Impasses: mitos da lusofonia na arte contemporânea
Por Emi Koide
Na terceira mesa, os artistas participantes – Gonçalo Pena, Manuel Correia, Albuquerque Mendes e Orlando Azevedo – foram convidados a reagir às questões norteadoras colocadas nas sessões anteriores: abordar suas trajetórias artísticas, sobre o papel da arte contemporânea portuguesa no circuito internacional e as relações desta com o Brasil. Gonçalo Pena falou de seu percurso como ilustrador e designer, tornando se pintor tardiamente. Manuel Correia discorreu brevemente sobre sua carreira como fotógrafo, dedicada à publicidade e a projetos de retratos de comunidades tradicionais não ocidentais. Albuquerque Mendes deu ênfase à fascinação pelo Brasil e influência da arte brasileira em sua produção. Orlando Azevedo, de origem açoriana, definiu-se como fotógrafo compulsivo, com projetos de livros muitos dedicados a retratos de diferentes regiões brasileiras, sendo o único dentre os artistas desta sessão radicado no Brasil.
A questão colocada pela mediação implicava o posicionamento dos artistas diante do que seria uma “arte contemporânea portuguesa”. Ou seja haveria um caráter nacional, alguma qualidade que definiria a arte contemporânea produzida em Portugal? Observamos ainda que a exposição “Portugal, Portugueses”, integra o projeto de uma trilogia, sendo executada posteriormente a mostra “Africa, Africans”, cujo intuito é traçar relações entre estas produções e seus contextos com o Brasil. Dessas ações surge uma questão central: o que implicariam essas narrativas (e seus “autores”) na formação de identidades nacionais?
É interessante, assim, refletir sobre este projeto num contexto contraditório de afirmação de uma arte global e de diluição de nacionalidades no sistema internacional. Ao mesmo tempo, pavilhões nacionais continuam a existir em importantes exposições como a Bienal de Veneza, assim como é frequente o apoio à produção contemporânea por parte de fundações e instituições nacionais[1]. Se o modernismo sempre esteve fortemente relacionado a projetos nacionalistas, cabe questionar se o mesmo ocorrer com a produção contemporânea e de que modo. Ou poderíamos nos perguntar ainda quais diferenças e aproximações poderiam existir entre nacionalismo, identidade nacional e a pluralidade da produção contemporânea.
Lusofonia como expressão na arte?
Curiosamente o que emergiu das falas dos artistas foi uma certa defesa da ideia de lusofonia, e uma velada nostalgia colonial. Gonçalo Pena, ao se referir à ideia de identidade portuguesa, aludiu à latinidade, à proximidade ao oceano que impele à viagem. Assim, os portugueses estariam sempre com o olhar voltado para fora, entre dois mundos, nostálgicos de ser um outro, no espaço e no tempo. O artista mencionou também que a nacionalidade seria uma definição jurídica, de pertencimento e nascimento em um país, situações que passam pela questão das fronteiras e que se caracterizaria como “vicissitudes históricas, linguísticas, culturais e econômicas.” Sinalizando a contingência de qualquer nacionalidade, o pintor apontou para a língua portuguesa como um modo de viver. Também mencionou que Portugal seria uma estranha mistura da condição mediterrânea e atlântica com uma língua ibérica, com antepassados romanos e árabes. De certa maneira, ele elogiou a lusofonia – língua de um país pequeno e periférico na Europa, que no entanto seria a quinta mais falada no mundo, e de certo modo graças ao Brasil, mas incluindo também portugueses, africanos e indianos. Para Pena – que recuperou uma ideia de Fernando Pessoa – a pátria seria a língua portuguesa, e sua gramática influenciaria os modos de pensar e conceber sua arte. No exemplo esboçado por ele, imagina-se um artista formalista que, produzindo somente retângulos, teria essa forma definida pela língua portuguesa; ou um artista conceitual português, cujas idéias seriam inevitavelmente pensadas e expressas em português, dando-lhes características próprias, mas que seriam distintas se o fizesse em outra língua, como o alemão. Ele caracteriza ainda o português como língua “descontraída, da mistura, da deriva e do cinzento”. O Português seria, ainda, uma linguagem para tecer relações e diálogos com os outros.
O artista Albuquerque Mendes embora não falasse de lusofonia, nem tampouco da língua, menciona que o modernismo português seria um modernismo tardio, tendo porém um caráter engajado devido à ditadura de Salazar. No entanto, no século XX, a arte portuguesa traria um olhar triste sobre si e sobre as coisas, que ele chama de “saudade do abismo” – que expressam o fracasso em não alcançar uma posição de grandeza, depois de ter alcançado diferentes regiões do mundo. Embora o artista não nomeie, subtende-se uma nostalgia colonial expressa nessa ideia. Já Mendes afirma que seria um “estar à beira do precipício” o fator comum na diversificada produção portuguesa do século XXI, pois o artista português estaria sempre prestes a “escrever uma nota de suicídio”. Novamente, afirma-se a ideia de nostalgia do outro, destinado a ir além do pequeno país no sul da Europa, e como possível solução restaria sair ao mar, para então chegar ao Brasil.
Orlando Azevedo também retoma esta espécie de exaltação à língua portuguesa, à lusofonia. Ele refere-se à “força do vernáculo” e à “história da diáspora da língua portuguesa”, em diferentes partes do mundo que estende-se até o Oriente, sem mencionar a colonização. O fotógrafo evocou também, ao mencionar um projeto seu sobre os antigos viajantes, uma trilogia de pensadores que refletiram sobre o Brasil: Agostinho da Silva, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Tais pensadores afirmariam a mestiçagem, a presença de índios, negros e branco – junto da diáspora portuguesa – como o principal eixo formador do Brasil. Azevedo, sem dúvida, recupera aqui idéias que alimentam o projeto curatorial da trilogia de exposições em torno das influências que “criariam” o Brasil. De modo contraditório, o artista ora exaltava a presença açoriana no Brasil e sua força; e ora tecia elogios à mestiçagem, a presença de todas as etnias no país.
Esses discursos mostram-se problemáticos, na medida em que defendem a ideia de lusofonia ou de uma certa “portugalidade” ainda que de maneira difusa. Pois, poderíamos nos perguntar: como compreender que a língua portuguesa – em sua forma, gramática e especificidade – pode definir uma produção artística visual e plástica contemporânea? É necessário considerar as críticas à lusofonia, sobretudo no contexto pós-colonial, e sua relação com o passado desse contexto – fato que nenhum dos artistas mencionou – como é necessário também abordar a complicada relação com o continente africano. Para Alfredo Margarido[2], a lusofonia surge nos anos 1960, no contexto das lutas pela independência nas colônias, justamente para substituir a ideia de “império colonial”, deixando de lado a violência ligada à essa história. Seria, assim, um modo de continuar a tecer relações com o Atlântico, uma espécie de projeto missionário asséptico (no contexto pós-colonial) que centra-se na língua portuguesa. O conceito de lusofonia apagaria, desse modo, seus rastros coloniais e a diferença entre realidades culturais e sociais completamente distintas, utilizando a língua como um princípio comum. A lusofonia estabeleceria um discurso unificador mítico e ideológico[3]. No contexto africano dito lusófono é necessário levar em conta, ainda que o português não é a língua materna da maior parte da população, e é falada por uma porcentagem variável de acordo com cada país, o que geralmente não corresponde à maioria (por ex: 15% na Guiné Bissau, 36,9% em Moçambique[4]). Além disso, há a relação entre o luso-tropicalismo apropriado pelo Estado Novo português e a lusofonia, observando como ideias de Gilberto Freyre foram apropriadas pelo colonialismo lusitano justamente no período das independências africanas[5]. Nos anos 1930-40, o Estado Novo português rejeitava a ideia de mestiçagem, mas prezavam a ideia freyriana, que na interpretação local afirmava a capacidade colonizadora do português devido a sua melhor adaptação ao clima tropical (devido às origens mestiças). A ditadura de Salazar adotou o luso-tropicalismo, constituindo um discurso oficial em que Portugal e seus territórios ultramarinos seriam multirraciais, pautados por uma cultura comum e sem discriminações. Ecos de tais ideias surgem nas falas dos artistas quando abordam uma especificidade portuguesa que estaria destinada a olhar para fora, ou quando definida como uma língua (ou cultura) do encontro com o outro; e ainda, ao remeter insistentemente à nostalgia do outro.
Temos a sensação que a persistência do mote nostálgico colonial, mesmo que velado, seja resquício do discurso oficial mítico português nessa geração de artistas. Caberia questionar: como pensar no projeto de lusofonia em um contexto contemporâneo, de crescente segregação de comunidades imigrantes oriundas de ex-colônias, em Portugal? E ainda, qual seria o papel da arte contemporânea em uma realidade cujos resquícios da história colonial continuam presentes, porém permanecendo ainda encobertos por outros discursos?
Praticamente todos os artistas concluíram afirmando que a arte seria uma espécie de terreno indefinido, mesmo que anteriormente tenham assinalado especificidades da expressão portuguesa marcada pela nostalgia ou pela lusofonia. Pena caracterizou a língua portuguesa como “cinzenta”, que propicia encontros e diálogos; em termos semelhantes Mendes definiu a arte como um lugar de “contaminação, da passagem, da transversalidade das coisas, zona “cinzenta”. Ao mesmo tempo, ele declarou não apostar mais em um horizonte utópico revolucionário para a arte. Azevedo afirmou que na arte não haveria nem pátria, nem fronteiras – e que sua diversidade significaria originalidade. Apresenta-se uma espécie de narrativa conciliadora entre uma expansão imperial do passado, uma nostalgia temporal e espacial como expressão de especificidade, ao mesmo tempo em que todos apostam na indeterminação e abertura da arte. O tema da lusofonia, “portugalidade” e colonialidade trazem consigo múltiplos questionamentos, e talvez a melhor provocação para esta situação não esteja na fala dos artistas, mas na própria exposição, com a presença das obras de Yonamine e de Vasco Araújo.
Sobre os elos entre a arte produzida em Portugal e Brasil, Mendes falou que influências mútuas ocorriam no campo da poesia, mas que o mesmo não acontece nas artes visuais. No entanto, nos últimos anos haveria uma presença crescente da arte brasileira na cena internacional, em que a produção do país se tornou moda. Ao mesmo tempo, Mendes criticou que tal inserção ocorre sob o signo do exotismo, em que predominaria a imagem do outro estereotipado, referindo-se ao artista Ernesto Neto, que encarnaria esta imagem de exotica para exportação. Mas aqui, também poderíamos perguntar: quanto do exotismo também não foi utilizado pelo modernismo brasileiro, a que Mendes cita em suas obras?
Paradoxo: centralidade e ausência de mulheres artistas no encontro
Uma questão colocada pela platéia mencionava o destaque de um forte núcleo de mulheres artistas modernistas, no interior da exposição, para indagar sobre a influência delas na arte contemporânea.
Todos afirmaram a grande importância da produção destas artistas que ocupam lugares proeminentes na história da arte portuguesa. A primeira artista internacional das artes plásticas seria Vieira da Silva, certamente a artista de maior renome. Paula Rego seria outra artista de grande projeção. Ainda, nenhum artista homem português teria alcançado a mesma relevância e prestígio que estas artistas mulheres. Azevedo observou também que mesmo na cena contemporânea, o nome de maior visibilidade hoje seria o de Joana Vasconcelos. De modo contraditório, estas artistas mulheres que ocupam lugar importante na exposição e na cena internacional, estiveram ausentes dos debates, com três mesas compostas exclusivamente por artistas homens.
[1] Para uma leitura mais aprofundada desses fenômenos, ver: Sezgin Boynik & Minna Henriksson. “Introduction” In Contemporary Art and Nationalism: Critical Reader, Pristina: Institute of Contemporary Art, 2007.
[2] Alfredo Margarido. A Lusofonia e os lusófonos: novos mitos portugueses. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2000.
[3] Vítor de Souza. “O difícil percurso da lusofonia pelos trilhos da portugalidade”. In Revista de Sociologia Configurações, n. 12, 2013, pp. 86-104. URL: https://configuracoes.revues.org/2027
[4] Carolin Overhoff Ferreira. “Ambivalent transnationality: Luso-africans productions after independence (1988-2010)” In Journal of Africans Cinema, vol. 3, n. 2, 2011, pp. 251-252.
[5] Claudia Castello. “O luso-tropicalismo e o colonialismo português tardio” In Buala, 5 de março de 2013. URL: http://www.buala.org/pt/a-ler/o-luso-tropicalismo-e-o-colonialismo-portugues-tardio