Mercado de arte prega união para enfrentar pandemia, mas elo mais frágil é o artista
Galeristas apostam ainda numa diminuição do ritmo das feiras e em seleções customizadas para colecionadores
Em vez de manequins, uma vitrine na rua Lisboa, nos Jardins, exibe uma estranha topografia em neon. Bandeiras coloridas se enfileiram na fachada de um prédio na Vila Buarque. Um cão sobrevoa o deserto num jatinho privado num vídeo exibido, em loop, numa sala envidraçada do edifício Copan.
A divisa com a rua foi o lugar que alguns espaços paulistanos –no caso, a galeria Verve, a galeria Jaqueline Martins e o Pivô–, encontraram de mostrar arte, mesmo fechados por causa do coronavírus.
Mas os poucos pedestres que as obras encontram não deixam de evidenciar o vazio que o coronavírus gera num setor baseado no convívio social e na relação ao vivo com as obras.
A receita do mercado de arte para enfrentar essa crise consiste em menos feiras e mais união. Em especial dos agentes mais estabelecidos com aqueles que, segundo os profissionais da área, serão os mais afetados pela Covid-19, caso dos artistas emergentes e das galerias menores.
Afinal, pesos-pesados sempre podem recorrer a vendas de obras de suas coleções, diz o colecionador Marcos Amaro, que ainda atua como artista e galerista. “A arte tem liquidez”, afirma ele, acrescentando que não comprou trabalhos desde o início da quarentena. “Como eu tinha algumas negociações em aberto, estou antecipando compromissos. Mais do que isso, não”, diz.
Já a vulnerabilidade das casas emergentes ficou clara há duas semanas, quando a feira SP-Arte, cancelada por causa da pandemia, anunciou que, por ora, só devolveria às galerias participantes um terço do valor investido no evento.
Considerando que uma participação na feira começa nos R$ 50 mil, mais ou menos, é um baque e tanto no orçamento das galerias menores. Essa quantia representa, por exemplo, quase seis meses de aluguel do imóvel onde funciona a galeria Verve, segundo Ian Duarte Lucas, sócio do espaço ao lado de Allann Seabra.
Com sete anos de trajetória e uma estrutura enxuta (além deles, são só mais dois funcionários), a casa representa artistas com perfil experimental. As obras que negocia ocupam duas faixas de preço diferentes –R$ 5.000 para os artistas iniciantes e R$ 30 mil para os mais estabelecidos.
Duarte Lucas afirma que ele e Seabra vinham participando de três feiras por ano, todas no eixo Rio-São Paulo. Este ano, planejavam fazer sua primeira incursão no exterior. Mas “agora que vamos lutar pela própria sobrevivência, todo mundo vai avaliar mil vezes antes”, diz o galerista.
“Para nós, as feiras são muito mais importantes no sentido institucional, de promover encontros com quem não nos conhece. Mas não é um lugar de fazer dinheiro”, ele afirma.
As ações adotadas pela Verve para enfrentar o período são parecidas com aquelas dos demais espaços de arte, investir mais em produção de conteúdo digital e em plataformas de venda online.
Mais efetivas, porém, têm sido as seleções customizadas enviadas aos colecionadores, priorizando os artistas jovens.
Maria Montero, da galeria Sé, também disse estar “pegando o telefone”, mas para conversar com “meia dúzia de pessoas”, detentoras de acervos que ela conhece bem. “Onde ganho mais é no olho no olho, numa relação muito próxima com os colecionadores.”
A Sé, que nasceu como um lugar de experimentação próximo à praça de mesmo nome e no ano passado se mudou para uma casa nos Jardins, vende obras de R$ 10 mil a R$ 20 mil, em sua maioria.
Montero define os artistas que representa como muito politizados e conceituais, mais ligados à pesquisa do que à produção de objetos —o que, ela sublinha, pode dificultar as vendas.
Da mesma forma que Duarte Lucas, ela diz que as feiras não vinham fazendo muito sentido financeiro, já que sua média de preços é baixa e o investimento nas feiras, alto.
Montero pensa que agora é o momento de as galerias radicalizarem. “Acho que as pessoas vão continuar a consumir arte, mas não dá para ficar nessa estrutura de aberturas, feiras. Recebo documentos em PDF e acho um porre, porque eles não têm a energia de que a arte contemporânea precisa”, diz ela.
“Vamos ter que nos repensar”, continua Montero. “É um mercado muito pequeno, muito elitista e muito pouco preocupado com os artistas e a sua sobrevivência.”
“Acabou se tornando um mercado de produção de coisas muito caras, para pessoas muito ricas”, faz coro o artista Felippe Moraes.
Com uma exposição no Rio de Janeiro suspensa por causa da pandemia, ele ressalta que há ainda outra camada de complicação na crise do coronavírus –a expectativa de diminuição dos patrocínios de museus e centros culturais no ano que vem, efeito previsível da Covid-19 na economia.
É de editais de lugares como esses, já mais escassos nos últimos anos, que ele costuma tirar a sua subsistência, e não das vendas de trabalhos, afirma Moraes. Se por aqui a crise dos museus ainda não se desenhou por completo, nos Estados Unidos, quase 1.500 funcionários foram dispensados por 11 das maiores instituições do país —Metropolitan, MoMA e Guggenheim entre elas.
Moraes ainda alerta para o perigo de galerias e instituições idealizarem a quarentena como um período de produção excepcional. É mais provável, ele afirma, que muitos artistas abandonem a profissão por causa da crise. “Vivemos a era dos curadores e galeristas. Acho que vamos ter um período de entendermos a relevância do artista”, diz ele.
É uma conscientização que já se faz notar em algumas iniciativas nascidas durante a quarentena.
Lá fora, a megagaleria David Zwirner cedeu seu endereço virtual para 12 galerias londrinas exibirem individuais canceladas por causa da Covid-19.
Por aqui, o fundo Horizontes, capitaneado por Pedro Mendes, da Mendes Wood DM, em conjunto com outras casas poderosas —Luisa Strina, Fortes d’Aloia e Gabriel e Luciana Brito são algumas delas—, além de colecionadores, curadores e artistas, busca ajudar a população mais vulnerável com vendas de obras doadas numa plataforma virtual.
No futuro, porém, a ideia é que ele atue no próprio campo das artes, com bolsas e outras ações, diz Mendes.
Se esses apelos por um mercado de arte diferente do que conhecemos ainda parecem um tanto abstratos, um projeto lançado na semana passada, batizado Quarantine, põe essas inquietações em prática.
Pensada pelas artistas Lais Myrrha e Marilá Dardot, pela crítica Cristiana Tejo e por Julia Morelli, fundadora da plataforma 55SP, a iniciativa convidou mais de 40 artistas em diferentes momentos de carreira para colaborar com trabalhos —há desde bastiões da arte contemporânea nacional, como Lenora de Barros e Paulo Bruscky, a artistas jovens, menos conhecidos.
As obras, que custam R$ 5.000 cada uma –"um preço fictício", diz Myrrha–, são compradas às cegas, escolhidas a partir do título e do autor. Então, são enviadas digitalmente e baixadas, impressas ou executadas pelos próprios compradores. A cada venda, o dinheiro é distribuído de forma igualitária entre os participantes, e partilhado com uma organização civil que atende artistas transgênero e travesti.
“Nossa pergunta é ‘o que se compra quando se adquire um trabalho de arte?’”, diz Myrrha.“O comprador precisa entender que está adquirindo um projeto. Mas não sabemos o que pode acontecer. Pode ser que ninguém queira comprar absolutamente nada.”
ARTE DA QUARENTENA
Four Flags
Pedro França, Ana Mazzei e Thomaz Rosa são alguns dos que criaram bandeiras para a fachada da galeria Jaqueline Martins, vendidas a R$ 800 cada uma, valor que é 100% dos artistas. O projeto foi criado por curadores holandeses e pode ser acompanhado no Instagram @fourflags2020
Projeto Antessala
A galeria Verve convidou artistas representados para criar instalações na sua vitrine. O primeiro foi o gaúcho João GG, que montou "Hiperobjeto". A próxima será Giselle Beiguelman
Quarantine
Mais de 40 artistas brasileiros em diferentes momentos da carreira integram o projeto. Cada obra custa R$ 5.000 e é executada pelo próprio comprador. As compras são feitas pela plataforma 55SP
'Zero'
O vídeo de Luiz Roque exibido na vitrine do espaço Pivô, no Copan, serve de prólogo para uma retrospectiva sua prevista no local