Janela, celular e museu: a Covid-19 pode reinventar a arte que consumimos?
O primeiro museu do mundo dedicado ao coronavírus reúne um acervo virtual com trabalhos sobre a pandemia Imagem: Instagram/covidartmuseum
Em meio ao surto de Covid-19, a indústria cultural também sofreu consequências, mas o vírus não impede que a arte aconteça — seja para documentação histórica ou para a construção de uma nova realidade. Com tudo em pausa e um vazio existencial preenchendo as cabeças fervilhantes, existe uma boa oportunidade de exercitar o ócio criativo, ou apenas deixá-lo falar mais alto do que as paredes.
Historicamente, epidemias, contaminações, pestes e guerras serviram de inspiração para muitos artistas. A grande diferença é que, hoje, encontramos representações praticamente imediatas à crise que se instaurou no mundo. "Esse momento de maior disponibilidade e tempo, para quem tem o privilégio e a sensatez de trabalhar em casa, traz a possibilidade de entender a arte como campo de reflexão filosófico e um encontro maior consigo mesmo", aponta a filósofa, crítica e historiadora da arte Magnólia Costa.
Em isolamento, o ator e dramaturgo Vitor Rocha sentiu tal conexão. "Eu fiquei — e ainda estou — muito chateado com todos os planos que 2020 lançou pelos ares e também passei a me questionar muito, dentre milhões de outras coisas, sobre o que eu poderia fazer agora como artista e como pessoa", disse. Foi a partir da crise desencadeada pelo novo coronavírus que ele desengavetou o projeto do filme "Sobre Todas as Coisas", que ganhou novos rumos, passando a abordar a vida em quarentena.
A novidade é que está sendo produzido à distância, com atores convidados seguindo um roteiro de cenas a serem gravadas em casa, que depois serão juntadas. "É muito complicado de fazer, mas é desafiador — e isso torna o trabalho divertido pra mim. Estou podendo pesquisar e descobrir coisas que eu sempre quis saber e nunca fui atrás", constata o cineasta.
Arte X virtualidade
A internet já vem cumprindo um papel fundamental, conectando pessoas isoladas a artistas, festivais, debates e experiências virtuais. A arte provavelmente nunca foi tão vista e compartilhada quanto agora, seja ampliando o interesse de quem vê ou apenas como forma de entretenimento.
Surgiram até galerias virtuais próprias, com acervo de trabalhos artísticos que expressam sentimentos perante os novos contornos cotidianos: o Covid Art Museum, o Museu do Isolamento Brasileiro e o acervo Artes Virais. Na Espanha, onde o coronavírus teve um dos piores números de afetados, surgiu o projeto "Covid Photodiaries", que se descreve como "uma crônica diária ao vivo sobre a pandemia". Já o Museu Sociedade Histórica de Nova York aproveita a pandemia para acrescentar itens relacionados à Covid-19 no acervo.
"Com a pandemia, fomos literalmente forçados a entrar na virtualidade. Então, não é uma revolução positiva, redentora. E ainda não sabemos como a arte vai lidar com essa natureza", aponta o professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP (Universidade de São Paulo) e curador-coordenador do Fórum Permanente, Martin Grossman. "É um momento de reflexão, para pensarmos na relação entre corpo e máquina, de entender as fronteiras entre privado e vida pública, os graus de intimidade. São coisas que entram na equação da arte como construção de conhecimento e interface."
De olho nas produções, Costa também se coloca no processo de busca por respostas ao pensar o que será da arte a partir da Covid-19. "O grande desafio, agora, é encontrar um jeito novo de fazer arte para que ela chegue até as pessoas. É pelo celular? Produzida para postar numa rede social? Não são coisas estudadas numa escola de artes, e é uma grande oportunidade", afirma a professora, lançando a mesma indagação para a literatura e o teatro.
Nos Estados Unidos, organizações sem fins lucrativos em todo o país se uniram para criar o Play At Home, plataforma que reúne novas e rápidas peças de teatro que podem ser assistidas em casa. Os dramaturgos selecionados pelos teatros recebem comissões de US$ 500.
Recentemente, a Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo criou a plataforma #CulturaEmCasa, que não apenas reúne entretenimento como também presta serviço, fazendo o licenciamento de projetos de produtores culturais de todo o Estado, gerando renda para profissionais da classe.
Alguns artistas de rua se adaptaram ao isolamento. Gleyson Pereira Borges, que comanda o projeto A Coisa Ficou Preta, abordando temas acerca do racismo e negritude por meio de intervenções urbanas com lambe-lambe, aderiu às "colagens virtuais" enquanto não volta às ruas. "Poder criar virtualmente é um caminho maneiro para não me afastar da arte, e o Instagram é um meio para alcançar as pessoas. Mas a vida acontece nas ruas. É o lambe estar no muro, resistindo"
Não é tão simples suprir os anseios humanos. Os museus vivem uma situação mais delicada porque são anfitriões — e dificilmente serão capazes de suprir, num futuro próximo, a materialidade do que apresentam. "O contato direto com uma obra de arte é insubstituível, mas totalmente mediado. Espero que possamos transpor essa barreira. Talvez seja o momento dos museus também abrirem se abrirem a propostas, dar espaço para os artistas e apresentarem um outro tipo de arte", afirma Costa.
Ao mesmo que vinham incorporando timidamente a tecnologia a seus espaços, os museus e instituições culturais revelam um grande atraso em acompanhar o tempo presente. "Virtualidade não era prioridade das instituições. Então, esses espaços já estão atrasados. Agora, não tem saída: eles terão de criar uma nova relação com seu público. Visita virtual é uma ferramenta, mas o que cada museu vai oferecer de diferente? Eu, como usuário, quero novidade, uma experiência inusitada", argumenta Martin.
Quando falamos em acesso à cultura, o debate vai além do que se vê na tela do celular. Ao mesmo tempo em que a arte se democratiza em plataformas virtuais, não escapa da desigualdade social. No Brasil há 46 milhões de pessoas sem acesso a internet, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O mundo em janelas
Existe um meio de manifestação bastante simbólico para os tempos atuais e que não depende do wi-fi: a janela. Nem todos ostentam uma bela varanda em casa, e é através dela que o público ao redor do mundo todo se encontra, se mobiliza, respira, aplaude o pôr do sol e sonha com dias melhores. Não é por acaso que a "A Noite Estrelada", quadro mais famoso do artista Vincent Van Gogh, foi elaborado a partir da vista da janela do quarto do hospital psiquiátrico onde o artista passou parte da vida.
Rocha comenta que a janela também é um elemento importante em seu filme. "Durante esse período, nossas janelas estão servindo de quadro, de tela, de tv, de portal, de telefone? As janelas são nossa única maneira segura — e não virtual — de conexão", disse.
A primeira manifestação artística que viralizou em tempos de Covid-19 aconteceu na Itália, em 13 de março. Uma animada vizinhança embarcou na melodia da música "Bella Ciao", todos cantando juntos, porém distantes a partir de suas varandas. A partir daí, a ideia se perpetuou e surgiram outras canções em coro, de hinos nacionais dos séculos passados à clássicos do rock.
Com uma pitada de voyeurismo, a fotografia de janela é outro destaque em tempos de pandemia. O fotojornalista brasileiro Victor Moriyama que o diga. Em abril, ele clicou uma foto de pessoas "reunidas" ao acaso nas iluminadas janelas do Copan. A imagem foi parar em uma matéria do New York Times. Durante o isolamento, Moriyama também investiu num projeto solidário, o "150 fotos para SP", que destina parte da renda das imagens vendidas a projetos sociais.
Pelas janelas, também temos testemunhado o videomapping — que está em alta como meio de expressão durante a pandemia. As projeções em vídeo compartilham imagens e mensagens em grandes proporções, passando por palavras de conforto, declarações de amor e homenagens. "As coletividades se fortaleceram muito na pandemia, e a arte está mantendo as pessoas sãs em casa. A gente já projetou uma mensagem que dizia: isso não é distanciamento social, é distanciamento físico. As pessoas ainda se amam", pontua o artista plástico Mozart Santos, que atua como VJ em Recife.
Não demorou para que Santos percebesse que a quarentena não estava funcionando em seu bairro, no subúrbio da cidade. A partir disso criou, ao lado de Filipe Spencer e Bruna Rosa, o Projetemos, formando uma rede de VJs que envia mensagens à população. "Já que eu não posso sair de casa, a luz do meu projetor pode sair pela janela. É assim que emitimos informação e arte-educação para combater o coronavírus e contrapor o maior antagonista do Brasil".
Assim, as janelas também viraram palco para o ativismo. As projeções escancararam, na fachada de edifícios, a insatisfação popular contra o presidente da República, Jair Bolsonaro, e outras mazelas do Brasil, como denúncias contra a violência doméstica — que, durante o enclausuramento, subiu 44,9% apenas em São Paulo.
Dentro das crises políticas, surge no trabalho do francês Thierry Geoffroy uma pergunta crítica, que soa familiar e urgente aos brasileiros: "uma democracia frágil pode sobreviver à pandemia?".
Epidemias sempre mudaram os rumos da história. A expectativa agora é de que haja, também, uma ruptura com o status quo da arte. "Atitudes de contenção e resistência ao desmantelamento vergonhoso da cultura têm tido poucos espaços", aponta Costa. "Uma sociedade que não respeita seu lugar de origem e não conhece sua identidade está condenada ao desaparecimento. Mas o que vem por aí é uma coisa tão inédita, que o mundo terá que se reinventar. A humanidade não chegou até aqui pelo amor, foi pela dor".