Inaugurando o Coronaceno
As coisas são relativas. “Antigamente” costumava se referir a uma década passada, a um século passado. Mas agora fevereiro último se tornou “antigamente”. Fevereiro parece agora tão remoto quanto a antiga Atenas ou a Idade Média. Afastou-se de nós numa velocidade absurdamente surpreendente. O que aconteceu? Estamos vivendo, sem dúvida, um momento de crises. Mas em poucas semanas essas crises se multiplicaram a tal ponto que envolveram o planeta inteiro, a Humanidade inteira, todos os povos, todas as pessoas. Isto não é mais uma crise. Ou seja, a soma das crises não é somente uma crise grande, um “crisão”
Uma crise é sempre um espasmo: começa, acentua e depois atenua. Porém, quando se tem essa multidão de crises simultâneas, trata-se de uma mutação — quer dizer, o mundo daqui pra frente será outro. O mundo até começo de março era um, em meados de março começou a mudar, hoje, abril, é outro mundo. Aquele mundo em que vivíamos não vai existir mais, já não existe mais. O estar-no-mundo quotidiano, o dia a dia das pessoas, a organização da sociedade, tudo isso se tornou outro. Por sinal, crise vem do grego krysis — escolha árdua, decisão difícil. A crispação que é a crise envolve precisamente a dificuldade ingente de escolher entre alternativas. Porém, a questão de fato é: a escolha tem de ser feita.
A mutação, quando ocorrida, traz escolhas difíceis — mas indesviáveis, obrigatórias, necessárias. Ora, os antigos sábios chineses perceberam com clareza — e registraram num ideograma célebre — que toda escolha, se traz dificuldades, também indica caminhos, insinua oportunidades. É por ser necessário escolher que novos rumos serão seguidos, que novos Amanhãs serão construídos. Isto é, não é porque se queira, ou porque é filosoficamente bacana lembrar da sabedoria chinesa — é porque a decisão tornou-se absolutamente necessária. Não viveremos mais como nossos pais; não viveremos como nós vivíamos há pouco mais de um mês.
Por quê? Porque, como disse o poeta pernambucano Caio Lima, o Antropoceno, a nova era geológica da Terra, é pandemia. A pandemia, que é a epidemia não confinada a um local geográfico, mas aquela que se expande e rapidamente alcança todas as regiões, como uma coleção de surtos simultâneos distribuídos por toda parte, bem, isso é um sintoma do Antropoceno. Expressa o fato de que atividades humanas ingressaram em reservatórios naturais, até então intocados, de germes. Uma das características da expansão planetária das sociedades humanas que marca o Antropoceno é justamente a progressiva alteração dos ambientes naturais, em particular no que respeita à diversidade de espécies.
Ao colocar em contato grupos humanos com portadores de germes até então estrangeiros, as transformações ambientais induzidas pelo crescimento incessante das atividades econômicas fomentam a transmissão desses germes para pessoas — e, dadas as circunstâncias certas, um vírus vai encontrar um novo campo para operar, converter-se em patógeno para os humanos, e uma nova doença começa a se propagar. A pandemia, portanto, é diretamente ligada a um dos fatores que definem o Antropoceno, a época dos humanos.
Talvez se possa dizer, então, que estamos hoje vivendo uma fase do Antropoceno — vamos chamá-la, por que não?, de Coronaceno — assinalada por um surto global de uma variedade de coronavírus. O que isso significa, e o que virá a seguir? A História mostra com clareza que passaremos a conviver com o corona. O que vem a seguir, assim, não é o depois do corona, é o depois com o corona. Nenhuma gripe acabou; simplesmente, as gripes passaram a fazer parte de nossas vidas, e também o corona deverá acabar por ser assimilado, como tantos milhares de outros patógenos. A duração do processo de assimilação, porém, é ainda muito incerta, pois depende tanto do vírus mesmo quanto de nosso sistema imune, e também das iniciativas terapêuticas e das políticas de saúde pública que vierem a ser aplicadas.
Qual a perspectiva imediata? Como passaremos a viver com o corona? Durante um prazo que se estima entre um e dois anos — as coisas correndo bem — o que deve ocorrer é que seja ultrapassado o primeiro impacto e comecem a ocorrer ressurgências locais, não mais planetárias. E as tecnologias aprendidas no surto pandêmico global serão então aplicadas a estes locais ou regiões específicas onde suceda a recorrência.
Se, por exemplo, ocorrer um novo surto em uma dada cidade, então as práticas de quarentena e isolamento físico, bem como o reforço dos sistemas de saúde, deverão ser aplicadas até que a situação seja debelada. O controle da movimentação das pessoas a partir dos telefones celulares mostrou eficácia em restringir contatos entre pessoas sãs e portadores, muitas vezes inadvertidos, do vírus. Por um lado, pode ser uma técnica útil no enfrentamento da crise sanitária, mas, por outro, suscita graves preocupações quanto às liberdades democráticas e à privacidade individual, se continuada após o surto. Escolhas difíceis: é o que nos cabe nesse momento.
A expectativa é a de que em cerca de dois anos esteja disponível uma vacina segura e eficaz, e nesse ínterim sejam desenvolvidos tratamentos que ajudem a controlar os efeitos da doença. Contudo, é fundamental compreender que outras pandemias virão. Ocorrendo as mesmas causas, devem-se esperar as mesmas consequências. Os cientistas já advertem: ecossistemas de grande biodiversidade — como a Amazônia — e submetidos a exploração predatória e descontrolada — como a Amazônia — são fontes potenciais de novos surtos. O conhecimento científico precisa ser a base para que medidas preventivas indispensáveis sejam adotadas e possamos nos adaptar à convivência com o novo vírus (e suas mutações).
A mudança mais profunda que aí vem, todavia, deverá incidir sobre a imagem que as próprias sociedades têm sobre si mesmas. Entendíamos como “realidade normal”, até a interrupção abrupta determinada pela pandemia, uma coletividade feita de seres humanos atomizados. Ou seja, eu me defino exclusivamente a partir de mim mesmo, das escolhas que faço, das posses que tenho. Eu sou um átomo, você é um outro; a sociedade se constituiria a partir de choques ou encontros destas unidades atomizadas. Mas a evolução e a História nos mostram sem qualquer dúvida que esta é uma imagem inteiramente equivocada do que é a sociedade humana. É uma fabricação recente, uma forma de subjetivação redutora que visa tão somente manter e aumentar a desigualdade na distribuição de bens, recursos e poder entre grupos sociais.
O impacto do coronavírus veio, assim, nos alertar sobre a necessidade de mudar essa percepção enviesada do que é ser humano — e, paralelamente, do que é a natureza de que somos parte. Bem diferente do que sugere esse atomismo individualista e pretensamente autossuficiente, só somos as pessoas que somos porque pertencemos a um corpo social, e estamos integralmente imersos, em todas as dimensões, no ambiente natural que nos abrange e nos constitui.
A sociedade não é feita de entidades prontas e acabadas. Ao pertencer à sociedade ela me constrói tanto quanto eu contribuo para construí-la. Em consequência, isso significa que a imagem do individualismo radical como fundamento da sociabilidade deverá ser substituída por razões práticas, isto é, econômicas e ecológicas, pela associação cooperativa. Que, na História, foi sempre o que funcionou. Só há sociedade, de fato, porque há, de variados modos e em diversas instâncias, cooperação. Hoje, a urgente questão de saúde pública trazida pela pandemia deixa muito clara esta dimensão propriamente coletiva de nossa existência. Nossas ações seriam assim guiadas não mais pelo proveito pessoal e pelo privilégio de poucos, mas pelos princípios éticos da compreensão e da colaboração coletivas.
É de esperar que um tal deslocamento do individualismo radical para a colaboração ativa como dimensão essencial na constituição e operação do corpus público venha a ser o elemento central de uma imensa transformação de nossa visão de mundo. Possivelmente, será vivida como a saída de um transe, como um despertar coletivo após décadas de entorpecimento geral.
Como o grande biólogo Stephen Jay Gould observou, objetivamente a História não é feita das ações de uns tantos grandes nomes como Júlio César, Alexandre, ou Napoleão (em geral, grandes assassinos), tal como temos o costume de resumi-la. O tecido real da vida, afirma ele, são as dez mil pequenas gentilezas que todos os dias, silenciosamente, inconscientemente, oferecemos uns aos outros: uma mãe atendendo a seu filho, um amigo estendendo a mão ao outro, um transeunte socorrendo a um perfeito desconhecido.
Quem sabe, como um efeito colateral imprevisto da tragédia do corona, venha a se tornar transparente para todos nós esse entendimento basal: eu só sou porque você é, eu só sou porque todos nós somos. Minha saúde não é só minha, é também sua pra poder ser minha. Se essa mudança de diretriz ética de fato vier a emergir em toda a sociedade, teremos um autêntico terremoto nas estruturas políticas atuais — e um novo mundo talvez comece a nascer.
À guisa de conclusão, uma noção que talvez possa orientar as perspectivas que o Museu do Amanhã venha a traçar nestes primeiros dias de Coronaceno é a da resiliência, como forma de resistência ativa. Vejam: a pedra resiste ao fluxo da corrente, imóvel, rígida. Por isso, a pedra não aprende, não se adapta, não evolui. Já o bambu, quando muda a direção do vento, se flexiona, se inclina, ondula. Ele é firme, mas é flexível. Esta resiliência criativa, do que resiste, mas investe, do que permanece, mas se transforma, do que recebe o golpe, mas o transforma em um novo movimento; essa é a perspectiva que devemos procurar empreender. Tendo como cerne firme, como fibra, esse ideal da solidariedade, do compartilhamento, e da colaboração, para que possamos atender pessoas que não conhecemos, só por serem pessoas, só por serem o que somos, e dividir com elas o espírito e a força que pulsam no âmago de nossa branca catedral de ideias e sonhos. E compartir com elas uma imaginação amorosa — a de que ali haverá, todos os dias, dez mil, vinte mil, cem mil pequenas gentilezas à nossa espera. Todos os dias.