Peste negra provocou retrocesso na arte; Covid-19 também poderá impactar setor
Enterro massivo de vítimas da peste em Tournai. Detalhe de uma miniatura das Crônicas de Gilles Li Muisis (ca. 1350) Foto: Reprodução
Historiadora Maria Berbara analisa efeitos da pandemia na Idade Média e indaga sobre o futuro da produção artística após coronavírus
RIO — Nos tempos que correm tornou-se frequente recordar a grande pandemia de peste bubônica que assolou a Eurásia entre 1347 e 1351. Se já é difícil averiguar com exatidão — ou mesmo sem ela — números de infectados e vítimas da Covid-19 hoje em dia, determinar quantas pessoas pereceram durante o fatídico verão boreal de 1348, quando a pandemia atingiu seu pico, é missão impossível.
A partir de crônicas, imagens, censos, documentos administrativos e evidências genéticas, porém, pode-se fazer uma estimativa: a peste negra — mors nigra, como já em 1350 foi batizada — estendeu-se da Pérsia ao Egito, da Itália ao Marrocos, da Irlanda à Rússia, e dizimou entre 75 e 200 milhões de pessoas ao longo dos quatro anos que precederam e sucederam o pico da pandemia.
A enfermidade, causada pela Yersinia pestis, uma bactéria zoonótica geralmente encontrada em mamíferos de pequeno porte e em suas moscas, tem uma taxa de mortalidade extremamente alta — entre 30% e 60%, segundo dados da Organização Mundial da Saúde — para o tipo bubônico, que foi o que assolou a Eurásia em meados do século XIV.
Sua presença, estabelecida por estudos de aDNA (“ancient DNA”, ou DNA antigo) em sítios de sepultamento coletivo pesquisados em distintas localidades europeias, confirma a extensão cataclísmica da pandemia medieval. Crônicas contemporâneas falam da putrefação de pilhas de cadáveres em plena rua, dos sepultamentos em massa, do fanatismo místico, do banditismo, do caos econômico e social.
Petrarca, o grande humanista, escreveu em 1350 uma carta a um amigo expressando sua melancolia perante as perdas sofridas — incluindo a da sua célebre musa, Laura, a quem a peste ceifou em maio de 1348: “Como a posteridade entenderá que houve uma época em que, sem dilúvios, sem a conflagração do céu ou da terra, sem guerras ou outros desastres visíveis, não esta ou aquela parte do mundo, mas todo o globo despovoou-se? Onde já se viu ou ouviu semelhante calamidade? Em quais anais pode ser lido que lares ficaram vazios; cidades, abandonadas; colheitas, negligenciadas; campos abarrotados de cadáveres, e um horrível e violento deserto foi criado em todo o mundo?”
O grande clássico no campo dos estudos histórico-artísticos sobre a peste negra continua sendo “Painting in Florence and Siena after the Black Death”, publicado pelo americano Millard Meiss em 1951. Embora centrado na Toscana, o livro estabeleceu um importante paradigma para a análise de outras regiões europeias. A tese central do historiador da arte é que a inventividade revolucionária de Giotto, falecido em 1337 — alguns anos antes do início da peste, portanto — e de outros inovadores mestres ativos no início do século seria seguida por um retrocesso, um retorno ao conservadorismo religioso, à hierarquia espiritual, à representação do divino em detrimento do humano e ao que ele define como uma atmosfera de medo, pessimismo e culpa.
Meiss aponta que, graças à enorme prosperidade de que a Toscana havia desfrutado nas primeiras décadas do século XIV, membros das oligarquias capitalistas nascentes que governavam Florença e Siena haviam se convertido nos mecenas principais da arte religiosa toscana, estimulando artistas que, como Giotto ou os irmãos Lorenzetti, representavam cenas religiosas imbuídas de uma espiritualidade serena e de sentimentos profundamente humanos. A partir da crise pandêmica dos anos 1340, o sistema financeiro e comercial toscano colapsa e uma profunda recessão econômica se instaura.
Muitas das antigas oligarquias se extinguem, e o clero se enriquece graças a doações e testamentos de ricos mortos. Meiss estima que a população sienense tenha decaído de 42 mil para 15 mil pessoas, e a florentina, de 90 mil para 45 mil. Muitos pintores, escultores e arquitetos de renome são vitimados pela peste, e jovens aprendizes assumem suas funções. Seu público também se transforma: ao invés de sólidas e pujantes oligarquias, agora ordens religiosas, imigrantes e novos ricos que prosperaram na crise transformam-se nos grandes consumidores de uma arte doutrinariamente ortodoxa, onde a humanidade dos albores do século é substituída por uma maior ênfase no mundo sobrenatural e na autoridade da Igreja.
Os terrores do Juízo Final e da danação eterna ganham ênfase nos programas iconográficos, e multiplicam-se, em toda a Europa, imagens macabras de esqueletos e cadáveres em putrefação tomando de assalto cidades e campos. Embora, nas décadas seguintes à sua publicação, o livro de Meiss tenha recebido críticas pontuais, a tese central de que a peste negra tenha alterado o curso da história da arte toscana — e, por extensão, do Renascimento, tal como o conhecemos — permanece sólida.
Democratizar ou elitizar
Não esqueçamos que Meiss escreveu seu clássico poucos anos depois do fim da Segunda Guerra, com os olhos e a alma saturados pelas imagens terríveis da morte e da destruição em massa. Como a Covid-19 transformará a produção, apreciação e interpretação da arte e sua história? Alguns dos efeitos da pandemia, nesse campo, já se fazem sentir. Em poucas semanas museus foram fechados, mostras suspensas, e conferências canceladas. As artes visuais, subitamente, devem renunciar à esfera pública na qual circulam e da qual se nutrem.
Novamente a história pode dar-nos exemplos de como as artes reagiram a crises análogas: após a peste negra, por exemplo, parece ter havido um incremento na produção de obras devocionais menores e mais baratas, destinadas ao culto privado, em detrimento de grandes encomendas cívicas e religiosas. Muito mais recentemente, nos anos 1980, o forte ressurgimento da iconografia macabra (recordemos, por exemplo, a famosa caveira cravejada de brilhantes de Damien Hirst, a série de caveiras de Andy Warhol ou o autorretrato apoiado em uma bengala encimada por um crânio, de Robert Mapplethorpe) foi por alguns críticos associada aos horrores da Aids.
A recessão atingirá fortissimamente todos os setores da sociedade, e as artes — excluídas, assim como as humanidades, do horizonte prioritário de financiamento público — não serão poupadas. Por outro lado, o consumo virtual de produtos artísticos nunca foi tão alto, e, paradoxalmente, grande parte da população mundial que, antes, não dispunha de meios econômicos para frequentar museus, óperas ou teatros, pode momentaneamente desfrutar de exposições e espetáculos transmitidos gratuitamente online. Uma das questões mais relevantes que se discute no momento é, precisamente, se a virtualização das atividades artístico-culturais pode democratizar, ou pelo contrário, elitizar ainda mais a sua prática e consumo, relegando-a à esfera privilegiada dos que podem ter acesso permanente a uma internet de boa qualidade.
Mas, para além do sistema de arte, como a pandemia afetará a própria produção artística? Que novas alianças serão feitas entre a arte, a espiritualidade e a ciência? Em um mundo de “distanciamento social”, de que modo artistas poderão interagir com seu público? A qual novo horizonte cultural nos levará a inescapável crise social, moral, cultural e existencial que nos acometerá coletivamente? Certamente é cedo para responder a essas questões. Mas, enquanto nos preparamos para o impacto, podemos formular essas perguntas e lançá-las, como fez Petrarca, ao futuro.
Maria Berbara é mestre em História da Arte pela Unicamp, doutora em história da arte pela Universidade de Hamburgo (Alemanha) e autora de diversos estudos no âmbito do renascimento italiano e ibérico