preferido adotar estratégias de homeschooling um tanto antiquadas. Embora Serralves tenha suspendido as atividades públicas presenciais, a instituição segue promovendo ações online, lançando inclusive um novo programa, o “SOLE – Serralves Online Experience”, adaptando parte de atividades que foram elaboradas pelos ex-funcionários. Já o instagram da fundação vem publicando trechos de falas de artistas, buscando instigar reflexões motivacionais durante o confinamento. No dia 6/4, os funcionários dispensados publicaram uma carta acusando a instituição portuguesa de se negar a mantê-los em regime de teletrabalho.
Ao que tudo indica, as estratégias virtuais têm sido estruturadas por outros setores, com contratação provisória de educadores pontuais. Por sua vez, dias depois de dispensar os seus funcionários, o MoMA convidava o público a participar de cursos de desenho e colagem online. “Aqui estão alguns recursos para levar arte e inspiração até os aprendizes de sua vida”, dizia o e-mail enviado pela instituição no dia 6/4, com o título “O museu desde o lar” (The Museum from home).
Ironicamente, demitir educadores revelou-se o caminho mais careta que qualquer instituição poderia assumir agora. Afinal, a suspensão de atividades não seria o momento propício para praticar uma ampla revisão interna, consultando diferentes setores, funcionários, público e colaboradores externos? Não seria agora, finalmente, o momento em que as instituições, sempre tomadas de agendas lotadas e cronogramas apertados, poderiam instigar e alargar um novo imaginário para si?
Todavia, seguindo concepções empresariais, os museus demonstram enxergar os trabalhadores da educação como meros executores, mediadores de público que auxiliam a instituição a atingir metas e contrapartidas sociais de patrocinadores, ao contrário de potenciais interlocutores internos.
Trabalho precarizado
Essa falta de compreensão também é reforçada pelo modo como o trabalho do educador é orientado. É comum que seja demandado a esses setores, além de seus serviços usuais, controlar o público, exercer funções de guarda patrimonial, recepcionista ou mesmo ligar e desligar aparelhos no espaço expositivo. Com um misto de funções de distintas naturezas, típico do trabalho precarizado, fica difícil enxergar neste ofício a sua responsabilidade de colaboração crítica, sobretudo em um contexto de crise.
Somado a isso, é sabido que a maioria dos sites institucionais apresenta pouco ou nenhum traço experimental, e costuma ser coordenada por setores de marketing e comunicação, mais interessados em promover o nome da instituição do que em arriscar novos formatos de conteúdo. Portanto, se há alguma oportunidade na pandemia, essas instituições deveriam se aproximar ainda mais do trabalho feito pelos núcleos educativos, tornando suas vidas digitais mais provocativas.
Na via oposta, seriam os educativos que ganhariam também com a experiência virtual, uma vez que a internet e as redes sociais têm impactado cada vez mais a experiência do público nos museus. A colaboração de programadores, educadores e curadores certamente poderia nos levar a soluções além do tour virtual, da live do Instagram e do catálogo em PDF. É o caso do Whitney Museum, também em Nova York, que ao contrário do MoMA, enviou um e-mail aos seus educadores, informando que pretende lançar novas iniciativas de ensino online com a colaboração do setor, sem demissões nesta área.
O desafio é resistir à ideia de virtual como substituição do real. Se o ensino a distância encontra a oportunidade de se implementar com mais força, educadores terão o desafio de resistir ao empobrecimento dos encontros. Como criar medidas de compartilhamento de experiências a partir da condição de isolamento? A pandemia nos impõe repensar a produção de presença sem proximidade física.
Por fim, nunca foi tão pertinente reivindicar uma ampliação do apoio público ao setor cultural. No curto prazo, é o que poderá aliviar impactos negativos gerados pela pandemia. No médio prazo, é o que garante que as instituições possam projetar alternativas já adaptadas às mudanças em curso. No longo prazo — este um tanto otimista — é o que permitirá que as instituições não sejam pautadas majoritariamente por ricos e super-ricos, hoje protagonistas nos conselhos e investimentos, inflacionando benefícios próprios. Afinal, o que diferencia um museu de arte de outra empresa qualquer? A crise exige resposta.
Pollyana Quintella é curadora e pesquisadora independente. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, com pesquisa sobre o crítico Mário Pedrosa.