Durante e após a pandemia, a cultura poderia ser parte da solução
Mariluce Mariá, que coordena oficinas de pintura no projeto Favela Art no Complexo do Alemão, está arrecadando e distribuindo alimentos: ações locais merecem ser estimuladas Foto: Gustavo Stephan
Se as políticas para o setor tivessem sido mantidas e desenvolvidas, o poder público e a sociedade teriam à sua disposição um instrumento poderoso
A perspectiva da crise econômica tem sido até agora o tema primordial dentro da agenda pública da cultura no período de pandemia. Através de abaixo-assinados, vídeos e manifestos, artistas, associações e realizadores têm cobrado do poder público ações concretas que possam proteger a renda do setor. É uma preocupação legítima, claro, mas o que essa circunscrição à pauta econômica revela é uma compreensão limitada por parte da sociedade, e por vezes dos próprios agentes artísticos, do potencial da cultura para contribuir na construção de soluções frente à maior crise de saúde que enfrentamos em quase cem anos.
Um ponto nevrálgico para esse debate de uma agenda ampla da cultura passa, necessariamente, sobre os próprios avanços que o Brasil produziu nesse setor. Especialmente a partir de 2003, com as inovações da gestão de Gilberto Gil no então Ministério da Cultura. E sobre aquilo que Gil em seu discurso de posse denominou de a dimensão cidadã da agenda cultural, que, ao lado da dimensões econômica e simbólica, formaria os três vetores que orientaram a atuação do ministério.
Essa dimensão cidadã foi materializada pelo programa dos pontos de cultura (Cultura Viva). Ela consiste em um programa com foco na descentralização das condições estruturais para produção cultural. Assim, o estado abandonaria a ideia de levar cultura para territórios populares e periféricos. E passaria a oferecer meios para que os mais distintos grupos sociais pudessem criar ações no campo cultural.
Os resultados têm efeitos multiplicadores diversos. Em relação à dimensão simbólica da cultura, ela contribui de forma efetiva ao investir na enorme pluralidade de manifestações marginalizadas por lógicas de mercado. Na dimensão econômica, ela tem ainda o potencial de dinamizar cadeias tangenciais da economia territorial.
Mas é sobre o impacto dessas políticas no tecido social que deveríamos nos debruçar para compreender o papel que a cultura poderia desempenhar no cenário de crise. Uma série de pesquisas recentes sobre cidades demonstra que territórios com agenda de ações culturais contínuas criam melhores condições de segurança e de índices econômicos. Além disso, na ausência de instituições do estado, a cultura pode ser um elemento fundamental de mediação social. Diagnósticos sobre condições sanitárias, articulação com equipamentos de assistência social, entre outros, são resultados já comprovados que as políticas de descentralização conseguem produzir. Ao engajarem atores sociais diversos nesses programas, esses pontos e ações de cultura passam a produzir retratos sociais importantes de distintas realidades.
Em um momento em que o estado brasileiro demonstra uma grande dificuldade de compreender os desafios específicos de cada região para reduzir os impactos sociais da crise, é impossível não imaginar o quão decisiva seria a atuação de milhares de pontos de cultura, ou ações similares, caso não houvesse ocorrido o desmonte de programas construídos sob essa perspectiva. O poder público e a sociedade civil teriam à sua disposição um retrato criterioso da situação da crise social produzida pelo vírus, assim como poderiam utilizar essa enorme e qualificada rede como um instrumento para produzir políticas de assistência e cuidado.
Um parâmetro exemplar, em um sentido similar ao que a cultura poderia oferecer, tem sido a atuação de organizações da sociedade civil que têm demonstrado capacidade de construir soluções para falta de renda e de assistência em geral. Em diversos territórios periféricos brasileiros, como, por exemplo, no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, em Paraisópolis em São Paulo e no chamado “território do bem” na grande Vitória-ES, são grupos que já possuem ações contínuas sociais ou culturais que demonstram ter essa capacidade de chegar na ponta com soluções. Em escala nacional, chama muita atenção o papel que a Central Única de Favelas (Cufa) tem desempenhado ao montar uma enorme estrutura de logística e assistência. Por ter um conhecimento ímpar das respectivas realidades no contexto das favelas e periferias, a Cufa se tornou ainda um mediador privilegiado para doações de grandes grupos econômicos chegarem à população necessitada.
Desde que se iniciou o processo de criminalização da cultura por parte de certos grupos políticos no Brasil, o que se desdobrou no desmonte dessas políticas e do próprio ministério, alguns setores da cultura reduziram seu discurso ao números sobre empregos, PIB, impostos e outros índices. Essa perspectiva é estratégica no sentido de sensibilizar a sociedade.
Mas o que caberia perguntar — para além do “cadê Regina Duarte?”, que ecoa nas redes sociais como forma de denunciar o absurdo descaso do governo federal com os trabalhadores desse campo — é qual a agenda pública do setor cultural no Brasil do século XXI? É claro que a resposta não passa por uma sentença superficial de defesa do seu papel social nem econômico. A cultura, espaço de práticas artísticas e estéticas, implode qualquer tentativa de sua circunscrição a apenas uma ou duas dimensões. Mas seria um passo enorme, no sentido de compreendermos o potencial das políticas de cultura para o desenvolvimento do país, entendermos que estas, quando direito de todos, passam a ser também um instrumento poderoso para a solução de muitos dos problemas que o país enfrenta.
*Miguel Jost é professor e pesquisador de políticas públicas para a cultura
Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/durante-apos-pandemia-cultura-poderia-ser-parte-da-solucao-24404952