Curadores do todo mundo imaginam como voltar a nos reunir para a arte
A trienal de arte Prospect New Orleans, que aconteceria em outubro, foi adiada para o ano que vem. O mesmo vale para a Bienal de Liverpool. A Bienal de São Paulo foi adiada por pelo menos um mês. A Bienal de Dakar ainda não definiu suas novas datas. A Front International, de Cleveland, decidiu abandonar 2021 inteiramente, e volta em 2022.
A crise do coronavírus pôs em questão o futuro pós-pandemia das bienais de arte contemporânea (e suas primas, as trienais e quadrienais). De 43 mostras desse tipo que aconteceriam em 2020, cerca de 20 foram adiadas, até agora, de acordo com um cômputo da Biennial Foundation, e novas mudanças de calendário parecem quase certas. A Bienal de Sydney começou em março e ficaria em cartaz por três meses —mas se viu forçada a fechar depois de dez dias.
“Uma bienal é um campo de testes”, disse Defne Ayas, curadora da Bienal de Gwangju, na Coreia do Sul, em parceria com Natasha Ginwala. A mostra sul-coreana continua a se preparar para uma abertura em setembro.
Mas o campo de testes está passando por um teste.
A ideia das exposições internacionais de arte vem florescendo pelo menos desde a criação da Bienal de Veneza, em 1895, mas nas duas últimas décadas elas proliferaram de modo especialmente intenso, quando o mundo da arte se tornou global.
Agora seu destino está sendo vinculado aos hábitos culturais e, com eles, à indústria cultural que emergirão da pandemia. A crise também ameaça as feiras de arte, propelidas pelo mercado, que enfrenta grandes incertezas, e o ecossistema mundial de oficinas e residências artísticas que se tornaram vitais para as carreiras dos artistas.
Mas a premissa das bienais é distintamente cosmopolita e cívica. A aposta é que misturar artistas, visitantes de fora da cidade e o público local —grandes bienais atraem até meio milhão de visitantes— em torno de um tema que busque interpretar o mundo beneficiará todos os envolvidos e ajudará as cidades a criar perfis culturais de maior destaque.
Algumas bienais estão sendo adiadas por até um ano. Outras esperam cumprir seus cronogramas, ao menos em termos de audiência local. E ainda outras estão solicitando novos projetos especificamente para exibição online.
A questão subjacente é se o modelo das bienais continuará a fazer sentido no mundo pós-pandemia.
O que acontece a uma feira de arte pode não ser grande prioridade, agora, nos lugares devastados pelo coronavírus —por exemplo Nova Orleans, onde a doença matou centenas de pessoas, entre as quais alguns dos luminares da cultura local. E, mesmo depois da pandemia, esse tipo de evento pode demorar a recuperar a importância.
“Estamos passando por algo que nunca tínhamos visto”, disse Manuela Moscoso, curadora da Bienal de Liverpool, em parceria com o diretor artístico Fatos Ustek. “O coronavírus chegou em diversas ondas; primeiro o vírus, e depois todas as diferentes compreensões sobre o que ele significa.”
Algumas semanas atrás, no momento em que as viagens começavam a ser suspensas, conversei com os curadores e diretores artísticos de sete bienais que aconteceriam em 2020, em cinco continentes, para me informar sobre as implicações da pandemia e o que ela punha em jogo para a profissão deles.
Todas tiveram de interromper abruptamente suas vidas em geral itinerantes. Ayas, por exemplo, é turca e vive em Berlim. Moscoso é equatoriana e estava vivendo na Cidade do México antes de se mudar para Liverpool com sua família, para o projeto da bienal. Mas, quando conversei com eles, todo mundo estava em alguma forma de confinamento.
“Passamos algumas semanas em estado de choque”, disse Bonaventure Soh Ndikung, que é camaronês, vive em Berlim e trabalha como diretor artístico da mostra Sonsbeek, na Holanda.
Mas, com seus eventos em risco —todos eles envolvem artistas, público e parceiros do setor privado nas cidades anfitriãs e logísticas complicadas—, os profissionais das bienais não podiam parar para esperar o fim da crise.
Uma abordagem é seguir em frente. As autoridades municipais de Yokohama, no Japão, estão ansiosas por não adiar a abertura da trienal, marcada para 3 de julho, embora a região esteja em estado de emergência. A edição de 2011, pouco depois do desastre nuclear de Fukushima, teve um grande público e talvez tenha desempenhado um papel terapêutico.
“Eles sentem que, quando as pessoas passaram por uma experiência intensa, na qual as ansiedades sobre a mortalidade e o significado da vida ganham importância, é comum que se voltem à arte”, disse Monica Narula, do Raqs Media Collective, o grupo sediado em Nova Déli que responde pela curadoria do evento deste ano.
A exposição planejada é grande e muito diversa, o que é costumeiro, com 65 participantes entre os quais destaques como Nick Cave e Korakrit Arunanondchai, astros emergentes como Farah Al Qasimi ou Lebohang Kganye, além de 13 artistas japoneses. O título da mostra é “Afterglow”, uma referência ao ruído branco, à radiação e a como viver em meio à destruição e à toxicidade.
Narula e seus colegas, Jeebesh Bagchi e Shuddhabrata Sengupta, enfrentam a estranha perspectiva de dirigir o processo remotamente e de chegar atrasados à exposição que eles mesmos montaram –como acontecerá decerto a muitos artistas e peças. A ideia é de que a mostra vá crescendo ao longo do terceiro trimestre e que esteja completa até a data marcada para o fechamento, em outubro.
A Bienal de São Paulo também está indo em frente, com um adiamento de apenas um mês: ela agora tem abertura marcada para outubro, disse Jacopo Crivelli Visconti, o curador, que é italiano e vive na metrópole brasileira.
Realizar o evento representava um símbolo forte, ele disse, de combate à postura de oposição à cultura do presidente Jair Bolsonaro, e agora ainda mais, para ajudar na cura depois da pandemia.
A bienal atrai uma grande audiência local, e a esperança é atender às expectativas do público, com obras exibidas em 24 locais espalhados pela vasta cidade, uma distribuição que os profissionais do mundo da arte —caso consigam chegar lá para a semana de abertura— mal seriam capazes de absorver inteiramente.
Muitos dos artistas que participarão da mostra coletiva também realizarão mostras individuais. E algumas das exposições incluirão trabalhos históricos, e não apenas contemporâneos, para criar pontos de referência. “Isso pode servir como porta de entrada para uma grande audiência”, disse Visconti.
São Paulo está bem adiante dos demais estados brasileiros em número de casos do coronavírus, e Visconti reconheceu que as perspectivas da bienal são fluidas. O programa será improvisado, em parte. “Estamos abordando a mostra toda como um ensaio.”
Em lugar de abraçar a incerteza, outras bienais estão optando pela clareza do adiamento. Mas, com isso, vem a responsabilidade de produzir uma mostra que seja não só visitável mas também relevante, depois da pandemia, e possivelmente em meio a uma depressão econômica.
“Depois do que estamos experimentando, não é possível criar uma exposição que simplesmente tente ignorar todo o acontecido”, disse El Hadji Malick Ndiaye, diretor artístico da Bienal de Dakar, que deveria começar no final de maio. “Mas não faz sentido realizar uma exposição que seja só sobre a pandemia, tampouco.”
Em Nova Orleans, a trienal Prospect está trabalhando com outros grupos a fim de obter recursos e proteger os empregos no setor de arte ameaçados pela crise, disse Nick Stillman, o diretor do evento.
Oito dos 51 artistas e coletivos que participariam da mostra são de Nova Orleans, e outros estão preparando projetos sobre a cidade. Naima Keith e Diana Nawi, as curadoras, disseram que convidaram todos os artistas a repensar seus projetos, se assim quiserem.
Era cedo demais, disseram, para saber como o programa final refletiria a nova situação —tanto em Nova Orleans quanto no mundo mais amplo.
“O ano que vem será um ano de ouvir e de trabalhar com as pessoas em campo”, disse Nawi. “Seguimos o exemplo delas. Nova Orleans é uma cidade que sobreviveu a muita coisa.”
“Um benefício de adiar é que isso nos dá tempo”, disse Keith. “Tempo para compreender o que significa estar recolhido, ter distância social, e como a sociedade está reagindo.”
Mas as mudanças na maneira pela qual as bienais são realizadas já estavam fervilhando. A pandemia pode ter o efeito de acelerá-las, com as mostras abandonando o formato convencional de uma semana de abertura reluzente seguida por uma programação menos frenética espalhada pela cidade.
Para a mostra Sonsbeek, que aconteceu em intervalos irregulares desde 1949, no parque da cidade de Arnhem, na Holanda, mas agora segue um cronograma quadrienal, o que existe é um “processo público continuado” com o grupo principal em cartaz o tempo todo e eventos-satélite em outros países, bem como um forte componente online que enfatiza o rádio.
O título da mostra é “Força Tempo Distância” —a fórmula científica de calcular trabalho—, e os participantes foram convidados a apresentar projetos sobre trabalho, condições de trabalho e sobre o emprego. No ano que transcorrerá até a abertura postergada da mostra física, Ndikung planeja projetos em áudio sobre temas que a pandemia tornou importantes: trabalhar de casa, os trabalhadores da saúde, os trabalhos que devem ser considerados essenciais. Ele formou parcerias com estações de rádio em diversos países e espera transmitir programas de locais como barbearias.
A abordagem é tanto mais digital —o programa de filmes online também será reforçado— quanto mais local, com atividades em pequena escala em múltiplas cidades, entre as quais Arnhem, em colaboração com organizações comunitárias e livrarias.
Mas ainda assim, disse Ndikung, era vital que acontecesse uma reunião internacional em torno do ponto central de exposição. “Todos estamos planejando tendo em conta o fato de que essa coisa terminará um dia”, ele disse sobre a crise.
Mas, mesmo que uma vacina ponha fim ao contágio pela Covid-19, há uma sensação de que os hábitos mudaram em definitivo.
“Todos sabíamos que devíamos viajar menos”, disse Visconti, de São Paulo. “Sabíamos que existia a necessidade de ser mais local – não só na arte mas em tudo”.
Mas a ideia de eventos artísticos insulares, nos quais o intercâmbio internacional aconteça só online, contradiz o o impulso cosmopolita e de polinização cruzada das bienais.
“Os estrangeiros têm a função de conectar as pessoas locais a outras pessoas locais”, disse Ayas, apontando que alguns artistas sul-coreanos que ela e Ginwala selecionaram para a Bienal de Gwangju são pouco conhecidos em seu país.
“Seria estranho só ter acesso a outros contextos, culturas e formas de ser por meio de telas”, disse Ustek, o diretor da Bienal de Liverpool. “Ainda acredito na dimensão física do encontro.”
Já Ndikung, por exemplo, acha aceitável que as bienais sejam descartadas, se deixarem de cumprir seu propósito.
“Nem ligo”, ele disse. “O que importa é se as pessoas ainda podem fazer arte. Se as pessoas ainda podem se expressar. A bienal é só um recipiente. Se não tivermos a bienal, teremos alguma outra coisa.”
Tradução de Paulo Migliacci