Portugal Portugueses: trajetórias, obras e processos – Relato crítico da 1ª Mesa
Por Olivia Ardui
Na ocasião da exposição Portugal Portugueses – Arte Contemporânea, foram organizadas três mesas de debates, reunindo alguns dos artistas participantes, com o intuito de fomentar discussões acerca de assuntos levantados pelo recorte da produção lusitana recente presente na mostra. É importante ressaltar que essa exposição está entre as maiores iniciativas desse tipo já realizadas no Brasil.
Para dar início à primeira conversa – que reuniu os artistas Nuno Alexandre Ferreira, João Pedro Vale, Nuno Sousa Vieira, Vasco Araújo, Rui Calçada Bastos, Francisco Vidal e Vasco Futscher – o mediador Claudinei Roberto da Silva formulou três propostas de reflexão aos participantes:
• Realizar uma breve apresentação de seus interesses artísticos e seus projetos em curso.
• Refletir sobre o papel e protagonismo da arte contemporânea portuguesa na cena internacional.
• Abordar os possíveis elos e pontos em comum entre a produção contemporânea portuguesa e a brasileira.
Se cada artista expôs rapidamente os fundamentos de seus respectivos trabalhos, talvez pela dimensão demasiadamente ampla desses três tópicos, a discussão convergiu principalmente para os dois últimos pontos e, mais precisamente, para a dificuldade em definir uma identidade própria para a arte contemporânea portuguesa, notadamente em contraponto à brasileira. Portanto, ao invés de um relato linear de cada uma das intervenções, opto por abordar os pontos cruciais que nortearam a conversa como um todo.
O que é arte contemporânea portuguesa?
Desde o início da apresentação, Nuno Alexandre Ferreira e João Pedro Vale apontaram para algumas contradições inerentes aos projetos expositivos que se articulam a partir de uma noção de nacionalidade. Por um lado, eles destacaram tais agrupamentos de artistas como uma maneira de reduzir um grupo heterogêneo à uma suposta unidade e identidade em comum. Exposições que reúnem artistas compatriotas já partiriam do pressuposto, ou pelo menos da expectativa, de que existem de fato sensibilidades, referências e narrativas compartilhadas. E a própria construção da ideia de singularidade seria condicionada pela presunção de uma diferença em relação a um outro. Precisamente, seria nessa particularidade em relação e em contraste a um outro que residiria o interesse e a curiosidade por esse tipo de exposição. Ferreira e Vale salientaram então o contrassenso promover pontes e aproximações com a cena brasileira a partir da uma exposição que se propõe a representar, e distinguir, uma parcela da arte contemporânea portuguesa.
Vasco Araújo foi o primeiro a formular explicitamente o caráter problemático das premissas relativas às perguntas realizadas. De fato, antes de poder situar a arte portuguesa no cenário internacional – assim como elaborar as suas possíveis relações com o Brasil – caberia definir (ou pelo menos tentar esboçar) um contorno comum do que se entende por “arte portuguesa”. Seria esse um termo exclusivamente referente à arte produzida por artistas portugueses ou por indivíduos que vivem em Portugal? E, afinal, o que caracteriza ser português? Segundo o artista, só é possível responder a essa pergunta a partir de um ponto de vista individual e subjetivo.
Nesse sentido, Francisco Vidal apresentou a arte contemporânea portuguesa não como uma categoria engessada, mas como o conjunto dos indivíduos (“somos nós”) que realizam “documentos” ou ”signos” em forma de obras. No caso desse artista, ser português, angolano e cabo-verdiano o permite transitar entre os diferentes países, culturas e especificidades linguísticas, configurando um caráter híbrido que transparece em seu próprio trabalho. Assim, mais do que mencionar características gerais da produção portuguesa, Vidal apontou para o caráter fluído e permeável dessa, que encontra-se em constante construção pelos artistas e suas histórias pessoais.
Rui Calçada Bastos também problematizou a noção de arte portuguesa que, segundo ele não apresenta atributos intrínsecos que possam-na definir em termos gerais. Curiosamente, ele avançou – mesmo sem explicitar o porquê – que existe uma tradição da arte no Brasil, colocando que não seria possível, então, delinear um perfil da arte contemporânea portuguesa, mas sim, o da brasileira, que seria supostamente mais fácil de se discernir. Nessa colocação já está implícito o reconhecimento de uma disparidade entre a produção lusitana e a brasileira. Talvez essa diferenciação e confrontação com a arte de outro país possa ser um primeiro passo na direção da eventual caracterização de uma cena artística nacional.
Os (im)possíveis elos entre arte brasileira e arte portuguesa
Tal panorama nos leva a um outro ponto crucial que foi abordado na conversa, a saber: as aproximações e correlações que poderiam existir entre arte portuguesa e brasileira. Cabe ressaltar que esse aspecto está no centro das preocupações da curadoria, uma vez que a mostra Portugal Portugueses constitui o segundo momento de uma trilogia que almeja reconsiderar as principais matrizes entendidas como originárias do povo brasileiro. Os próprios núcleos que articulam a exposição também seguem, nesse sentido, uma tentativa de tecer analogias e parentescos entre essas diferentes cenas artísticas.
Alguns dos artistas, como Francisco Vidal ou Vasco Futscher, abordaram a existência de pontos de contato entre a produção dos dois países. De maneira mais sutil, Nuno Sousa Vieira mencionou um reconhecimento mútuo (“nos vemos uns aos outros”), apesar da consciência da diferença e distância entre os dois países. Em que medida, porém, esse reconhecimento também consiste em uma interlocução e numa troca efetiva entre os artistas? Em que medida esse “ver-nos vendo” pode ser sinônimo de convergência de assuntos tratados ou de soluções plásticas?
Se a maior parte dos participantes admitiu que conexões entre trabalhos de artistas dos dois países poderiam ser estabelecidas, eles também apontaram para o fato de que não se trata tanto de uma generalidade e sim de casos pontuais, ligados a interesses pessoais compartilhados. De fato, como o ressaltou Rui Calçada Bastos, uma proximidade entre a produção lusitana e a brasileira não constitui um movimento considerável e possível de ser mapeado. Talvez, como salientaram Nuno Alexandre Ferreira e João Pedro Vidal, essa distância se deve às diferenças de contexto cultural e de repertórios artísticos, que necessariamente forjam produções particulares e distintas. Já Vasco Araújo assinalou que a falta de interlocução estaria estreitamente ligada a um certo fechamento histórico, principalmente em períodos como a ditadura de Salazar. Em ambos os casos, no entanto, os artistas concordaram que esse isolamento se estende para além das relações bilaterais entre o Brasil e Portugal.
Uma difícil internacionalização da arte contemporânea portuguesa
O que muitas das intervenções também reiteraram foi que, exceto em alguns casos específicos, a representação de Portugal no circuito internacional não é tão abrangente. Para além do argumento de Vasco Araújo antes mencionado, o fator econômico foi a razão unânime no que diz respeito à falta de visibilidade da produção portuguesa. Nuno Alexandre Ferreira e João Pedro Vale referiram-se a uma relação direta entre a quase inexistência de mercado e uma falta de interesse internacional na arte portuguesa. Nuno Sousa Vieira reiterou esse argumento econômico, o estendendo para um campo mais amplo da cultura portuguesa e de seu país, frisando que tal fato repete-se até mesmo em certas posturas de seus vizinhos europeus. Paradoxalmente, tais afirmações são feitas ao mesmo tempo em que Lisboa, capital Portuguesa, destaca-se cada vez mais como um novo polo cultural europeu.
Se, como destacado anteriormente, parece então difícil discernir características próprias da arte portuguesa, as noções de nacionalidade, identidade e território ainda teriam um efeito direto e efetivo na consagração e na visibilidade da produção de um país. Como desenvolve Alain Quemin: ainda persistem zonas de influência geográficas que concentram as instituições e personalidades mais influentes na cena internacional. Esses países acabam privilegiando artistas de certas nacionalidades, ou baseados em certas cidades, bem como ditando comportamentos e critérios de apreciação e legitimação da arte, a despeito de uma suposta globalização e de uma internacionalização do mundo da arte. Paradoxalmente, tais afirmações são feitas ao mesmo tempo e que Lisboa, capital Portuguesa, tornar-se um novo polo cultural europeu.
À luz dos antagonismos internos e da própria noção de arte global – que aboliu as antigas barreiras só para tornar novas geografias e seus contrastes ainda mais evidentes – o teórico Hans Belting articula que, se a circulação da arte é mundial, sua recepção é sempre local, ou mesmo site-specific por assim dizer. Assim, parece não haver resposta definitiva para a definição do que seria uma “arte portuguesa” e a situação que essa ocupa na cena internacional. Resta saber qual será a resposta do público brasileiro a essa produção lusitana, agora apresentada no Museu Afro Brasil.