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Mesa 2 - Nicolas Antoine Taunay e o sol do Brasil / Cultura visual e os usos da imagem na América Latina

Relato por Maria Antonia Couto da Silva

- Nicolas Antoine Taunay e o sol do Brasil

 

A historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz é professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e possui várias publicações sobre o século XIX no Brasil, entre estas “Retrato em Branco e Negro – Jornais, Escravos e Cidadãos em São Paulo de Finais do Século XIX”; “O Espetáculo das Raças – Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil do Século XIX;  “Raça e Diversidade”; “Negras Imagens”; “As Barbas do Imperador – D. Pedro II, um Monarca nos Trópicos” e “A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis”. Ela vem dedicando-se há cerca de oito anos ao estudo do artista Nicolas Antoine Taunay (1755-1830) e foi a curadora da exposição “Nicolas-Antoine Taunay no Brasil: uma leitura dos trópicos”, realizada no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, entre maio e setembro de 2008[1]. Neste ano coordenou o catálogo da exposição e publicou ainda o livro O  Sol do Brasil Nicolas-Antoine Taunay e seus trópicos difíceis”. Esta exposição foi muito importante para o conhecimento da arte do século XIX porque pela primeira vez foram reunidas no Brasil as obras do artista de sua primeira formação ainda em Paris (1755-1784), de sua passagem por Roma (1784-1787), além das obras criadas em sua estada de cinco anos no Rio de Janeiro (1816- 1821) e as que foram realizadas após seu retorno a Paris, em 1821[2]. A palestra da autora relacionou-se ao enfoque privilegiado na exposição em que buscou relacionar a produção de Taunay com o contexto político e filosófico em que sua obras foram produzidas.

Na historiografia tradicional da arte do século XIX no Brasil é enfatizado o papel  de Debret como pintor da Corte, e o de Taunay, como paisagista. Lilian Schwarcz procurou romper um pouco com esta distinção, mostrando como ambos procuraram praticar as duas perspectivas : a etnográfica (o registro visual) e a paisagem.

Entretanto, a experiência de Taunay junto à colônia portuguesa não foi positiva e Lilian Schwarcz destaca que Taunay estranhou o que viu nos trópicos: o ambiente tacanho e a falta de projetos artísticos.  Para ele “o sol do Brasil era irritante, o céu do Rio de Janeiro era absolutamente artificial e não cabia em sua paleta e os verdes das florestas eram totalmente excessivos”.

 

“Há lugar para todo mundo”

 

Taunay era proveniente de uma tradicional família de pintores franceses, estudou em Roma voltou-se à pintura de paisagem idealizada de Claude Lorrain e Poussin, além de manifestar interesse também pela pintura holandesa.

Entre 1788 e 1790, Taunay esteve em Paris e vivenciou a França revolucionária. A autora procura compreender a produção de Taunay a partir do contexto artístico, político e filosófico francês em que o artista trabalhou, de seu convívio com Rousseau e a vivência da Revolução Francesa.

Taunay foi um intérprete da Ilustração, leitor de Diderot. Voltou à França após a tomada da Bastilha, presenciando a revolução cidadã e as festas públicas. Schwarcz lembra que no início sua reflexão sobre Taunay foi compartilhada com Elaine Dias, que integrou a equipe de curadoria da exposição[3].

 A análise da obra “Teatro da Loucura” (s.d., duas versões: uma no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e outra no Museu do Louvre, na França) na qual figura, no alto da porta à direita, a frase “Há lugar para todo mundo”, norteia a análise de parte da produção do artista. No verso de outro quadro do período francês Taunay escreve “com certeza não há lugar para todo mundo”. 

Ele pintou a rua, onde havia lugar para todos, e as festas do período revolucionário. Interessa-se pela “vida que acontece nas ruas”, como no quadro “Festa da Liberdade” (1790, col. part.), no qual podemos observar que a guerra aparece no plano de fundo, e em primeiro plano o observador pode ver o povo reunido. Em detalhe, no primeiro plano, observamos que em um mesmo prato comem um gato, um cachorro e um galo. Schwarcz enfatiza que a idéia de igualdade na natureza era um tema caro a Rousseau.

 

Taunay, pintor de história

 

Durante o período do terror Taunay se afasta de Paris e vive em Montmonrecy, propriedade de Jean-Jacques Rousseau. Durante o período em que vive na França napoleônica viu-se obrigado a produzir telas históricas  monumentais. Podemos perceber, entretanto, como o artista manteve um olhar anedótico e  atento aos pequenos acontecimentos cotidianos.

O quadro “Entrada de Napoleão I em Munique, à frente do exército francês”, de 1806, (Museu de Versalhes), recebeu críticas em relação à representação do exército francês. A luz converge para as crianças e os cachorros e para o grupo de pessoas que inclui um judeu, um escravo negro e um menino de feições incomuns.

Já na obra “Passagem de Guadarrama” (1808, Museu de Versalhes) o pintor, em lugar do caráter heróico da batalha, leva a pensar sobre o sofrimento dos animais e dos homens durante a guerra. O mesmo enfoque é retomado no quadro “Exército francês em Saint-Bernard” (1800, Museu de Versalhes), em que a guerra é representada em um momento de intervalo e o olhar do espectador dirige-se para o soldado ferido. A autora indaga como esse pintor de família liberal percebe o contexto social brasileiro, onde exista a escravidão e “não havia lugar para todo mundo”.

 

A paisagem do Brasil

 

Taunay recebeu poucas encomendas no Brasil, e pintou principalmente paisagens. Em mais de 20 telas conhecidas desse período, em nenhuma deixou de registrar a escravidão. Na análise da autora, em suas telas “os escravos estão sempre trabalhando e os nobres sempre descansando”. Taunay realiza assim uma denúncia sutil da escravidão no Brasil, que pode ser observada em detalhes de várias telas como aquelas que apresentam a Igreja da Glória, no Rio de Janeiro [Fig. 1].

O pintor apresenta em várias obras paisagens arcádicas, nas quais também pode ser destacada a perícia na representação dos animais. Já na seqüência dos comoventes retratos presentes na exposição “Nicolas-Antoine Taunay no Brasil” podemos perceber a proximidade da obra de Taunay com a pintura de retratos do século XVIII francês, em relação à escolha formal.

Lilian Schwarcz apresentou assim em sua palestra uma leitura da obra de Taunay em que são destacados aspectos políticos e filosóficos até então pouco comentados pela historiografia no Brasil acerca de sua produção. Para a historiadora, na produção de Nicolas-Antoine Taunay a questão da igualdade permanece sempre presente, como uma utopia.

 

- Cultura visual e os usos da imagem na América Latina

 

A persistência das imagens

 

Em seguida ocorreu a palestra da professora Laura Malosetti Costa, pesquisadora de História da Arte e da Cultura na Universidade de Buenos Aires. Ela é autora do livro “Los primeros modernos: Arte y sociedad en Buenos Aires a fines del siglo XIX”.[4] A autora vem se dedicando há bastante tempo ao estudo da arte na Argentina em fins do século XIX e início do século XX.

Nesta palestra ela trata de imagens da crise ao invés de analisar a crise das teorias ou das imagens. Aborda o tema do poder daquelas imagens que persistem na memória, que não são esquecidas e que, ao longo do tempo, adquirem novos poderes.

Malosetti Costa cita como referência historiadores que se dedicaram à análise de imagens da América Latina, como Serge Gruzinki, no livro “A guerra das imagens”[5], no qual analisa uma série de discursos acerca das imagens sacras do México colonial.  Menciona também intelectuais como Aby Warburg e Rudolf Wittkower, que estudaram a transmissão cultural ao longo do tempo.

A autora parte da premissa de que o poder de uma imagem está na própria imagem, e analisa a fortuna crítica, as reapropriações e significações de uma obra que está “no coração da tradição artística argentina”: o quadro ”Sin pan y sin trabajo” (Sem Pão e Sem Trabalho), de Ernesto de la Cárcova (1892/1892), pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires, Argentina[6] [Fig. 2].

 

“Sem Pão e Sem Trabalho

 

Nesse quadro o pintor trata de uma questão social, representa um casal em um ambiente humilde, que observa pela janela o piquete na fábrica diante de sua residência. 

Ernesto de la Cárcova retornara à Argentina aos 28 anos, após um período de estudos artísticos na Itália. Trouxe consigo vários esboços que foram terminados em Buenos Aires, intitulados “Sem pão e sem trabalho” ou “A Greve”, e que ele expôs naquele mesmo ano no salão de Buenos Aires. O tema destas obras era comum nos salões de arte do período e na pintura de caráter social do fim do século no contexto europeu, influenciada pela literatura de  Émile Zola.

A autora comenta que ao observarmos os esboços e a versão final do quadro “Sem Pão e Sem Trabalho” podemos notar a mudança de foco conferida pelo artista, que destaca a cena exterior, enfatizando as mãos tensas do trabalhador que afasta a cortina para ver os soldados, criando a cena simbólica e não anedótica.

O pintor era ligado ao Partido Socialista em Buenos Aires. Um dado interessante em relação à fortuna crítica desta obra, é que foi exposto em 1894 no Salão do Ateneu, local freqüentado por intelectuais e pessoas das classes abastadas de Buenos Aires, mas também importante para a legitimação da carreira do artista, recém-chegado da Europa. Por ocasião desta exposição, as dimensões políticas não foram valorizadas, conforme as críticas apontadas por Malosetti Costa.

 Em 1896, o pintor e crítico Eduardo Schiaffino (1858-1935)[7], conseguiu levar adiante o projeto de fundação do Museu Nacional de Belas Artes, em Buenos Aires, tornando-se seu primeiro diretor. Em outubro de 1900, a seu pedido, Ernesto de la Carcova vendeu o quadro para o recém fundado museu.

O quadro é apresentado, entre outras obras, na Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos, em 1904, e teve boa repercussão. Do ponto de vista da crítica, entretanto, ao retornar a seu país, sua obra foi vista como acadêmica, submetida às regras do naturalismo, ou seja, conservadora, do ponto de vista formal. O quadro continuou exposto no museu, sendo muito reproduzido em livros didáticos.

 

Reaproriações e resignificações

 

Laura Malosetti Costa passa a analisar então a reapropriação desta obra e sua resignificação em vários contextos históricos. Artistas argentinos que buscaram em suas obras um compromisso político e também uma renovação na linguagem plástica mantiveram diálogo com o mestre do quadro de tema operário do século XIX. O pintor Antonio Berni (1905-1981) realizou duas telas de grandes dimensões, em 1934, intituladas “Manifestación[Fig. 3] e “Desocupados”, nas quais evoca a obra de De La Cárcova. Na primeira obra, utilizou as palavras “Pão e trabalho”, em uma perspectiva otimista, confiante no poder das manifestações de trabalhadores. A autora analisa a seguir a resignificação do quadro de De La Cárcova em uma série de desenhos e pinturas do artista Carlos Alonso, realizados em 1968.

Após o período político conturbado dos anos 1960, Malosetti Costa comenta a reapropriação da obra do século XIX na produção de Tomás Espina, já em 2002. Analisa como, no campo político, o quadro foi evocado em passeatas de desempregados, em ações de piqueteiros e em performances realizadas e registradas pelo então aluno de belas artes Jorge Pérez

Em 2007, foi realizada a exposição “Primeros Modernos” curada por Malosetti Costa no Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires. O quadro “Sem Pão e Sem Trabalho” foi exposto, e um detalhe da pintura foi escolhido para a divulgação da exposição em pôsteres. A pintura foi apresentada pelas ruas de Buenos Aires. Um dado interessante é que muitas pessoas que foram ver a exposição entraram no museu pela primeira vez.

No debate que se seguiu à apresentação da palestra, foi discutida a apropriação do título do quadro, presente nas várias manifestações políticas. Malosetti Costa enfatiza em sua análise a força deste quadro do século XIX, evocado por muitos artistas e pelos próprios trabalhadores, como símbolo de lutas políticas.[8]

 



[1] Por ocasião da exposição foi publicado o catálogo: Nicolas-Antoine Taunay no Brasil: uma Leitura dos Trópicos. Org. Lilia Moritz Schwarcz, Elaine Dias. São Paulo :  Sextante Ficção, 2008.

[2] Acerca da exposição ver também Dias, Elaine. “Taunay: Um Iluminista no Brasil”. São Paulo, História Viva, junho de 2008, disponível em : http://www2.uol.com.br/historiaviva/noticias/taunay_um_iluminista_no_brasil_imprimir.html. Acesso: 13.10.2008.

[3] Elaine Dias é doutora em História pela Unicamp e autora da tese “Félix-Émile Taunay: Cidade e Natureza no Brasil”, defendida em 2005.

[4] Publicado em Buenos Aires,  Fondo de Cultura Económica, 2001.

[5] Serge Gruzinski é historiador e professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). O livro mencionado (originalmente publicado em 1990) é um dos mais recentes de uma série de estudos realizados pelo autor sobre o México colonial

[6] 1892 - 1893 - Óleo sobre tela - 125,5 x 216 cm. Colección Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires.

[7] Eduardo Schiaffino (1858-1935), pintor, crítico e historiador argentino, membro de um grupo conhecido como A Geração de 80.

[8] Um artigo interessante acerca do tema desta palestra é: MALOSETTI COSTA, Laura. “Artes de Excluir, Artes de Incluir”. Revista Todavia, disponível em http://www.revistatodavia.com.ar/todavia13/notas/costa/txtcosta.html, acesso em 13.10.2008.